Histórias da minha antiga Vila de Água de Pau –  IV

O José e a Maria – A lapa fugiu para o buso?

Roberto Medeiros

No meu tempo em Água de Pau, pelos anos sessenta, já havia casamenteiros, como sempre houve, e hoje, no tempo da internet, essa função já não faz falta. Atualmente, os namorados na minha terra, em geral, não têm intermediários, e os pais que antigamente eram os que consertavam e amanhavam o casamento dos filhos, são agora os últimos a saber dos seus namoros.

Sou do tempo em que entre o povo tudo isto se passava muito simplesmente como presenciei por exemplo, na rua dos Ferreiros. Era o rapaz que se dirigia à sua escolhida, que era a sua vizinha, ou conhecia-a duma desfolhada de milho, das vindimas da Caloura, ou de a ver numa casa de Espírito Santo, onde já tinha balhado com ela ou cantou com ela e ela aceitou os trocadilhos que ele lhe atirava, como este:

Atirei um lenço ao ar
caiu no chão e fez um S
a tua cara rosada
já nunca mais me esquece

Muitas vezes começava assim o namoro, e foi assim que começou o do José “buso” com a Maria “lapinha”, ele da rua das Limeiras e ela da rua da Carreira.

O namoro ao canto da rua

Antes que os pais de Maria soubessem da inclinação da filha, o José não passou do canto da rua onde ficava a casa da pretensa namorada. Ali permanecia horas esquecidas, divisando de quando em quando o vulto da pequena Maria, que de fugida chegava à janela ou ia ao quintal.

Aos domingos é que ocorriam essas oportunidades de se verem de longe, que de semana todos se entregavam ao labor da vida, se bem que o namorado quando vinha e ia para o trabalho procurava passar pela casa  do seu namoro, e já o víamos por vezes, uma hora comprida, a fumar cigarros ao canto da rua, imóvel, estático, e a pequena debruçada à janela, num silêncio enorme, que só falava então o coração numa linguagem que não era permitido revelar.

O namoro à janela

Quando, porém, os pais da Maria não se opunham ao casamento, ou quando os namorados atingiram a sua maior idade, e assim não havia possibilidade de estranhos o fazerem acabar, então o namorado chegou-se à janela, à noitinha, e conversava com a namorada longo tempo.

E as vizinhas, e as amigas, comentando o caso, arrematavam as suas objeções:

– “Já se falam à janela, aquilo é para breve!”

O namoro de porta para dentro

Foi a última fase do namoro do José e da Maria; em geral, depois do pedido formal, os pais dela deram licença ao rapaz de entrar em casa: a princípio uma ou duas vezes por semana, aos domingos, aos dias santos; e à maneira que o casamento se aproximava, mais familiaridade ia havendo, e então o namorado podia entrar mais algumas vezes.

Naquela fase o namorado acompanhava a noiva e a família aos divertimentos, aos passeios, e mesmo sem o noivo a pequena não se atrevia a ir a festa alguma.

Pedir a noiva

Casamento em 1949 com cortejo a pé, descendo a antiga rua da Carreira © D.R.

O pedido de casamento era para ser numa noite, mas ocorreu num domingo à tarde; o pretendente foi só e dirigiu-se ao futuro sogro levando no pensamento aquilo que ia dizer:

«Que deitou as suas vistas sobre a sua filha Maria e pretendia com ela casar, se fosse da vontade de todos os da casa.»

Nem sempre, é claro, o pedido é satisfeito, e assustava-lhe o pensamento a recusa nestes termos: «eu não tenho filhas para casar.»

Todavia, o pedido foi atendido, e o casamento era do agrado da família da noiva, o pai desta perguntou-lhe então:

 «E é do agrado dos teus pais? Eu não quero cousas contra vontade. Por mim aí a tens, trata-a bem, que eu bem sei o que te dou.»

Há casos, pensou ele, em que os pais da pedida se vêm forçados a dar o sim, bem contra sua vontade; o povo tinha uma frase própria para esta situação: «Digo-lhe que sim, porque não lhe posso dizer que não»

Mas, não era esse o caso da Maria «lapinha» pois não precisava fugir para o José «buso». Ele era sério e nunca a tinha tocado ainda nem com a ponta de um dedo, descansou.

Ajustado enfim o casamento, e acertada a época aproximada dele, ficou o rapaz assim autorizado a vir a casa da noiva aos domingos de tarde, aos dias santos e num ou noutro dia de semana quando convidado para isso. De semana falava à janela durante o tempo que entendia, mesmo de dia, que não havia que murmurar:

– «Já são noivos, têm o casamento acertado para o ano novo.»

Dois ou três dias depois do pedido, a noiva acompanhada da sua mãe foi dar aos pais do noivo do pedido e do ajuste do casamento para tal tempo. E assim juntas as duas famílias puseram em relevo as bondades e os defeitos dos noivos:

– «É bom que isto se saiba, não quero que o meu filho vá enganar ninguém. Temos toda a vizinhança por testemunha.»

E os noivos iam-se, no entanto, sorrindo um para o outro, desejando que aquela visita se prolongasse toda a noite.

Agora todo o tempo se empregaria no arranjo do dote.

Foi a noiva quem tudo levou dos arranjos da casa, que o noivo, por si, além das suas roupas próprias, só tem de trazer para o casal o seu sacho ou a sua ferramenta, que era toda a riqueza e todo o seu orgulho.

O quarto de camada Maria, era composto da barra de casados, feita de madeira de acácia, ou de castanho, envernizada num tom escuro, da cómoda da mesma madeira em cima da qual se colocou o Menino Jesus, que fazia parte integrante e indispensável do dote de uma noiva, ladeado por dois vasos com flores e um par de castiçais, algumas cadeiras, uma pequenita mesa de três pés, e na parede alguns quadros de Santos emoldurados, entre os quais se encontrava uma Senhora dos Anjos, uma Senhora das Dores e um Santo Cristo.

O meio da casa, era o quarto de entrada; era aí que os camponeses faziam o seu celeiro; aí arrumavam o milho, a fava, o feijão, as batatas, enfim todos os produtos agrícolas necessários para o seu sustento.

Os noivos tinham este quarto muito francamente apetrechado, que o seu celeiro foi provido das dádivas que receberam dos seus pais, vizinhos e amigos no dia do casamento.

Na cozinha havia o indispensável: uma ou duas panelas, uma trempe, uma peneira, uma chaleira, alguns alguidares de barro, a sopeira, a caçarola, a tigela, o lava-mãos, alguma louça, mas pouca, que pouca era ainda a gente da casa.

Em roupas, além das do uso próprio da noiva, mais uns dois andaimes de roupa de cama. E eis tudo; era muito para quem era pobre, bastante para quem não era rico.

Casamento com cortejo a pé, subindo a Praça Nova, a caminho da Igreja © D.R.

Superstições

As conversas dos namorados à janela versavam antigamente sobre aquilo que acreditavam e desejavam para o futuro, mas também sobre os mitos e medos, os ditos e ditados. Queriam conhecer-se bem para se precaverem de por exemplo:

Ninguém se casa à terça nem à sexta-feira, que são dois dias aziagos; nem no ano bissexto se casa alguém, que o casal que assim fizer será infeliz.

Não se deve permitir que a noiva depois de vestida para a cerimónia do casamento, se vá mirar ao espelho, porque grande infortúnio lhe advirá, e viverá mal com seu marido.

Na noite do casamento não se apagam todas as luzes, fica ao menos uma sempre acesa, porque aquele dos dois que apagar a última luz, esse será o primeiro dos dois que morrerá.

E a cama do casal não deve ter os pés voltados para a rua, que se assemelha assim a uma tumba, e morre cedo o noivo.

Acontece por vezes não haver lenha com abundância para se aquecer o forno, e ter-se assim de lançar mão de quaisquer cousas velhas; pois se entre essas for algum resto de cesto de vimes, velho, e como Água de Pau sempre foi terra de vimes, cesteiros e cestos, é isso um dos sinais que o povo tem para anunciar que em breve haverá naquela casa um casamento.

Crónica publicada na edição impressa de abril de 2023

Categorias: Opinião

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