Rui Tavares de Faria
Professor e Investigador
Sobre o complacente, o quinto carácter acerca do qual discorre Teofrasto, há uma série de considerações que aproximam este tipo ético da figura do bajulador, situação à qual fizemos referência no texto anteriormente publicado neste jornal, no passado dia 1 de março. Procuremos, então, não cair num discurso repetitivo, porque, se o autor grego retratou dois caracteres tão semelhantes em separado, quer isto dizer-nos que nos é, também, possível distingui-los ou, pelo menos, evidenciar alguns dos traços que os afastam, no âmbito da contemporaneidade.
A relação entre o bajulador e o complacente tem sido alvo de estudo por parte de uns quantos filólogos classicistas. Maria de Fátima Silva, em nota à sua tradução portuguesa do tratado do autor helenístico, esclarece-nos: contrariamente ao bajulador, há “um objetivo egoísta que, em Teofrasto, move o complacente: o desejo de ser agradável para obter popularidade ou influência. Logo, sem propriamente desejar vantagens materiais imediatas, o complacente pretende manter um relacionamento afável, e talvez proveitoso, com um círculo o mais agradável possível.” Por outras palavras, o complacente é o indivíduo que está sempre muito simpático e sorridente, que é solícito a toda a hora, e há de colher frutos doces dessa sua atitude. O seu comportamento torna-se, por vezes, de tal modo previsível que o tomamos, num segundo ou terceiro reencontro, como uma autêntica personagem plana, designação técnica para classificar, no âmbito dos estudos literários, a personagem cujo ethos não regista quaisquer alterações ao longo da ação da narrativa ou do drama.
No nosso entender, o complacente é aquele simpático irritante com o qual se deve ter certo cuidado. Chegamos mesmo a questionar a naturalidade e a veracidade da sua simpatia sorridente. E nessa nossa dúvida percebemos que, no fundo, se trata de uma figura pouco escrupulosa. Vejamos, mais ao pormenor, o que acerca dele escreve Teofrasto, para verificarmos a (segura) correspondência com a versão atual(izada) do perfil ético sobre o qual incide o nosso texto. Segundo o autor antigo, o complacente “vê um tipo ao longe e vá de cumprimentá-lo por ‘vossa excelência’; com reverências e mais reverências, dá-lhe um grande abraço e, sem o largar, acompanha-o por algum tempo, pergunta-lhe quando o voltará a ver, e só então, depois de mais alguns piropos, se vai embora.” (Char. 5.2.)
Estou certo de que o meu/a minha leitor(a) já se terá relembrado de uns quantos complacentes com quem se tenha cruzado – e ainda se cruzará. É o «ó su dotôr(a)» para cima, é o «ó su dotôr(a)» para baixo, uma autêntica roda dos ventos de «ó su dotôres» e «ó su dotôras», a Norte, a Sul, a Este e a Oeste. Portugal é, como alguém disse no passado, um país que não precisa de «su dotôres», porque já era, na altura, abundante em «su dotôres». Talvez seja também por isso que assume um desgoverno há umas boas décadas. O complacente, se não é «su dotôr», sabe como agradar o interlocutor que é (apenas) licenciado(a) e se toma por «su dotôr». Que júbilo! É o que faz usar, erradamente, a abreviatura ‘dr. (a)’, amiúde empregue para designar quem tem concluída uma licenciatura e enverga o título no cartão bancário ou na placa que o(a) identifica no local de trabalho. Doutores são os que efetivamente se doutoraram; também não são aqueles que, por importação linguística anglo-saxónica, vestem as batas brancas e nos cobram quase uma centena de euros para exercer, em 15 minutos, o mistério da medicina. Além das formas de tratamento, potentes armas discursivas na boca de um complacente, há também os cumprimentos enlaçados a sorrisinhos que, no rosto desse carácter humano, tocam a caricatura. Lá vem ele ao nosso encontro só para nos desejar ‘bom dia’ e saber se estamos bem de saúde. Quando isso sucede às segundas-feiras, não haverá quem não lhe queira “ir às ventas”! O complacente é o tipo que, no dizer de Teofrasto, não é simpático, ele “esforça-se por ser simpático” (Char. 5.3.), o que não é bem a mesma coisa, como sabemos. Sentimos que algo está mal, pois o olhar do complacente não condiz com o seu sorriso ou, então, a forma como cerra os dentes, enquanto sorri, denuncia a falsa simpatia que faz por esconder.
Se, num contexto agonístico de debate ou conversa acesa entre amigos/colegas, o complacente diz sim “não só à parte que apoia, mas também à contrária, para dar um ar de imparcialidade” (Char. 5.3.), o que sucederá quando tiver de tomar ele próprio uma decisão relativamente a si ou aos seus? Será através de um sorriso ou de uma anuência submissa que o complacente resolverá a situação de conflito ou confronto de ideias/opiniões contrárias? Pode, na verdade, vestir a pele de um “Maria vai com todas…” ou alistar-se como político “vira-casacas”. Voltando-nos, com efeito, para esta última alternativa, assinalaríamos (eu, pelo menos, assinalo), no cenário político do nosso país e das suas regiões autónomas, os complacentes que se sentam à direita, à esquerda e ao centro, assim como os que, antes, se sentaram à esquerda e, agora, se sentam à direita, ou vice-versa. Seria um jogo do loto com muitos números a descoberto, fácil e rapidamente cruzados, enquanto se assistia a outro jogo, o de quem se senta na cadeira, para ver quem apanha qual, à medida que a música vai sendo interrompida. Há, infelizmente, quem fique sempre de fora, isto é, nunca se senta. Para esses casos, há sempre remédio: funda-se outro partido político!
Não tenhamos dúvidas de que a complacência será sempre um traço de carácter intrínseco ao fulaninho e à fulaninha que chegaram onde chegaram, sendo ou não «sus dotôres», e, se o forem, serão abreviados, com certeza. Quando se diz e não se escreve – refiro-me ao «su dotôr(a)» – tomam-se todos por igual. Mas não são, não são todos iguais, complacentes, caros(as) leitores(as). Como sugestão de trato a ter com os praticantes dessa tendência ética, porque não abordá-los do mesmo modo e nos mesmos termos com que se nos dirigem? Acredito que o complacente, tendo a perfeita consciência do seu teatro diário, se dará conta de que algo está a correr mal. É um pouco como ‘virar o feitiço contra o feiticeiro’. Fica, ao menos, a ideia engraçada. Creio que se pode brincar com a complacência.
Os leitores são a força do nosso jornal
Subscreva, apoie o Diário da Lagoa. Ao valorizar o nosso trabalho está a ajudar-nos a marcar a diferença, através do jornalismo de proximidade. Assim levamos até si as notícias que contam.
Comentários
Brilhante.