Rui Tavares de Faria
Professor e Investigador
O Enredador é o tipo ético que ocupa o oitavo lugar na lista dos caracteres humanos de Teofrasto. Não se trata de uma palavra com a qual o leitor do século XXI não esteja familiarizado, em particular o micaelense, que verá, na descrição do autor grego, a imagem do conhecido “enredeadeiro”. Este último termo não existe nos dicionários da língua portuguesa; aceita-se a forma “enredadeiro”, talvez por a outra (o “enredeadeiro”) ser nossa, de São Miguel, e, pelo que pudemos apurar, das outras ilhas açorianas também. Da sua morfologia gramatical consta o nome “enredo”, que significa trama, narrativa ou ação, no âmbito dos estudos literários, e historieta, imbricada e digna de mexerico, no âmbito da cultura popular, muito particularmente da açoriana.
De acordo com Teofrasto, “a enredação é uma invenção de palavras e factos falsos, que o enredador pretende…” (Char. 8.1). Nada mais atual, portanto. Analisando a definição do autor helenístico, ao enredador cabe o papel de lançar rumores, florear boatos, fazer mexericos, sempre na base do que não corresponde à verdade. Nos Caracteres, esta figura é caracterizada como sendo alguém que busca obter dos outros novidades para, em seguida, as divulgar de modo deturpado, mas, assinala Teofrasto, “a fonte das suas histórias é sempre um tipo que ninguém poderá contestar” (Char. 8.5). O mesmo é dizer que o enredador falseia a informação que ouve ou recebe e não deixa de identificar a proveniência do enredo falso, numa clara tentativa de se ilibar da gravidade do que lhe sai pela boca fora.
Na atualidade, contamos com um número assaz avultado de enredadores. Abordam-nos com a novidade, que normalmente nos surpreende através de um “então sabias que…”, e rematam com um “foi fulano quem me disse.” Somos confrontados com indivíduos e situações dessas N vezes, seja no local de trabalho, seja num dado espaço social, seja até em casa. A atuar em qualquer um desses domínios há os enredadores convictos do seu mau carácter (há-os, de facto!) e os que se deixam levar, ingénuos, pelas falsidades que lhes dizem ou transmitem e, procurando fazer conversa, nem que seja de circunstância, acabam envolvidos involuntariamente na rede do disse-que-me-disse.
Além de se ocupar da dissimulação das histórias que lhe contam, o enredador também tem por hábito divulgar, segundo Teofrasto, a novidade a toda a gente. Apesar de lhe dizerem “Guarda só para ti o que sabes”, ele “vai, numa correria, contar a mesma história à cidade inteira.” (Char. 8.10). Ora este comportamento é também característico do mexeriqueiro, aquele que, por não ter vida própria ou por a sua própria vida ser desinteressante, vazia ou valer pouco, passa o tempo todo a “levar e trazer”, ou seja, ouve dum lado e logo o transmite a terceiros e por aí fora. O enredador cria, promove e torna complexa a rede de enredos que, num instante, se converte num jogo de enganos, numa panóplia de intrigas falsas de que sai amiúde ileso, porque não esquece de identificar ou nomear, ainda que sem certezas, a fonte do mexerico, que é alguém incontestável.
Incrível é apercebermo-nos de que, nos dias de hoje, quando todos se queixam de falta de tempo, sobretudo por razões de ordem profissional, ainda há quem tenha disponibilidade para vestir a pele de enredador. Ironias da contemporaneidade que refletem um hábito tão antigo quanto o próprio homem: a mexeriquice, a enredação. Do conjunto de atitudes que podemos tomar perante a abordagem de um enredador está a sugestão educada do “Mete-te na tua vida!” ou a pergunta brusca “Que tens tu que ver com isso?”. Nem sempre desarma a intenção curiosa do enredador, mas, ao menos, estamos em crer que reduz a energia de enredar a todo o tempo e com toda a gente.
Se, para alguns, este tipo humano revela a falta de sensatez do indivíduo, para outros, é uma fonte de informação que desmerece o rigor dos meios de comunicação social. Neste sentido, instala-se uma espécie de rede paralela, a dos enredadores-mexeriqueiros, caracterizada por uma série de conexões que se querem necessárias a certos indivíduos para que tomem certas medidas ou cheguem a determinadas conclusões. Pensemos no cenário do nosso espaço profissional. Quantas vezes não nos questionam, com falinhas mansas, sobre o que pensamos acerca de um dado assunto ou sobre que ideia temos formada acerca de um tal colega? Quantas vezes não nos perguntam coisas das nossas vidas pessoais por detrás de um simpático, mas falso, “estás bem”? Quantas vezes um colega nos aborda para dar conta dos seus queixumes para de nós obter uma anuência comprometedora acerca de outros? É o enredador a encher o seu poço de enredos para logo o esvaziar nos primeiros ouvidos de quem estiver por perto, à sua espera.
Trata-se, na verdade, de um tipo humano francamente comum o enredador. Quando menos esperamos, temo-lo à nossa beira para contar o que ouviu de não sei quem para pôr em causa o que disse outro não sei quem. Nós, ouvindo-o e acenando-lhe com a cabeça, mostrando o interesse e a atenção de um interlocutor comum e educado, acabamos por nos ver enredados nas suas malhas e, sem contar com o desfecho dos mexericos, ainda terminamos na cadeira do réu, do mau da fita, porque, dada a ausência de escrúpulos e de carácter do enredador, até podemos ser nós os identificados como a fonte da história que, falsa e floreada, é divulgada pelo enredador a toda a gente.
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