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A emigração levou famílias inteiras d´Água de Pau

Roberto Medeiros

Na década de 1960, Água de Pau viveu uma ferida aberta — uma perda lenta, mas profunda, que marcou para sempre a história da vila. Famílias inteiras partiram em direção ao desconhecido. Eram mais de mil pessoas. Só da rua dos Ferreiros — a antiga artéria de pedra gasta pelas gerações — saíram mais de 300. A velha pedreira, antes cheia de vozes e vidas, ficou em silêncio. Casa sim, casa não, ficou vazia. As janelas cerraram-se, os cortinados deixaram de esvoaçar com o vento do Sul, e os passos nas calçadas tornaram-se mais raros.

Os que saíram procuravam mais do que uma nova vida: procuravam futuro para os filhos. Deixaram para trás os campos férteis do Valongo, da Amoreirinha, da Terra-de-Reis e da Caloura — terras que, durante séculos, sustentaram a vila. Braços que regavam, cavavam, ceifavam e colhiam, partiram. E com eles, partiu também o coração da comunidade.

© DIREITOS RESERVADOS

Era a necessidade que os empurrava. A escassez de trabalho, os salários miseráveis, e a certeza de que, ficando, os filhos teriam um destino igual ou pior. Partiam com fé no peito e saudade nos olhos. Deixavam pais e mães, irmãos, vizinhos, as festas de Nossa Senhora dos Anjos e do Espírito Santo e o toque do sino da igreja matriz que ecoava pela vila toda até às terras da Eira na Amoreirinha.

Curiosamente, a emigração não foi aleatória. Os da rua dos Ferreiros criaram raízes em New Bedford, nos EUA, e em Montreal, no Canadá. Como se quisessem reconstruir, tijolo a tijolo, a sua rua noutro lugar do mundo. Já os das ruas da Arrochela, da Travessa da Natividade e do Valverde de Cima, encontraram em Bristol, Rhode Island, um novo lar. Levavam a fé consigo — e isso vê-se nas festas religiosas organizadas pela diáspora, onde trajes tradicionais, danças, folclore e imagens santas ainda hoje são reverenciados como se estivessem na própria vila.

Na fotografia acima, uma família posa em trajes de romaria e devoção. As crianças sorriem, mas os olhos dos adultos trazem o peso da memória. A mulher mais velha segura uma imagem sagrada — talvez de Nossa Senhora dos Anjos ou do Senhor Santo Cristo dos Milagres. É o retrato vivo da ponte entre a terra que se deixou e a fé que se levou. A emigração não foi apenas um movimento de pessoas — foi uma travessia cultural, emocional e espiritual.

Água de Pau perdeu muito com a emigração. Perdeu braços que lavravam a terra e rostos que davam vida às festas e às ruas. Mas ganhou também uma diáspora orgulhosa, que nunca se esqueceu de onde veio. Que transmitiu aos filhos o sotaque dos Açores, as receitas da avó, o respeito pelo trabalho e a fé enraizada. Que fez questão de continuar a celebrar os impérios, as filarmónicas, os cortejos e a língua — mesmo do outro lado do oceano.

Hoje, os filhos desses emigrantes já são americanos ou canadianos de nascimento. Mas dentro deles vive Água de Pau. Vive nos nomes que ainda sabem pronunciar, nas músicas que ainda sabem cantar, nos sonhos dos pais e dos avós que um dia cruzaram o Atlântico para que eles pudessem ter mais do que aquilo que a terra lhes permitia.
Foi a coragem de partir que garantiu a continuidade da memória.

Quando o coração sabe o caminho de regresso

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Há histórias que resistem ao tempo. E há regressos que não precisam de mapa, porque o coração conhece cada beco, cada ribeira, cada pedra onde se brincou em criança. Assim foi o regresso de Victor e João Porto à sua terra natal — Água de Pau, vila ainda de alma rural, de caminhos terrosos e memórias que permanecem intactas, mesmo passados 49 anos de ausência.

Foi no Beco do Saco, junto à rua do Cura, que estes dois irmãos nasceram. Em 1966, partiram com os pais e a irmã rumo à América, como tantos outros açorianos da sua geração. Victor tinha 10 anos. João, apenas 8. A infância ficou-lhes gravada na memória, como uma fotografia antiga guardada numa gaveta da alma.

Durante quase meio século, nunca mais regressaram aos Açores. Até que, em outubro de 2014, integrados numa comitiva de emigrantes de Dartmouth, a ilha chamou por eles — e eles responderam com um regresso carregado de emoção.

Ao entrarem em Água de Pau, mal passaram pela Praça da República (ou como se diz por brincadeira, “a nossa Times Square”), pediram logo para virar depressa na rua da Carreira. Queriam ver a casa onde nasceram, tocar nas paredes que guardaram os primeiros anos da sua vida. Levei-os até lá — mesmo em contramão — e vi-os emocionarem-se ao tocar nas pedras da velha casa.

Foi um reencontro com o tempo e com a verdade das raízes.

Depois, caminhámos juntos pelas ruas que a memória não deixou apagar. No Largo de Santiago, agora sem a ribeira aberta nem lavadeiras, evocaram as festas de 15 de agosto, os bailaricos e os piqueniques, os dias de melancia e risos. Perguntaram-me pelo velho “Crockett”, lembraram-se dos marrecos na água e das brincadeiras com os amigos de infância.

Fomos ao Pico do Monte Santo, onde se vê toda a vila de uma vez só. E ali ficaram por instantes, em silêncio, a contemplar aquilo que nunca verdadeiramente deixaram: a sua terra.

Na Caloura, o João lembrou-se de, em pequeno, ter ido de barco com o pai até ao Ilhéu da Vila, durante a festa da Senhora das Dores. Memórias que voltaram à tona como se tivessem sido vividas ontem.

Ao cruzarem-se com algumas pessoas mais idosas, o espanto e o reconhecimento foram mútuos: todos se lembravam dos pais. E esse pequeno gesto de memória partilhada, esse fio que liga gerações, deu-lhes uma alegria difícil de descrever.

“Parece que nunca saímos daqui”, disseram-me. E eu percebi: realmente, nunca saíram.

A tarde foi passando e, com ela, o sentimento claro de que esta visita não seria a última. “Temos de voltar com a família toda. Eles precisam de conhecer isto, de sentir isto.”

E antes de regressarem à comitiva, visitámos ainda uma plantação de ananases e o Convento do Senhor Santo Cristo, símbolos maiores da ilha que continua a fazer ponte entre o passado e o presente.

Despedi-me deles com um abraço, sabendo que levavam Água de Pau no peito como bandeira. Vão regressar à América, sim, mas transformados em verdadeiros embaixadores da terra que os viu nascer.

Porque há lugares que nunca se esquecem.

Porque há raízes que, mesmo à distância, continuam a crescer.

E porque, como bem disseram no final do dia, entre sorrisos cheios de saudade:

“Água de Pau desbanca!”

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