
Roberto Medeiros
Não sei quantas mais histórias irei ainda contar sobre as gentes da minha terra. Mas uma certeza me assiste: “Antes Que A Minha Memória Se Apague”, deixarei o que vivi, ouvi e vi inscrito nas páginas dos meus quatro livros — dois dos quais já viram a luz do prelo. Nesta crónica, trago ao papel mais uma memória viva, costurada de saudade, terra e gratidão. Uma memória que fala de dois rostos — um presente, outro já ausente — que carregam consigo a alma laboriosa de Água de Pau.

Foi ao revisitar esta antiga fotografia de agricultores da nossa vila — homens e mulheres da lavoura, sacho na mão, suor no rosto — que se reacendeu em mim a lembrança. Naquela imagem, captada na chamada “Terra de Reis”, lugar de entrada pelo Boqueirão e ladeado pelos históricos Jardim das Murtas, Lourinhos e Junqueiras, via-se o esforço de gerações inteiras. Ali, entre rostos jovens e experientes, saltou-me à memória um nome. O pai daquele jovem, que viria a ser o maior agricultor-camponês que esta vila conheceu.
Mas para chegar a ele, preciso recuar aos anos 80.
Naquele tempo, eu e a minha esposa Maria saíamos de casa, no Cinzeiro, ainda antes da aurora. O céu ainda não se desenhava em cores, quando cruzámos caminho com um homem e uma criança. Ambos levavam o sacho ao ombro e barrete na cabeça. A curiosidade levou-nos a perguntar para onde iam tão cedo. A resposta do pai foi simples e cheia de sentido: “Antes de ir para a escola, o meu filho vai-me ajudar a sachar um pedaço de vinha.”
Era um pequeno terreno, por trás da nossa casa, na subida para o Cinzeiro de Cima. A imagem daquele menino, determinado, orgulhoso do seu papel na tarefa familiar, ficou-me marcada na alma. Havia ali mais do que obediência: havia consciência, missão e pertença.
Passaram-se os anos. O pai — homem de respeito, conhecido como mourinho do trabalho e bom-sacho, título honroso da nossa vila — partiu cedo, deixando filhos pequenos, mas já moldados para a vida. Quanto ao menino do Cinzeiro? Fez-se homem. E não apenas homem, mas o maior agricultor da nossa vila, e um dos mais produtivos da ilha de São Miguel.
É, hoje, agricultor de profissão e de paixão. Sabe da terra como poucos: semeia com ciência, colhe com arte, enfrenta pragas, lê os ventos e as chuvas. Alimenta cooperativas, sustenta famílias, honra o campo. Explora dezenas de moios de terra — e um moio, não esqueçamos, representa sessenta alqueires de terra lavrável. O seu sucesso é espelho da nossa fertilidade e da riqueza das terras de Água de Pau, comparável apenas às planícies de Santana, na Ribeira Grande.
Pediu-me, no entanto, que não escrevesse o seu nome. E respeito-o. Porque nesta terra, infelizmente, ainda há quem castigue o mérito com inveja. Mas a grandeza de um homem vê-se pelo que planta — e pelo que deixa depois de colher.
E se dele falo em silêncio, dela falo em voz alta. Isabel Sachola. Nome de mulher, mas símbolo de força bruta e coragem meiga. Era da antiga Rua das Escaninhas — hoje Rua do Foral Novo — e dizia-se dela que cavava como nenhum homem conseguia acompanhar.
Num certo dia, quando contratara alguns rapazes da Praça da República para cavar um terreno junto aos secadouros de tabaco da Fábrica Estrela, os homens não aguentaram o seu ritmo. Um dos genros foi, então, pedir ao meu pai que lhe deixasse ir falar aos homens que estavam com a sogra na terra. “A sogra não os pode tratar como escravos”, dissera-lhe um dos homens. Mas a verdade é que a Ti Isabel apenas exigia uma coisa: que a acompanhassem… se pudessem.
Usava calças de homem, empunhava o sacho com firmeza, impunha-se no campo como igual — ou superior — aos homens da vila. Era temida no trabalho, mas adorada em casa. Mulher de fibra e de ternura, símbolo de uma geração que viveu da terra e com ela se fez respeitar.
A Vila de Água de Pau foi feita de gente assim: trabalhadores, valentes, resistentes. Gente que não cede à preguiça nem à maledicência. Gente que honra a terra como quem honra os seus. Estes dois nomes — o de hoje e o de ontem — representam o que de melhor temos: dignidade no trabalho, orgulho nas origens e amor pelo que se faz.
É por eles — e por todos os que neles se revêm — que escrevo.
Antes que a minha memória se apague.
E que as memórias da nossa terra se percam no esquecimento dos que não souberem olhar para trás para seguir em frente.
Comentários
Bem escrito e bem contado me lembro bem como era naquela época