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Rodrigo nasceu surdo mas usa a música para fazer ouvir a sua comunidade

“Sou surdo, mas, como surdo, consigo sentir a música. Consigo senti-la através do ritmo, das batidas e das vibrações do chão, que fazem com que eu consiga sentir a música”, afirma Rodrigo Furtado. Vídeo onde interpreta o hino dos Açores tem mais de 30 mil visualizações

Rodrigo Furtado tem 18 anos e quer ser “ativista político” © D.R.

Rodrigo nasceu surdo, mas a música tem vindo a ocupar uma importância crescente na sua vida. Por isso aceitou o repto da sua intérprete, quando esta lhe sugeriu que participasse no concurso “Jovem Autonomia”, promovido pela Direção Regional da Juventude (DRJ), que convidava os jovens da região a interpretarem o hino dos Açores.

Venceu a Estudantina Universitária dos Açores, com uma “interpretação sublime” do hino, lê-se na página de Facebook da DRJ. A interpretação que mereceu o grande prémio conta mais de 20 mil visualizações. A versão em língua gestual, de Rodrigo Furtado, conquistou o “prémio especial de interpretação mais original” e conta já com quase 30 mil visualizações, mais do que a que venceu o concurso.

“O prémio foi importante, mas a marca principal é mostrar a língua gestual”

Não podemos ficar na retaguarda. Foi uma forma diferente de mostrar o hino dos Açores”, conta, acrescentando que esta participação foi “muito positiva”.

“Sinto-me muito orgulhoso, porque quero que as pessoas saibam que existem os surdos e que podemos todos comunicar. É também uma forma de sensibilizar a comunidade”.

Para Rodrigo, o papel central da música começou a construir-se em 2018, ano em que atuou, pela primeira vez, no festival Tremor. A 9 de abril de 2019, Rodrigo Furtado voltava a subir ao palco no mesmo certame, desta feita com honras de abertura da última edição antes da pandemia, no Teatro Micaelense.

Não ia sozinho, bem pelo contrário. Aquele que foi um dos concertos com maior afluência daquela edição, em público e em artistas, teve como protagonistas alguns utentes da Associação de Surdos da Ilha de São Miguel, acompanhados pela Escola de Música de Rabo de Peixe, num espetáculo desenhado e desenvolvido pela ‘ondamarela’. Naquele dia, ecoou no Teatro Micaelense uma mensagem de inclusão, que ficou gravada nos que lá estiveram: “Nenhum homem é uma ilha”, ouvia-se e sentia-se.

Três anos depois, Rodrigo, hoje com 18 anos, vai voltar ao Tremor, numa edição adiada, que se realizará de 7 a 11 de setembro, em São Miguel.

Aquele primeiro contacto com a música “foi uma experiência, uma aprendizagem. Senti-me muito bem com isso. Senti que as pessoas estavam sensibilizadas com a música, com os surdos. Foi espetacular”.

Antes de pisar as tábuas de uma das maiores e mais prestigiadas salas de espetáculo dos Açores estava “um bocadinho nervoso”, confessa, mas acabou por ser “fantástico”.

“Senti que podia ter algumas falhas, mas, como praticámos antes de ir para lá, foi emocionante”. “Sinto também que a música me tranquiliza. Quero aprender mais coisas com a música. Não pretendo ser um profissional, mas quero continuar sempre a ter essa ligação com a música”, garante.

“Sinto também que a música me tranquiliza.
Quero aprender mais coisas com a música.
Não pretendo ser um profissional,
mas quero continuar sempre
a ter essa ligação com a música”


Desde que começou, em 2018, essa ligação “ficou”, realça. E é também por esse meio que dá os primeiros passos no ativismo, um objetivo de vida, dando visibilidade à comunidade surda.

É assim, com música, que vai dando os primeiros passos em direção ao futuro. Rodrigo quer ser “ativista político” e lutar “pelos direitos das pessoas surdas”, destaca.

Porque “nenhum homem é uma ilha”, o percurso é feito com os olhos postos na Europa, em Bruges, na Bélgica. O seu objetivo é cursar Estudos Transatlânticos, no Colégio da Europa.

Quer fazê-lo, porque lhe interessam as questões políticas, mas também “para tentar ajudar a Região Autónoma dos Açores”, diz.

Um primeiro passo já está dado, com o exame de economia feito. “Foi difícil… Pensei que ia ser mais fácil. Perdi tempo, possivelmente não vai ser uma nota muito boa”, confessa. “Mas sinto-me bem e tenho de aceitar que, às vezes, as coisas não correm tão bem como esperamos. É importante as pessoas aceitarem as suas falhas, ao longo da vida, ir adaptando”.

Para já, quer terminar o ensino secundário na área que escolheu, a de Ciências Socioeconómicas, mas pondera voltar atrás para fazer disciplinas de Humanidades que lhe darão acesso ao curso que deseja completar, como História.
As dificuldades são muitas e a comunicação ainda é uma barreira, reconhece, “porque a maioria das pessoas não sabe língua gestual”.

Para marcar esta entrevista com o Diário da Lagoa, foram precisas seis tentativas, para conjugar as disponibilidades dos intérpretes, tendo mesmo havido um cancelamento no próprio dia, porque a intérprete teve de acompanhar uma criança surda ao hospital. Essa é uma das primeiras coisas que Rodrigo quer mudar: o “acesso à saúde, o acesso à educação” e a todos os outros “serviços públicos”.

“Tem de haver equidade de direitos entre os cidadãos ouvintes e surdos. As pessoas deviam-se sentir bem integradas na sociedade. Um dos problemas que existe é, por exemplo, um surdo que vá parar ao hospital, devia ter direito a um intérprete sem ter de pagar, porque se tiver de levar um intérprete, terá de o procurar e ser responsável por ele”, destaca.

Surdos sem direito a intérprete para acesso a serviços públicos

Mas o problema de comunicação também se deve resolver por outra via: “Tanto os surdos como os ouvintes devem todos saber língua gestual”, frisa.

“A nossa primeira língua é a língua gestual. Para os ouvintes, por exemplo, a segunda língua é o inglês, para nós, a nossa segunda língua é o português. A língua gestual devia ser obrigatória, da mesma maneira que se ensina inglês”. Outra das suas reivindicações é que toda a programação na televisão tenha, pelo menos, legendagem, quando não for possível ter intérprete.

Até lá, Rodrigo Furtado vai trilhando o seu caminho, com os olhos postos na Europa e o coração ancorado nos Açores. Mas, antes, há a música, com mais um espetáculo do Tremor, marcado para o dia 10 de setembro.

Inês Linhares Dias

Reportagem publicada na edição impressa de setembro de 2021

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