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Professora Ana Paula Andrade defende “um investimento total no ensino artístico” desde o pré-escolar

Ao nosso jornal recorda o seu percurso, reflete sobre o ensino e alerta para a necessidade de se investir na música para sermos “cidadãos mais completos”

Ana Paula Andrade é professora de piano e análise e técnicas de composição © ACÁCIO MATEUS

Encontramo-nos com Ana Paula Andrade no Conservatório Regional de Ponta Delgada numa tarde de sol. Enquanto procuramos uma sala disponível para a entrevista, com corredores repletos de histórias e de música, tanto crianças como antigos alunos paravam a professora para abraçá-la e eram, assim, recebidos com um sorriso rasgado e brilho nos olhos. Ao Diário da Lagoa (DL), começa por dizer que se considera “uma pessoa realizada”. Nasceu, em 1964, em Ponta Delgada, e desde cedo que sonhava ser pianista, tendo concluído o curso geral de música no Conservatório Regional para depois voar até Lisboa para estudar no Conservatório Nacional. Após cinco anos de estudos, regressou à sua ilha para uma carreira de sucesso. Desde 1989 que é professora de piano e análise e técnicas de composição no conservatório, onde também desempenhou o cargo de presidente do conselho executivo de 2004 a 2019, sendo também responsável pelo coro infantil desde 2003.
Ao nosso jornal recorda o seu percurso, reflete sobre o ensino e alerta para a necessidade de se investir na música para sermos “cidadãos mais completos”.

DL: É por gosto que está no ensino da música?
Sou uma pessoa muito feliz, sinto-me abençoada pela vida e por tudo o que tenho conseguido ao longo dos anos. Cada vez mais sinto que é um privilégio trabalhar naquilo que gosto. Claro que há condicionantes, pois no ensino há mais regras do que quando somos um artista que vive especificamente da arte. E tem que existir essa disciplina, mas estou dentro da área da música, onde gosto de ensinar e de estar rodeada de alunos, inclusive de antigos alunos que depois voltam para fazer uma visita e que depois dizem que nós professores fomos importantes para eles. Tudo isto faz com que seja uma vida muito cheia, repleta e rica.

DL: Na casa da sua avó havia um piano. A presença do instrumento influenciou-a?
Vivíamos com a minha avó e o piano estava lá, penso que foi decisivo. Na família não tínhamos profissionais da música, mas a música estava sempre presente. Antes de entrar para o conservatório fazia experiências no piano. A minha mãe perguntava-me sempre se eu queria ir para o conservatório e eu dizia que não, apesar de gostar e ir a concertos e das tais experiências, mas só aos nove anos é que ingressei no conservatório. Também pelo que me contou a minha professora de iniciação musical e de piano na altura, a dona Natália Silva — que foi uma das pessoas mais importantes na minha vida —, eu dizia sempre que queria ser pianista.

DL: Conseguia conciliar o ensino regular com o ensino artístico?
Sim. Na altura, entre 1970 e 80, existiam menos professores e alunos, a questão é que hoje em dia os alunos têm muitas mais atividades e ficam muito dispersos. Na minha geração não, pois quase não víamos televisão, nem havia jogos de computador, o que nos permitia ficar mais focados. Atualmente é mais difícil captá-los, sendo que há exceções e de uma maneira geral acredito que estejam aqui por gosto mas sinto que a aprendizagem do instrumento exige uma experiência, dedicação e organização extrema e os alunos hoje em dia estão muito dispersos por inúmeras atividades.

DL: Depois decidiu ir para Lisboa. Deixar a família, a realidade de uma ilha, para ir estudar e viver na capital foi um choque?
Foi um choque muito grande, não era como hoje em dia em que há internet. Lembro-me de chegar na varanda do lar e desatar a chorar. Mas tive a felicidade de encontrar uma colega daqui que já estava a estudar no conservatório nacional e que me acolheu. Depois fomos viver juntas noutra casa e aí iniciei uma vida nova. Fui abençoada porque os meus pais nunca me colocaram qualquer entrave, pois aceitaram a decisão e fui também muito apoiada pela minha professora Natália Silva. Era para ficar três anos em Lisboa e acabei por ficar cinco. Durante esse tempo tive igualmente a oportunidade de trabalhar para me sustentar e fiz dois cursos, tendo concluído em 1988.
Recordo-me que o que mais custou foi voltar para Lisboa depois do primeiro Natal. Liguei para a minha professora de piano, porque queria voltar para São Miguel e ela disse-me: “nem pensar, a tua vida é aí”. Dou graças a Deus por isso, pois os professores do ensino artístico são muito mais do que professores, são família.

 © ACÁCIO MATEUS

«(…) quando vemos estes resultados
sentimos que é possível
(…) é preciso ter talento, trabalhar muito,
ter espírito de entrega,

acreditar que se é capaz.
Se é esse o desejo, nunca desistam,

é preciso é crer.»

ANA PAULA ANDRADE

DL: Ao chegar ao conservatório regional verificamos que está cheio de alunos. Há um aumento de inscrições no ensino artístico. Como encara este facto?
Fico muito feliz. Aliás, sempre defendi que o ensino artístico e a cultura estão ligados. Tem que ser obrigatoriamente parte integrante da vida de um cidadão o mais cedo possível. Nem todos podem integrar o ensino especializado, nem conseguimos receber toda a gente, mas no ensino regular sempre foi obrigatório a partir do segundo ciclo, o que é muito tarde. Todos os alunos deviam ter, desde o pré-escolar, um professor do ensino artístico específico da área. Para mim é um triângulo entre educação, cultura e ensino artístico. Tudo isto é que faz com que as pessoas possam tornar-se cidadãos mais completos. Pelo que me apercebi, o aumento pode levar a que se abranja o ensino artístico no primeiro ciclo, o que é excelente, pois revela a sensibilidade e o reflexo de que mudança passa exatamente por essa formação. Temos cerca de 500 alunos no conservatório, mas não podemos pensar que todos vão ser músicos. Se 50 forem músicos profissionais, temos 450 que vão ser um público culto e mais sensível.

DL: Tem um projeto junto de uma escola. Pode contar-nos mais sobre a iniciativa?
Nos últimos anos, temos apostado muito em projetos em parceria com escolas do ensino regular para sensibilizar as crianças.
Eu tenho o projeto “Cantando é que a gente se entende” há cinco anos na Escola dos Milagres, na freguesia da Covoada, porque sempre gostei de alargar a música para fora de portas. É uma escola pequena, consigo numa manhã abranger todos os alunos. Não queria deixar ninguém de fora e tenho crianças desde o pré-escolar até ao quarto ano. É tão gratificante chegar lá e questionarem-me: “professora, vamos ter música hoje?” É a alegria deles ao perceberem que a música faz parte da formação e da escola, é isso que tenho pena que não exista em todas as escolas.

DL: Tocou em concertos no Coliseu Micaelense, no Canadá e nos Estados Unidos da América, entre outros. São boas recordações?
Muito boas recordações. Podia ter optado por ficar no continente, mas quando cheguei a Lisboa já pensava em regressar à minha terra. Sempre gostei do conservatório regional, é a minha segunda casa e família, por isso quis sempre continuar o projeto das minhas professoras. Quando cheguei cá havia falta de professores, por isso fiquei logo empregada. E, depois, ir tocar a Toronto várias vezes ou tocar como solista com a orquestra na Universidade de Massachusetts são oportunidades que se calhar no continente não conseguia. Aconteceu através das nossas comunidades e pelo facto de ter voltado para os Açores.

DL: É a professora que é hoje devido aos professores que a marcaram?
Sem dúvida. Nós procuramos o exemplo dos nossos professores e só tive bons exemplos. Quando tenho alguma situação mais delicada penso no que elas fariam se estivessem no meu lugar. Sou hoje em dia aquilo que sou graças aos meus professores. Em Lisboa também tive professores que me marcaram: o professor Christopher Bochmann, a Melina Rebelo e o compositor Joly Braga Santos. Inclusive fiquei mais um ano em Lisboa para trabalhar com ele — comemora-se este ano os 100 anos do seu nascimento. Foi tão marcante para mim esse último ano em que acabei por ficar quase como aluna privada dele. Aprendi imenso. Foi um compositor com um percurso fantástico que tem que ser divulgado. Os nossos professores são uma dádiva, temos um bocadinho esse dever de prolongar o que nos transmitiram.

DL: Considera que investir no ensino da música torna os açorianos mais felizes?
Sem dúvida. Eu costumo dizer que a música é boa em qualquer momento, até nos tristes podemos encontrar conforto. Obviamente que uma pintora dirá a mesma coisa e eu acredito que sim, pois todas as áreas artísticas são importantíssimas. Mas acho que é mais fácil chegar a todas as pessoas, mais rapidamente, através da música. E já se tem investido muito na cultura, mas há sempre muito mais a fazer. A minha preocupação é que haja oportunidade para todos desde pequeninos. Temos aqui cerca de 500 alunos, temos projetos que abrangem mais escolas ainda, há as filarmónicas que são excelentes escolas de música, mas custa-me ainda que exista alguns sítios onde a música não chega. Há muitos talentos escondidos e às vezes vemos crianças com muito talento e os pais não têm sensibilidade para perceber que devem ajudar, ou seja, tem que partir também do apoio dos pais, os professores não podem fazer isso sozinhos. Tentamos sensibilizar, mas alguns pais não sentem que é importante. Se houver um investimento total no ensino artístico desde cedo, cobrindo toda a gente sem exceção, muitos mais talentos vão aparecer.

DL: Para concluir. É possível um jovem açoriano sonhar com uma carreira artística?
Sim, cada vez mais. Nós temos muitos antigos alunos espalhados pelo mundo e alguns em lugares de destaque. Estamos num meio tão pequeno mas quando vemos estes resultados sentimos que é possível e que tivemos a capacidade de lhes dar as asas para voarem. Obviamente que depende da aspiração de cada um, é preciso ter talento, trabalhar muito, ter espírito de entrega, acreditar que se é capaz. Se é esse o desejo, nunca desistam, é preciso é crer.

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Clife BotelhoDirector

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