Olhamos para o conjunto de fotografias aqui publicado e reparamos logo na vocação majestática da autora de “A Madona”. Sempre em pose, sentada a solo, com amigos, junto a um busto. Perto de um santo. Erguia-se assim Natália Correia. Como mulher mundana e espiritual, entregue a todos os deuses. Um dia, escreveu: “Creio nos anjos que andam pelo mundo,/ creio na Deusa com olhos de diamantes,/ creio em amores lunares com piano ao fundo,/creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes”. Como quem diz: em tudo creio – tudo o que circule com a cauda da transcendência. Uma mulher das tertúlias, da polémica, da palavra em voz alta, da provocação humorística, e alguém que reinventou, em sentido feminino, uma das mais belas manifestações religiosas e culturais do arquipélago açoriano: o Espírito Santo.
“Sou da ilha das línguas de fogo. Com elas aprendi a metrificar o espírito. O indizível”. Natália Correia era uma micaelense com uma língua de fogo. Percorrendo a ilha de São Miguel, cruzamo-nos com algumas. Mulheres com desafiadora verve, insubmissão orgânica, explosões sem aviso. Ela gostaria de ser vista assim. “A importância de ter nascido açoriana é de tal ordem que insularidade e poesia se fundem em mim produzindo uma diferenciação que me é por vezes dolorosa”.
Aos 11 anos, na viagem que fez com a irmã e com a mãe, que a criou sozinha, com espírito livre e culto, levou a ilha consigo. O seu apartamento em relação às crianças em tempo escolar, no Liceu D. Filipa de Lencastre, em Lisboa, fazia-se de um magma separador. Quando voltou a pisar o cascalho da sua terra, nunca mais abandonou a vontade de se apresentar como filha do vulcanismo das ilhas. Fernando Dacosta, em “O Botequim da Liberdade”, partilha um comentário de Natália, numa visita aos Açores: “A Lagoa do Fogo só deve ser visitada às três da madrugada, altura em que se desoculta aos iniciados”. Uma origem telúrica tornada mito, mistério e símbolo.
Poucos sabem que a ânsia de voltar emergiu num restaurante lisboeta, numa altura em que já havia galgado os 30 anos. Emocionou-se, até ao soluço, com as músicas do folclore micaelense incluídas na banda sonora do espaço, e, passados 15 dias, voltou. Para se demorar, para pesquisar. Para escrever versos como “Eu vos direi da ilha que na dorna/ do Arcanjo é eterna em chão escasso./Fulva de gado ao dia. À noite morna./ Embebida no verde. E o mar colaço”. Para ter a calma que, dizia, só encontrava no chão insulano
Ao olhar estas fotografias, ocorre a ideia de que há várias Natálias – e todas podem ser encontradas na recém-publicada biografia “O Dever de Deslumbrar”, de Filipa Martins. Ser múltiplo na vocação e na curiosidade, desdobrou-se em áreas diversas. A começar pela literatura, a sua vocação primeira, aquela pela qual mais desejava ser reconhecida. Experimentou, com grande preocupação formal, diferentes géneros, o romance, o ensaio, o teatro, o diário, a poesia, na qual balançou entre a tradição barroca, o fulgor surrealista e o mais absoluto romantismo. Distinguiu-se na política, na vida cívica, na edição, na investigação. Organizou uma “Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica”. Assumiu-se antifascista e “ibericista”. Celebrou a androginia e o ócio. Fundou o libertário Botequim, defendeu, perante todos os moralismos, o casal Francisco Sá Carneiro e Snu Abecassis, escreveu um poema satírico num debate sobre a despenalização do aborto. Veio para a literatura, mas a oratória também a convocou. E, de certo modo, olvidou a sua arte literária, ainda por clarear.
Sob o ponto de vista psicológico, ao contrário do que possa parecer, também era múltipla, complexa. Para citar Filipa Martins, “a inteligência e o desconcertante sentido de autoencenação majestático” ocultava “uma fragilidade complexa e paradoxal, com raiz numa infância marcada por abandonos e uma afetividade dispersa”. Há uma verdade na sombra destas fotografias. A mulher em pose esconde uma menina à espera de um abraço.
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