Francisco Almeida Famoso, quando estava “quentinho”, depois de ter bebido na taberna do Tio Chico Inácio (hoje CASA ABEL, na Praça) subia a rua da Carreira, em Água de Pau, falando consigo, em voz alta, dizendo: – ” Qual é a graça que Deus dá? É comer… e não pagar! Ora o tio Francisco Famoso tinha um moinho, era portanto um moleiro. As pessoas levavam-lhe o milho para moer, mas depois… não lhe pagavam. Geralmente o tio Francisco Famoso, não era exigente, nem impertinente, mas “consciente” e quando bebia um copinho a mais de vinho de cheiro da Caloura, gostava de dizer sempre essa cantilena: “Qual é a graça que Deus dá?… É comer… e não pagar!”
O vinho de cheiro da Caloura era durante a década de 1960 e antes dela, um dos responsáveis pelos alevantes, brigas e alegrias e até de “danças de valeta-a-valeta”, nas praças de Água de Pau. E, quando se diz “praças” não é por engano. Água de Pau, sempre teve a sua Praça Velha e a Praça Nova onde no tempo das vindimas a “vinhaceira” corria e escorria pelas goelas abaixo de centenas de campónios, como hoje correm as cervejolas em dia de festa na mesma praça, 50 anos depois.
E, se na Praça Velha sempre houve tabernas de bom vinho, pois, na Praça Nova, construída no fim da década de 1940 com a demolição das casas que constituíam o prolongamento da rua da Trindade entre a casa de Mestre Antero Matos Amaral (depois, supermercado “A Cova da Onça” e atualmente “Meu Super”) e o Fontenário de Nª Sª dos Anjos, também tinha as suas tabernas de bom vinho da Caloura.
“A função de goela, ninguém foge a ela”
Era por ali, na Praça Nova, que começava a “prova” dos vinhos. A primeira “prova” era na taberna do senhor Manuel da Ponte “Tatchina”, que era presidente da Banda de Música Fraternidade Rural. Era ali que os ainda candidatos a bêbedos da noite, encostavam a barriga ao balcão e começavam a beber.
Como normalmente o caixeiro dizia que o seu vinho é que era o melhor, de todas as tabernas da terra, então o nosso amigo, entrava logo a seguir na do vizinho, para tirar teimas. Assim era e depois seguia-se a do Tio António Miguel, que para lhe acreditarem, que o seu é que era mesmo o melhor, acompanhava o cliente na rodada…o que levava o freguês a nova corrida, agora oferta da casa!
Quando o nosso amigo, já a trocar as canelas, saía desta taberna, tinha à sua frente 3 degraus para subir, então virava-se para a direita e ia de enfiada para a taberna seguinte logo abaixo do senhor João de Matos Costa “bota-abaixo”, onde, para isso, só tinha de descer um degrau, e, abicando p’rá direita, quando dava por si, já lá estava o senhor António Baptista “cão-da-rua”, a gozar com ele, questionando-lhe a bebedeira do seguinte modo: – Já estás estragado da vinhaceira que bebeste antes de entrares aqui. Por isso não te aguentas! Foi com barrela, que te encharcaram! Aquilo é tudo “acido-tártaro e meta bissulfito”, que eles põem no vinho. A gente aqui “é tudo pura uva de cheiro[!]” argumentava António Baptista que se referia aos conservantes que se colocavam no vinho para o mesmo se aguentar mais tempo nos toneis, das adegas que não conseguiam vender o seu vinho logo após as vindimas. Independentemente das tabernas que ainda o nosso amigo e muitos outros tinham de fazer “prova-de-vinho” até chegarem à Praça Velha era uma aventura repleta de histórias cómicas de “danças-com-esses” e de braços abertos e mãos encostadas às paredes das casas da rua da Trindade de cabeça inchada. Principalmente ao sábado à noite, que era quando se recebia a “féra” de uma semana de trabalho. Isso queria dizer que antes de irem para casa a maioria dos camponeses passavam pela taberna onde sabiam ter uma boa pinga ou então corriam a via-sacra, de uma para a outra.
No canto da Rua da Carreira, onde eu e os meus amigos, passávamos ao fim do dia e aos fins de semana, muitos momentos agradáveis a conviver, era ali também que por vezes assistíamos, na altura das vindimas, ou do vinho novo da Caloura, à “travessia” dificílima que os “encharcados” do vinho-de-cheiro, tinham de fazer, depois de ter entrado em todas as tabernas.
Desde a do senhor Manuel da Ponte Branquinho “Tátchina”, passando pela do Tio António Miguel, do senhor João de Matos “Bota-Abaixo”, até chegar à mercearia “A Comercial” do senhor Armando de Melo. Quando chegava aí… é que estava tudo perdido!!!
Para atravessar a rua da Carreira até ao passeio da casa do senhor Braga, a distância era muito grande (sete metros) para quem já tinha bebido muitos quartilhos de vinho. Então, os engraçados bêbedos equilibrando-se, de mãos coladas à parede da casa do senhor Armando de Melo…fixavam a porta em frente, que dava acesso aos baixos da casa do senhor Braga, mesmo ali ao nosso lado, encostados à parede do canto da mesma casa.
Era uma cena fora do comum, o homem puxava a barreta para a frente, depois puxava para trás e, parecia que ia arrancar… mas depois… dava a ideia de ser uma partida em falso.
Equilibrava-se de novo… fixava a porta e… lá ia ele…de passos rápidos, atabalhoados. Parecia um barco remando em mar bravo. Andava em passos sempre aos “ésses” e quando estava mesmo a aproximar-se do outro lado do passeio, tropeçava no lancil e afocinhava contra a porta de madeira com caixilho de vidros, que caíam aos bocados estilhaçados no meio do chão.
A gente ajudava-os a levantar-se, mas nunca os ajudamos a atravessar! Que maldade a nossa! Gostávamos de os ver a fazer a travessia…era essa a graça, claro! Só sei que mais tarde aquela porta, deu lugar a uma janela, pois foi fechada até um metro de altura em blocos de alvenaria de cimento. Bom, eram frequentes os prejuízos que esses amigos proporcionavam com as suas travessias “de cabeça inchada”. Atualmente tem no seu lugar uma porta em vidro que dá entrada à Farmácia Mântua, agora ali instalada.
(Crónica publicada na edição impressa de outubro de 2020)
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