Um português, dois espanhóis e um italiano entram num curso intensivo de commedia dell’arte. E assim começa a viagem do português Miguel Seabra no Teatro Meridional, que iniciou o seu percurso, em 1992, com o espetáculo de estreia “Ki Fatxiamu Noi Kui”.
A peça fez sucesso em Lisboa, antes de arrecadar o prémio de melhor espetáculo no Festival Internacional de Teatro de Casablanca.
“O que fazemos nós aqui?” era a pergunta posta em palco logo no arranque da atividade teatral do ator, e à qual este tem respondido, nos quase 30 anos de vida da companhia que fundou, como quem sabe que a resposta estará na determinação de ensaiar sempre novas perguntas.
A 26 de maio de 1995, o ator preparava-se para subir ao palco do Teatro São Luiz para mais uma récita de “Cloun Dei”, “Palhaços de Deus, no grafismo latino”, a segunda produção do Meridional.
“Estávamos a fazer ajustes de luz, ao fim da tarde, quando eu me viro para o técnico e digo ‘Estou a sentir-me mal, acho que vou desmaiar’. Deitei-me no chão – portanto, desmaiei como um senhor, com muita elegância… Não caí”.
Tinha tido um AVC (acidente vascular cerebral), que o deixou em coma durante dez dias e com o movimento condicionado no lado direito do corpo ainda hoje em dia. Tinha 30 anos, conta, em entrevista ao Diário da Lagoa, Miguel Seabra, ator, encenador e diretor artístico do Teatro Meridional.
Seguiram-se longos meses de tratamentos, durante dois ou três anos, em Inglaterra.
“Fui, não sei quantas vezes, às vezes uma semana, às vezes duas, às vezes três semanas. Fui muito tempo. Teres uma fisioterapeuta muito qualificada, todos os dias, durante dez meses, é algum dinheiro. Sou um privilegiado, tenho pais que me proporcionaram isso, tive o apoio da Gulbenkian, que foi significativo, e estas coisas têm que ser referenciadas, porque fazem a diferença”.
O acidente vascular foi no lado esquerdo do cérebro. Fisicamente, afetou-lhe o lado direito do corpo, mas também a fala.
“A fala, recuperei-a, muito com a ajuda inicial da Natália Luiza. Vivíamos juntos, na altura, e ela fugia à vigília das enfermeiras e punha-se debaixo da minha cama e obrigava-me a repetir frases, muitas sem sentido, para eu não perder o músculo da fala”.
A doença não ficou por aí. “Apanhou muito da mão, e a mão, na zona da cabeça que a representa, que tem a representação do corpo, ocupa um terço. Temos a chamada motricidade fina, coçamos, apontamos, tocamos piano, tiramos um macaco, fazemos uma festa, damos um murro”.
Não recuperou totalmente a mobilidade, mas foi vencendo aos poucos o que o AVC lhe tirou.
“O meu lado competitivo, que não gosta de perder nem a feijões – agora já está mais adocicado –, mas fiz muitos tratamentos, muito trabalho sozinho. Ainda hoje faço, em casa, muito trabalho de recuperação, constantemente, diariamente. Aquelas idas a Inglaterra, acupunctura, massagens shiatsu, alimentação, reiki, modelos de exercícios que criei de acordo com a minha fisicalidade e disponibilidade física, e, portanto, recuperei”, conta.
Apesar da tragédia de, “com 30 anos”, se ver “afetado de uma forma forte fisicamente”, teve “muitas coisas a favor”, relata.
“Primeiro, sou do Belenenses. Os Belenenses são uma estrutura desportiva que entra em competições e, portanto, é competitiva. Eu sou competitivo. Mas, devido às condições, não é um clube que seja muitas vezes campeão. Portanto, sei lidar bem com a derrota”, concretiza.
Havia a afasia, mas, “cognitivamente, estava bem, e isso faz muito a diferença, em termos de perceção”. “Perceberes como estás, aceitares como estás, e tomares decisões, ter coragem de tomar decisões. Para baixo, todos os santos ajudam. Para cima, é mais desafiante, é mais difícil, tem de se ter força de vontade, estar bem acompanhado. Um AVC é como uma granada que explode no peito. Rebenta-te todo. E os estilhaços também atingem quem está à tua volta”.
Para além disso, contou com “muito apoio da Natália Luiza, principalmente” e reconhece que tem “uma boa família, de sangue e não-sangue” e que os seus pais, “felizmente, tinham dinheiro para os tratamentos”.
“Sou capricórnio, também, e tenho boa autoestima e perseverança. Sou otimista, modéstia à parte, sou resiliente, não desisto facilmente, adapto-me bem às questões, e não tenho outro remédio”.
Deixar de ser ator “passou pela cabeça”, mas, como já referiu, é capricórnio e do Belenenses.
“Dentro das funções ligadas ao Teatro Meridional que exerço – que são várias, sou ator, encenador, desenhador de luz, sou professor, dou workshops e formação, e também faço parte da direção, tenho responsabilidades ao nível da gestão do projeto –, se me perguntasses o que é que eu punha em primeiro lugar, eu dir-te-ia que sou ator”.
Continua a resposta, dizendo que, “pondo essa possibilidade, de voltar a fazer teatro”, mas perde-se. “São estes pequenos, micro esquecimentos, ainda devido ao AVC. Felizmente, lá está, com a minha autoestima e educação, nunca me permiti ter vergonha de dizer que me esqueci”.
Mas prossegue: “Repara que eu só fiz teatro, só subi a palco, em sete espetáculos diferentes. Fiz muito pouco teatro como ator”.
Voltou aos palcos no pequeno auditório do Centro Cultural de Belém, com o espetáculo “Ñaque ou sobre piolhos e atores”, do dramaturgo espanhol José Sánchez Sinisterra, no âmbito da Expo98, três anos depois do AVC.
“Era um espetáculo de hora e meia de texto. Texto, texto, texto, texto”, reforça.
Naquela altura, a afasia que lhe perturbava a fala “ainda não tinha passado totalmente”, mas volta a evocar o poder de ser do Belenenses, ser Capricórnio e ter o apoio de Natália Luiza.
Fez “pouco teatro”, diz, mas fê-lo muitas vezes. “O Senhor Ibrahim e as Flores do Corão”, peça que interpreta sozinho e que trouxe ao Teatro Micaelense em 2019, já vai em 139 récitas. “Temos o objetivo de chegar às 200, não sei se chegaremos”.
Vinte e seis anos depois, já passou “por períodos de mais conforto, menos conforto, mais deceção, menos deceção, mais depressão, com o otimismo todo e com autoconfiança”.
Mas ter passado pelo processo “bem, cognitivamente, e independente é uma situação privilegiada”. Permite “reflexão, ponderação, pensar o que é a vida e o que estou aqui a fazer. O lugar das pessoas dentro de mim. O artista que há em mim, o que é que quer dizer, o que é que pode dizer. Os grandes dramas, as grandes tragédias, são também oportunidades privilegiadas de crescimento, de evolução. Eu, pelo menos, tento olhar para o meu AVC e vivê-lo dessa forma”.
E essa forma é “muito à vontade”: “Como podes ver, trato-o por tu. Ele tratou-me por tu, sem pedir autorização, então eu disse: ‘Está descansado, que te vou tratar por tu também’”.
Todas essas características levam-no a concluir que tem “muito boas condições para ter um AVC”, diz a rir-se, antes de insistir que tem “muito bom perfil de vida para ter um AVC”.
A história de Miguel Seabra confunde-se com a do Meridional, que nasceu do seu encontro com dois espanhóis e um italiano, não num bar, mas numa formação. Passou por mutações, mas mantém-se firme, prestes a celebrar o 30.º aniversário, em 2022.
Da formação inicial, o italiano cedo seguiu outro rumo. Depois de firmado um “Tratado de Tordesilhas teatral”, o Meridional acabaria por ganhar um homónimo ‘hermano’ espanhol – “A diferença é que o português, o Teatro Meridional original, mãe, diz-se Meridional, e em Espanha diz-se Téátro Mérídiónal”, brinca o ator.
No cantinho português da Península Ibérica, sobraram Miguel Seabra e a também portuguesa (e moçambicana) Natália Luiza, que esteve, desde o início, na retaguarda, mas, em 2000, passa para “um primeiro plano”, assumindo com ele a direção artística.
A companhia atua em quatro eixos: encenação de textos originais; criação de novas dramaturgias baseadas em adaptações de textos não teatrais; encenação e adaptação de textos maiores da dramaturgia mundial; e a criação de espetáculos onde a palavra não é a principal forma de comunicação cénica.
Foi distinguida 34 vezes a nível nacional e 11 a nível internacional, com especial destaque para o Prémio Europa Novas Realidades Teatrais, em 2010. É um caminho laureado, mas, como na canção de José Mário Branco, veio de longe, de muito longe, e o que andou para aqui chegar.
Foi, aliás, o cantor que lhe ensinou que “podem estar 10, 500, 3.000 pessoas” na sala, mas isso não importa, porque “um artista, e, falando na arte do teatro, um ator, quando está em palco, comunica com a Humanidade”.
Em 2019, trouxe ao Teatro Micaelense “O Senhor Ibrahim e as Flores do Corão”. Naquele dia, “estavam à volta de 100 pessoas”, estima o ator. “São as melhores 100 pessoas do
Agora, o amor pelo teatro e pela itinerância, que marcam o ADN do Meridional, trazem a companhia novamente aos Açores, desta vez com um espetáculo que lhes é dedicado.
“Quanto mais perto estás da morte, mais vivo te sentes”. É com este mote que o Teatro Meridional convida à descoberta de “Ilhas”, um espetáculo “cujos pressupostos conceptuais de construção assentam na exploração das linguagens gestual, plástica e musical, visando – através de um olhar subjetivado e sem o recurso à palavra como principal veículo de comunicação cénica – tornar expressivo um universo inspirado no arquipélago dos Açores”.
“Ilhas”tem estreia marcada para 10 de dezembro, no Teatro Micaelense, que recebe, no dia seguinte, outra récita. Será ainda apresentado em janeiro, no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa.
O espetáculo insere-se no Projeto Províncias, que nasce do ímpeto de itinerância da companhia e a leva a regiões emblemáticas do país, para residências artísticas que dão origem a espetáculos, que se enquadram no quarto eixo de atuação artística do Meridional.
Para isso, rumaram, durante cerca de uma semana, às ilhas de São Miguel e Terceira, encenador (Miguel Seabra), dramaturga (Natália Luiza), cenógrafo e figurinista (Hugo Matos), músico (Fernando Mota) e videasta (Ricardo Reis), numa “pesquisa antropológica”.
“Percebemos os costumes, a história, os hábitos, os pontos fortes e pontos mais frágeis, a história cultural, ou a história histórica, e depois há estes pontos, a rocha vulcânica, o fogo, a lava, os tremores de terra, a água, a humidade, as festas religiosas, o pendor religioso muito forte, na Terceira também há a largada de touros, o homem contra a besta”.
A obra será pontuada por “sonoridades, aproveitando até artisticamente a sonoridade do sotaque açoriano, que é muito específico e muito bonito”, com uma dramaturgia que “parte das singularidades das nove ilhas, umas em relações às outras”.
“Vai haver uma forte componente sonora, musical, a acompanhar todo o espetáculo, como uma paisagem emocional pontuada pela tensão musical”, conta o encenador, antes de referir que “os Açores vão desde o silêncio mais silencioso à imagem do vulcão, da erupção, da tempestade, do mar revolto, dos ventos fortes. Têm uma amplitude de referência sonora muito vasta. Portanto, necessariamente, passaremos por momentos de mais tranquilidade, onde não acontece nada, a momentos mais ritualísticos”.
Ainda que a palavra não ocupe um espaço primordial, há um trabalho essencial de dramaturgia, a cargo de Natália Luiza.
“A Natália fez uma longa pesquisa à volta das lendas que há nos Açores, em cada ilha, e fez uma pesquisa muito grande, também, de poesia açoriana, escrita por açorianos”.
Há também um “trabalho de pesquisa profunda, através de imagens”, para a cenografia e figurinos, a cargo de Hugo Matos, que não tem “pretensão nenhuma de imitar, ou de fazer mimese”, adianta Seabra.
“É muito desafiante não cair no cliché, quando se fala de Açores. Do postal… É muito atraente, porque tem uma potência estética fora do comum, é um dos lugares mais bonitos do mundo”.
Mas não é só isso, “há outra coisa”. “Nesse lugar, que se chama Açores, quem manda é a Natureza, é muito mais forte que o Homem”.
Num espetáculo onde o trabalho dos atores se reveste de especial importância, sobem ao palco para interpretar “Ilhas” os açorianos David Medeiros e Miguel Damião, e ainda Ana Santos, Emanuel Arada, Joana de Verona e Rosinda Costa.
“Ilhas” é uma produção do Teatro Meridional, com co-produção do Teatro Nacional D. Maria II e do Teatro Micaelense.
Miguel Seabra nasceu a 11 de janeiro de 1965, em Lisboa.
É licenciado em Teatro, pela Escola Superior de Teatro e Cinema.
Fundou o Teatro Meridional em 1992, onde assume a direção artística, e é também ator, encenador, desenhador de luz, formador e produtor.
Logo em 1992, foi distinguido com o Prémio Acarte/Madalena Azeredo Perdigão, da Fundação Calouste Gulbenkian. Ganhou também um Globo de Ouro, em 2004, na categoria de Melhor Ator de Teatro na peça “Endgame”, de Samuel Beckett, em que interpretava Clov.
Participou nas séries de televisão “Pedro e Inês”, “Equador” e “Sul” e em filmes como “Coitado do Jorge”, de Jorge Silva Melo, “Logo Existo”, de Graça Castanheira, “Singularidades de uma Rapariga Loura”, de Manoel de Oliveira e “Al Berto”, de Vicente Alves do Ó.
É professor convidado da Escola Superior de Educação de Lisboa, desde 2010, e leciona um dos módulos da disciplina de interpretação na Escola Profissional de Teatro de Cascais desde 2018.
Inês Linhares Dias
Reportagem publicada na edição impressa de novembro de 2021
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