“Apparição” escrevia-se com dois pês e “annunciada” com dois enes, no dia em que nascia a Gazeta da Lagoa, a 1 de outubro de 1892. Nessa altura ainda a República não tinha chegado ao “paiz”, que também terminava com um zê em vez do atual esse. Há 128 anos os jornalistas assinavam os artigos com pseudónimos, eram presos e perseguidos e nessa altura já se escrevia sobre a liberdade de imprensa, ou a falta dela, nos jornais da Lagoa e da região — já lá iremos.
Hoje, o cenário é rotundamente diferente, mas continua a impor-se falar de liberdade de imprensa quando até com isso, uma pandemia pode mexer. “Costumo dizer meio a sério meio a brincar que no dia em que não tivermos liberdade de imprensa é porque no dia anterior a democracia morreu”, começa por dizer Paulo Simões ao Diário da Lagoa. O diretor do Açoriano Oriental (AO) fala de forma aguerrida de tudo o que implica defender a liberdade dos jornais e dos jornalistas. No passado dia 29 de abril viu-se obrigado a vir a público defender uma reportagem do diário que dirige há 18 anos. Nesse mesmo dia, o coordenador regional de saúde pública dos Açores tinha exibido um símbolo de proibido numa projeção que fez em powerpoint sobre uma reportagem do AO sobre a pandemia. Na conferência de imprensa semanal de atualização dos dados da pandemia na região, Gustavo Tato Borges considerou que a reportagem “Restrições transformam Ponta Delgada em cidade fantasma” tinha uma mensagem “errada” sugerindo mesmo um novo título. “Foi um momento de grande infelicidade, não tenho dúvidas nenhumas de que se tratou de censura. A censura não é apenas o ato prévio. Aquela que aconteceu é uma censura de condicionamento, foi censurar a atitude de um jornal e condicionar ou tentar condicionar a maneira de se comunicar as notícias relativamente à pandemia”, garante o diretor do AO. Paulo Simões considera que o coordenador de saúde pública tem o direito de “discordar das abordagens que são feitas” mas “alterar o título que ali estava para o que ele achava mais correto, é tentar condicionar o trabalho da comunicação social e nós não podemos compactuar com isso porque abrimos um precedente e a liberdade de imprensa tem de ser total, não há meias liberdades de imprensa”, assegura Simões.
Opinião diferente tem a presidente do Sindicato dos Jornalistas (SJ) (em funções até ao passado dia 19 de maio). “Temos que ter um bocadinho de cuidado com os termos, censura é uma coisa bastante grave, censura é mesmo quando do outro lado não há hipótese de reagir”, considera Sofia Branco. “Pressão não é censura. O jornalista do AO foi impedido de trabalhar a partir dali? Não. O jornal foi impedido de sair para as bancas? Não. A administração demitiu a direção de informação por causa daquele caso? Não. A consequência da censura tem de ser muito mais forte”, assegura a responsável do SJ.
Já Paulo Simões não tem dúvidas de que “ a censura não é apenas o ato prévio e ele [Gustavo Tato Borges] censurou claramente a notícia do AO, o próprio símbolo que é escolhido é manifestamente infeliz”, assegura. Sofia Branco considera que “é abusivo, claramente, e quis-se de certa forma ridicularizar. A sociedade devia ter reagido a isso, os media dos Açores, no sentido coletivo deviam ter reagido a isso”, diz, e o próprio jornal avançar para a justiça caso o entenda, mas para o sindicato “a auto-regulação e a auto-decisão” deve prevalecer neste caso.
A palavra “pressão” acaba por não se dissociar do jornalismo mas quando se fala de jornalismo regional e local, onde a proximidade e a familiaridade são denominadores mais do que comuns, o termo ganha ainda mais força. A somar a isso, veio uma pandemia que virou muitos mundos do avesso. A covid-19 limitou a liberdade de informar? Ao Sindicato dos Jornalistas chegaram vários exemplos: uma equipa de jornalistas da agência Lusa foi impedida pela PSP de passar a fronteira. “Nunca ninguém disse que os jornalistas não podiam passar as fronteiras. Essa equipa não passou mas a segunda equipa passou depois de falarmos com o Ministério da Administração Interna”, conta Sofia Branco. A presidente do sindicato garante que a pressão sobre a imprensa regional e local é maior do que no continente. “À boleia da pandemia, várias autarquias diziam que os jornalistas não podiam ir a reuniões de carácter público. Há maiores dificuldades de convivência na liberdade de imprensa regional e local e isso agravou-se com a pandemia”, garante a responsável.
No continente e nos Açores também se limitou o acesso às conferências de imprensa de atualização da evolução da pandemia. O diretor do AO defende que as conferências de imprensa, que sempre aconteceram na ilha Terceira, devem ser deslocalizadas, sempre que necessário. “É aqui o foco do problema e para mim enquanto jornalista há questões que eu quero colocar que têm haver com São Miguel e que assim não funciona. Quando as coisas estão a pegar fogo aqui não faz sentido que o Governo não desloque as conferências para responder àquilo que os jornalistas têm a perguntar”, defende Simões.
Norberto Silveira Luís, ex-diretor do Diário da Lagoa (DL), segue agora a pandemia na ilha de São Jorge, para onde se mudou depois de deixar a direção do jornal. Considera que a pressão sobre os jornalistas nos Açores “é muito pior” sobretudo quando o assunto é político. Garante que enquanto foi diretor nunca recebeu nenhum telefonema a contestar nenhum artigo. “Até podem achar que é mentira na Lagoa mas nem tudo é como as pessoas querem ou pensam que é. Na rádio sim, tive telefonemas a tentar pressionar para fazer ou não fazer”, assegura.
“No dia em que não tivermos liberdade de imprensa
PAULO SIMÕES
é porque no dia anterior a democracia morreu”
Já Paulo Simões garante que por mais de uma vez foi pressionado. Quando voltou para São Miguel, depois de alguns anos a trabalhar em Lisboa, assumiu a direção do AO. “Como é que vou contar isso?”, questiona a rir. Sem querer tornar públicos os episódios em que se viu envolvido, garante apenas que já foi alvo de pressões dos dois lados do espectro político açoriano ao longo das quase duas décadas à frente do jornal mais antigo do país.
Norberto Silveira Luís conta que numa campanha eleitoral, em particular, que o DL cobriu teve “muitas críticas”. Pela primeira vez, garante o ex-diretor, “as pessoas da Lagoa tiveram oportunidade de falar sobre o que ia mal na sua freguesia e sobre o que devia ser feito. Houve críticas porque era impossível as pessoas dizerem aquilo. Nós demos liberdade às pessoas para dizerem o que queriam mas depois essa liberdade não era aceite por outras pessoas porque achavam que aquilo não era assim”, lamenta.
A política acompanha a história da imprensa em todo o mundo e a Lagoa, não foi exceção. A investigadora e professora universitária de História, Susana Goulart, estuda o que nos antecede e ajudando a perceber o presente.
No primeiro número da Gazeta da Lagoa, com que começámos este artigo, assinava o editorial um tal de Samorim. “Se estivéssemos nas redes sociais diríamos que era um perfil falso, este Samorim não existe”, assegura a investigadora. Susana Goulart explica que, na altura, era muito comum recorrer a pseudónimos para escapar às perseguições. “Como eles sabiam que havia editoriais que não eram assinados com os nomes próprios, faziam uma perseguição em dominó”. No caso, os monárquicos, iam atrás do jornalista que defendia a República. Caso não o encontrasse “ia-se atacar o editor, se o editor não fosse identificado ia-se atrás do dono da tipografia, era uma censura em dominó a tentar silenciar quem era progressista ou regenerador”, explica a docente.
No primeiro número da Gazeta da Lagoa, Samorim escrevia que “por motivos completamente alheios à nossa vontade temos retardado a sua publicação e quando impera uma lei como a lei da imprensa, toda a cautela é pouca para que não sejamos vítimas d´esse aborto”. A justificação embrulhada em forma de aviso anunciava que a repressão era constante. “A lei da imprensa facilitava a repressão judicial sobre tudo o que era jornais e havia uma grande liberdade para prender jornalistas ou autores de artigos de jornais contra a monarquia”, explica a investigadora.
Na década em que saiu a Gazeta da Lagoa, a taxa de analfabetismo chegava aos 80 por cento. Ainda assim, mesmo com censura, pressões e perseguições, o número de jornais impressos na Lagoa ao longo das décadas ultrapassou a dúzia.
O número de jornais impressos era reduzido e os custos elevados. “Para manter um jornal aberto naquela altura era preciso muita coragem, muita ousadia e também financiamento”, garante Susana Goulart. Apesar de encontrar paralelismos entre o que foi e o que é a imprensa na atualidade, a investigadora considera que hoje, a História é bem diferente e a liberdade, a todos os níveis, é incomparavelmente maior e mais rica.
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