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Luís de Camões: poesia e verdade

Maria do Céu Fraga
Professora e camonista

A tentativa de desenhar ou antecipar o porvir instalou-se inegavelmente na nossa vida diária e, a par do culto do contemporâneo, produz uma inquietação que leva à desvalorização mais ou menos passiva ou voluntária do passado.  Não obstante, no centro da nossa literatura – ao falarmos, seja de criação, seja de crítica e história literárias – continuamos a encontrar, naturalmente, Luís de Camões e a dialogar com a sua obra. E neste ano em que se celebram 500 anos do nascimento do Poeta, a reflexão impõe-se: de onde nasce este imperativo da presença de Camões na nossa sociedade? O que representa a sua obra na cultura dos nossos dias? O que vale e para que serve?

Poucos livros e raros escritores resistem à usura do tempo. Muitos atingem notoriedade na sua época, são lidos, louvados e discutidos porque correspondem circunstancialmente às exigências do seu tempo e da sociedade, mas passados alguns anos ou décadas envelhecem nas estantes e apenas quem os leu deles guarda memória.  Outros, nem isso. Ora tanto Os Lusíadas, publicados em 1572, como as Rimas, postumamente reunidas e publicadas em 1595, resistiram, impuseram o nome do seu autor e conservam o poder de nos interessar e comover a cada leitura. São obras de natureza muito diversa, mas numa e noutra nos reconhecemos, individual e colectivamente, no orgulho da partilha de uma língua nobilitada pelo trabalho poético, no espírito épico que percorre a História nacional, na constante interrogação sobre o lugar do homem no universo, na multiplicidade de cambiantes sentimentais que coexistem em cada um de nós, apesar de se contradizerem, e nos fazem reconhecer a glória e a miséria humana. 

O interesse pela obra leva-nos também, de forma natural, à curiosidade pelo Poeta, pela sua vida, pela sua inserção no mundo histórico e social. Daí, em parte, o interesse que renasce nos nossos dias pelo valor testemunhal das cartas em prosa que lhe são atribuídas, bem como pelos pormenores de uma biografia em que, desde o próprio século XVI, se sentiu haver aspectos a deixar no esquecimento. 

Camões vive numa época em que os poetas “vão a tudo”, como dizia Sá de Miranda, que, por volta de 1526, introduziu entre nós as formas da poesia renascentista e, com elas, a possibilidade de adoptar literariamente os ideais humanamente representativos da sua época. Sá de Miranda é da geração anterior a Camões, e foi ele quem primeiro compôs, em português, sonetos e canções, por exemplo, passando de um verso curto de 7 sílabas, típico da poesia peninsular (ainda hoje persiste na poesia popular) para um verso longo, em que 10 sílabas permitem uma maior discursividade. 

Nos finais do século XV e ao longo do século XVI, em Portugal como na restante Europa, às letras foi confiado o papel de reordenar o mundo, construindo racionalmente a sociedade e o homem. Ao escritor, os humanistas apontaram o poder da palavra, exigindo que a cultura fosse responsabilizada pelo aperfeiçoamento pessoal e cívico. E, dobrada a primeira metade do século XVI, as letras tinham ganho um vigor que era alimentado, em grande parte, pela política da Coroa, nomeadamente pela acção de D. Manuel e depois pela de D. João III, e acompanhava alterações da vida política e social. A formação de novos padrões ideais do cortesão não esquecia o papel das armas, mas contemplava também o amor, a dignidade humana e as letras. 

Até ao início do século XVI, os portugueses tinham visto na poesia sobretudo uma forma de entretenimento e de convivialidade – o brilho dos serões da corte real portuguesa nos finais do século XV e início do XVI perpassa nas trovas do Cancioneiro Geral, publicado em 1516. Ora, na linguagem chã e expressiva que lhe é característica, Sá de Miranda garantia que não há temas vedados aos Poetas; mais ainda, caber-lhes-ia o esclarecimento dos responsáveis políticos. 

Sem perder a sua função de comunicação sublimada e de jogo social, cortesão, a literatura passará também a ser responsável por revelar um mundo novo, artisticamente imaginado e aperfeiçoado; ao lado da descoberta científica, a sociedade consagrava espaço para o conhecimento e para a reflexão acerca do próprio homem, do seu lugar no universo, da individualidade de cada um. 

“Os poetas vão a tudo” – e Camões vai a tudo. Total e apaixonado de cada vez, não há temas ou atitudes que considere estarem fora da sua esfera de reflexão, mesmo se puderam parecer inconvenientes a alguns críticos. 

No fundo, ao lermos Camões e ao tentarmos criar uma imagem sua, tomamos bem consciência de ser próprio da condição humana que a unidade da personalidade, individual ou colectiva, não se faz pelo sacrifício do que “salta fora” da racionalidade exigida a quem constrói literariamente uma personagem fictícia. O sentimento épico e o elegíaco, o tom dramático e o desespero trágico não excluem o amor delicado ou o bucolismo lírico com que convivem e com que muitas vezes se entrecruzam. Seja quando se alegra ou se entristece, seja quando se revolta ou aceita as incertezas e contradições que sente e que sabe fazerem parte de si próprio e da nossa condição, Camões afirma em cada poema a sua própria dignidade. 

E com isso, lendo Camões, reencontramos o mundo e somos livres para o imaginarmos.