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Limas, malassadas e danças dos cadarços

© DL

O projétil passou de raspão por cima da minha cabeça e espapaçou-se na janela do rés-do-chão, num tilintar de estilhaços de vidro sobre a calçada. Do outro lado da rua, no andar de cima, uma cortina a bambinar e gargalhadas abafadas denunciavam a origem do míssil.

Foi assim, espantado e assustado, que a dona da casa me apanhou ao abrir de repente a porta da sua casa.

– Ah, demónios d’um corisco, que já me partiram um vidro. Quem é que agora mo vai pagar, hein? – gritou, afogueada, lançando olhares furiosos para os dois lados da rua.

Atrapalhado, balbuciei uma desculpa envergonhada, dizendo-lhe que ia num mandado quando me atiraram uma lima.

– Ai sim!? Hei-de descobrir quem foi. E se tiveres provocado a coisa, não te livras de umas boas rabadas, que eu já falo com a tua mãe.

Ainda hoje estou para saber quem foi o autor ou autora da brincadeira carnavalesca que me pôs o coração aos pulos e me deixou numa situação tão desconfortável.

Tudo aconteceu na semana antes do Carnaval, nos meados dos anos 1960. Naquela tarde, dirigia-me tranquilamente à loja do Sr José Borges, no Largo do Chafariz, para lhe entregar uma caixa grande de fósforos, cheia de sementes de laranja-de-umbigo. A minha avó Inês conseguia ganhar uns trocos – a gente dizia serrinhas ou serrilhas – com este ‘negócio’ anual, que não lhe dava quase trabalho nenhum, bastando apenas guardar as sementes, deixá-las secar e mandar-me levá-las à dita loja.

Passar por certas ruas nas vésperas do Carnaval era, por vezes, uma verdadeira aventura digna de registo. A rapaziada corria o risco de ser bombardeada por jatos de água disparados de pistolas, seringas ou até mesmo de um simples balde. No entanto, havia armas ainda mais requintadas.

Havia rapazes que, durante semanas, montavam verdadeiras linhas de produção de limas-de-cheiro, prontas para serem arremessadas contra qualquer coisa que se movesse à frente de suas casas. Trabalhavam na cozinha, às escondidas dos pais, bem cientes de que eles não aprovariam alguns dos ingredientes que enchiam aquelas pequenas esferas de diversão e travessura.

Primeiro, conseguiam cera, derretiam-na cuidadosamente e vertiam-na em formas de alumínio que lembravam piões. Após arrefecer, desenformavam as limas e, pelo buraco do bico, enchiam-nas com todo o tipo de líquidos possíveis e imagináveis. Sim, ‘isso’ também. Imaginem o resultado de um arremesso certeiro e os efeitos colaterais. Quantas bulhas, quantas brigas, quantas rabadas à pala destas brincadeiras carnavalescas, que nada tinham a ver com as danças de cadarços de que o meu avô João tanto me falava.

– Na minha juventude, – contava ele, com um brilho nostálgico nos olhos -, homens e mulheres dançavam à volta de um mastro plantado numa rua ou numa praça, enrolando e desenrolando fitas de várias cores, tudo ao som de uma charanga ou de uma tuna. Era uma folia que unia todos. É uma pena que essas danças dos cadarços tenham desaparecido, gostava que as tivesses visto para entenderes como nos divertíamos. Não era como agora, com essas vossas brincadeiras sem tarelo. Agora só sabeis atirar limas que magoam, enjoam que tresandam, e depois ninguém assume, ninguém sabe quem atirou. Naquele tempo, a alegria era limpa, sem deixar rastros de rancor ou mau cheiro. E como se isso não vos baste, andais ainda para aí a rebentar bombinhas e a atirar bichas-de-rabiar, rastilhos e outras coisas perigosas. Dizem por aí que um rapazinho ficou sem um dedo por causa de uma bombinha de Carnaval, e que outro ficou com uma perna cheia de queimaduras porque um rastilho lhe entrou pela calça acima…

Mal podia ele imaginar que, décadas depois, essas danças tradicionais seriam resgatadas e recriadas por diversos grupos culturais, como um da Ribeira das Tainhas, mantendo viva a memória de uma época em que a alegria do Carnaval era feita de música, cores e harmonia, sem deixar marcas de dor ou destruição.

Entretanto, a minha mãe afadigava-se no preparo das malassadas. Tudo feito à mão, já que, naquela época, os recursos eram escassos. A massa, cuidadosamente amassada com farinha, leite, manteiga, ovos, fermento, sal e açúcar, repousava durante a noite para levedar. Na manhã seguinte, ela era estendida, frita em óleo quente e colocada numa panela, pronta para ser devorada. Fofinhas e fresquinhas, as malassadas desapareciam num instante. Éramos tão gulosos que comíamos como se não houvesse amanhã, embora as pontadas de azia fossem o preço inevitável a pagar por tamanha voracidade. Que saudades imensas desses tempos! E que pena não ter podido visitar a Ribeira Chã durante o seu festival anual de malassadas. Imagino o aroma doce e reconfortante das malassadas fresquinhas a pairar no ar, o burburinho alegre das pessoas reunidas…

A minha madrinha Julieta e a minha avó Inês tinham uma predileção especial pelas fatias douradas. Como o nosso quintal era comum, eu era um pêndulo, indo e vindo entre as duas cozinhas, atraído pelos aromas que cada uma delas exalava. E assim fluíam os dias naturalmente: do dia dos amigos ao dia das amigas, do dia dos compadres ao dia das comadres, do domingo magro ao domingo gordo, até chegar ao dia do Entrudo. Era uma sequência de celebrações que enchiam o coração da rapaziada de uma alegria pura e despreocupada, feita de pequenos prazeres e tradições que se repetiam, ano após ano, como um ritual sagrado.

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