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O Bajulador

Rui Tavares de Faria
Professor e Investigador

O bajulador é o segundo tipo humano sobre o qual Teofrasto discorre nos Caracteres. À semelhança do que sucede com os demais, o autor começa por definir o conceito ético, neste caso concreto a bajulação, para, depois, elencar cerca de uma dezena de aspetos e/ou situações em que atuam os indivíduos tidos no rol dos bajuladores. Citando Teofrasto (Char. 2.1.), “a bajulice define-se como uma colagem degradante, mas lucrativa para o adulador,” carácter que deve ser distinguido da complacência. Segundo Maria de Fátima Silva em nota à tradução portuguesa, Aristóteles estabelece um contraste entre o bajulador e o complacente na Ética a Nicómaco (1108a 26-29), onde se lê: “dos que se esforçam por ser amáveis (…) aquele que exagera sem nenhum objetivo é o complacente; aquele que o faz na mira de obter qualquer vantagem é o bajulador.”

Nos dias que correm, o termo “bajulador” não é desconhecido das pessoas. Confrontados com frases ou exclamações do tipo “Aquele fulano assume-se, agora, o melhor amigo do Sr. Diretor… é um grandessíssimo bajulador!”, até os indivíduos menos familiarizados com a palavra em causa chegam facilmente ao seu significado: “Ah! É um graxista! Um lambe-cus!” Na verdade, “dar graxa” ou “lamber o cu” (em sentido metafórico, claro) é um comportamento humano tão antigo quanto a própria espécie. Para tirar proveito de uma certa condição, de um certo favor, sempre o homem se predispôs ao ato de “engraxar”, “bajular”. Trata-se, portanto, de uma atuação ética que, embora por vezes ensaiada, conforme os objetivos ou lucros que pretende atingir o bajulador, flui como que naturalmente na nossa sociedade atual.

Tal como o dissimulado, que se comporta na maior das espontaneidades, também o bajulador se manifesta como se fosse perfeitamente normal elogiar tudo e todos; contudo, permanecem (ainda) escondidos os verdadeiros intuitos por que se norteiam tamanhos panegíricos. Teofrasto diz que o bajulador está permanentemente ao lado ou muito perto do alvo do qual tenciona aproveitar-se, “arranca-lhe um borboto do casaco, ou tira-lhe dos cabelos qualquer palhita que o vento lá tenha deixado. E a sorrir, vai dizendo: ‘Estás a ver? Há só dois dias que te não vejo, e a quantidade de brancas que te apareceram na barba. Se bem que se diga que, para a tua idade, tens uma barba bem preta’.” (Char. 2.3.) O episódio apresentado pelo autor dos Caracteres não é de todo original e encontra correspondências no nosso quotidiano. Quantas e quantas vezes não começa o bajulador por adular-nos, referindo-se à nossa aparência física, negando (com a falsidade que lhe esconde os fins lucrativos da adulação) aquilo que os nossos próprios olhos veem diante do espelho todos os dias? “Estás mais magro!”, diz-nos o bajulador, quando a balança bem no-lo contraria. “Tu estás cada vez mais novo, caramba!”, enaltece-nos o bajulador, quando o cartão de cidadão não mente e as dores nas articulações nos denunciam, em dias mais húmidos, que estamos precisamente é mais velhos! Serão inócuos esses elogios?

Mas a atuação do bajulador não se fica por considerações elogiosas ao físico das suas vítimas, os tais piropos intencionais que levantam amiúde a autoestima de que não a tem bem nivelada, a adulação com fins lucrativos estende-se igualmente – ou sobretudo – à manifestação de comportamentos que chegam a ser abusivos. Teofrasto dá-nos conta, com bastante graça, da multiplicidade de modi operandi desse tipo humano: “se o parceiro abre a boca para falar, o bajulador manda calar toda a gente; e, entretanto, vai-lhe fazendo elogios, de modo que ele os ouça.” (Char. 2.4); “a quem quer que se lhes apresente pela frente, manda parar, para dar passagem a Sua Excelência.” (Char. 2.5); “se o sujeito vai de visita a um amigo, o bajulador corre à frente a anunciar” (Char. 2.8). Enfim, na incessante necessidade de se mostrar prestável, quando, no fundo, o que quer é “plantar verde para colher maduro”, o bajulador está ao inteiro dispor daquele que mais não é do que uma vítima, o bajulado.

De que modo nos é possível, hoje, em pleno século XXI, – num país como o nosso, onde a corrupção e o favorecimento dependem do “engraxanço” e do “culambismo”, termos que intitulam uma crónica de Miguel Esteves Cardoso, primeiramente publicada no Público, em julho de 1995, e agora integrada no seu livro Último Volume, cuja leitura recomendo vivamente – conviver com pessoas que, ao invés de nos reconhecerem (com ou sem elogios) por aquilo que somos, numa clara valorização da meritocracia, nos bajulam a toda a hora? É este o estado em que se encontra a sociedade – a de ontem, a de hoje e a de amanhã. A evolução da espécie humana, em termos de carácter, e não só, caminha para um descalabro que se caracteriza pela (quase) total ausência de valores e princípios éticos edificados sobre a verdade e sobre a consciencialização de que o convívio entre os homens não tem de se pautar pela falsidade, pelo oportunismo ou pela bajulação. Dos bajuladores – os estranhos simpáticos, sempre prestáveis e com um sorriso esboçado – livrai-nos, [Senhor!]

Como evitar que caiamos no discurso das falinhas mansas dos bajuladores? Em primeiro lugar, creio que aceitar um elogio, seja de quem for, de maneira efusiva como se estivéssemos a ouvir a mais bela declaração de amor não é um procedimento adequado; acho até que é mais de meio caminho andado para nos precipitarmos nas malhas da bajulice. Por isso, reconheçamos a simpatia do elogio do bajulador com um simples obrigado. Em segundo lugar, acredito que os indivíduos que sofrem de baixa autoestima apreciem com bons olhos as considerações lisonjeiras de quem os adula. Nestes casos, o recurso a terapias devidamente certificadas pode ser o melhor remédio a ter de cair na rede da adulação. Em terceiro e último lugar, sou da opinião de que devemos ter a perfeita consciência do que somos e do que valemos, tornando-se-nos, assim, possível detetar, em tempo útil, as investidas do bajulador. Se nos diz, por exemplo, que estamos muito bem fisicamente, anuímos, dizendo que os nossos espelhos em casa não nos são mentirosos; se nos diz que estamos bem para a idade que temos de facto, acrescentamos que a lei da vida nos favorece; se nos gaba a viva-voz para que possamos ouvi-lo, mesmo não estando ao nosso lado, atuamos como se os prazenteios não nos fossem dirigidos. Nada como não reagir.