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O Crisma do Zé Carlins

Foto: DR

Quando eu me criei, havia gente humilde, mas recatada e muito cumpridora das suas obrigações católicas, mesmo que para isso tivessem que privar as suas barrigas para que os seus filhos se pudessem apresentar na casa de Deus, na igreja, no dia do seu crisma com uma roupinha digna e asseadinha. É que, nestas coisas, família que se prezasse fazia tudo por isso no meu tempo. Graças a Deus não passei por isso, mas fui testemunha de tantos que por essa dificuldade passaram. Mas, vamos à história que há muitos, muitos anos, me contou o tio Manuel do Pico.

“Estavasse no período de preparação de novos crismandos e um grupo de crianças aproveitava para brincar no adro da igreja, enquanto não chegava a hora de mais uma reunião de preparação, na igreja. O ´tá­guerrado`, era uma brincadeira muito popular no adro da igreja, em que uma das crianças contava até dez e depois corria a procurar os outros, por onde se tivessem escondido. O Zé Carlins, foi­ esconder-se sorrateiramente detrás da porta no guarda­vento da igreja. Ali estava quando o pároco sai para chamar as crianças para dentro e, vendo-o ali, não gostou e vai daí pensou em dar um corretivo, para servir de exemplo, de como não se devia brincar dentro da igreja.

Não te crismarás! A casa de Deus não é lugar de brincadeiras. Avisa teus pais que já não te vais crismar! Não desta vez!

O Zé Carlins, na sua ingenuidade, nem se apercebeu da gravidade, mas o medo e o tom das palavras assobiavam-lhe nas orelhas a caminho de casa, pensando como teria de contar à mãe a missiva do padre.

Que as crianças não têm culpa isso eu sei, porque elas copiam a educação e os defeitos dos pais, …e até tenho pena delas, mas alguém tem de servir de exemplo, repetia o Padre à mãe do Zé Carlins, quando esta foi falar-­lhe à sacristia.

Mas, senhor padre, as crianças são inocentes. O senhor devia perdoar-lhe e depois, a roupinha já está comprada… e com tantas dificuldades…!

Foi dito, está dito e assim será, repetiu o Padre. A mãe do Zé Carlins nem sabia como dizer ao marido que o filho não iria se crismar, pois sabia que ele ferveria em pouca água, de génio!

Não vai?! Mas… ´o Padre não serve nem a sua família de exemplo a ninguém para julgar que os filhos copiam os defeitos dos pais`… e o irmão dele [?] que fugiu para a América e deixou mulher e filhos atrás na ilha?!

De passo apressado e com o pensamento aos ´margulhos`, com os nervos a passearem-lhe pelo corpo todo dirigiu-se à sacristia da igreja para por tudo em pratos limpos e ouvir da boca do padre o que tinha dito à sua mulher.

Não vai crismar? ­ Vá­-se ver!

De boné deposto nas mãos cruzadas atrás das costas, mais por respeito à casa de Deus do que à pessoa prostrada à sua frente, pediu àquela para que lhe dispusesse de algum tempo para lhe prestar alguns esclarecimentos.

Se vens pelo teu filho, à tua mulher já expliquei que…

O que explicou o senhor Padre à minha mulher pouco me interessa, o que quero saber é quem lhe deu poder para julgar pessoas, e não me refiro só aos inocentes!? Quem se julga o senhor Padre para atribuir defeitos ao meu filho, porque os herdou de mim?!

Mas, tu sabes…

Sei sim senhor, … que bem fez seu irmão em deixar a mulher porque viu seu pai deixar a sua mãe!

Meu pai não deixou a minha mãe!

Nem o meu filho herdou os meus defeitos! Então, em que ficamos?!

Vamos acabar isso em paz porque estás a ofender, e, podes não acreditar, mas gosto que me ofendam para poder perdoar.

Depois desta atribulada história o Padre abraçou o tio Manuel e o Zé Carlins lá se foi crismar com a sua roupinha nova e marrafa do cabelo bem riscada a fazer jus da brilhantina que a mãe comprara na Cova da Onça.

 

 

 

 

 

Por: RoberTo MedeirOs

(Crónica publicada na edição digital de abril de 2020)

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