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“Há famílias que passam fome e já vivem disto”

Única máquina de recolha de resíduos instalada na Lagoa é insuficiente para a procura atual. Utilizadores pedem mais pontos de recolha e garantem que o dinheiro que recebem representa um complemento importante para várias famílias com dificuldades financeiras

Espera para introduzir embalagens pode durar horas e as filas junto à máquina do Rosário são constantes © DL

Já não há praticamente hora do dia em que não se forme fila junto à máquina de recolha de resíduos instalada na lateral da paragem de autocarros perto da praça de táxis, na freguesia do Rosário, Lagoa. E a espera para começar a introduzir as embalagens na máquina pode mesmo durar horas. 

São três e meia da tarde e António Bernardo, morador no Rosário, continua a inserir garrafas de vidro mas também de plástico. Está neste processo desde a uma da tarde. “Custa muito esperar, mas vamos fazendo isso com fé”, assegura. Trouxe vários sacos atestados de embalagens que ele reuniu mas também, a irmã a quem ajuda a fazer o mesmo. 

O tempo que teve de esperar, também está relacionado com as dimensões dos depósitos que enchem com alguma facilidade. “Uma máquina destas não dá para a Lagoa, assim os senhores têm de vir várias vezes esvaziar”, explica. De acordo com informação prestada ao Diário da Lagoa (DL) pela câmara municipal da Lagoa (CML), o camião destinado a esse fim, esvazia os depósitos da máquina de reciclagem “6 a 8 vezes por dia, com uma viatura de carga de 3,5 toneladas”. 

E mesmo assim, o sinal luminoso de cheio, na máquina, é frequente. Pelas seis da tarde já nem é possível introduzir mais nada, tamanha é a procura pela recompensa monetária que se recebe de volta. Cada embalagem, de vidro ou plástico, vale cinco cêntimos. Mas nem todas são reconhecidas pela máquina e, por vezes, voltam para trás, quando o leitor não reconhece o código de barras.

Para chegar aos três euros, são precisas 60 embalagens

António Bernardo já sabe de cor que embalagens a máquina aceita. Para fazer a entrega das mesmas, antes, e de forma única, é preciso fazer o cartão que dá acesso ao dinheiro, num posto da RIAC (Rede Integrada de Apoio ao Cidadão). Esse cartão, que não tem qualquer custo para o utilizador, fica associado ao NIB (Número de Identificação Bancária) de quem o pediu e sempre que acumula três euros, o valor passa automaticamente para a conta bancária do titular do cartão. 

E para se fazer três euros, é preciso entregar 60 embalagens. António Bernardo diz que a cada ida à máquina, consegue fazer “entre 25 a 30 euros e às vezes mais”, ou seja, para isso é preciso entregar pelo menos 540 embalagens. 

“Há famílias que passam fome e já vivem disto, com dois ou três euros vão comprar alguma comidinha, pessoas desempregadas”, conta António, dizendo logo a seguir: “um amigo meu já tirou 150 euros, tem que fazer bastante reciclagem. O que empata mais é esperar pelo carro para vir despejar”. António Bernardo consegue trazer quantidades maiores porque há quem lhe dê, “ligam para a gente e vamos buscar e onde se encontra mais é nos restaurantes, eles dão sem problemas, se formos buscar”, revela. 

Já são dezenas as pessoas que diariamente se deslocam à única máquina de recolha de resíduos da Lagoa. 

Vanessa Lopes vem do Cabouco e não é estreante. “Já tenho vindo algumas vezes com algumas garrafas e a gente recebe assim um bom valor, é um bom extra”. A lagoense explica ao DL que o marido tem um café e muitas embalagens que entrega vêm daí mas também da reciclagem que faz e já fazia. “Acho que é uma boa iniciativa porque está atraindo muitas pessoas que antes não faziam reciclagem e agora têm aderido muito a isso por causa da recompensa monetária”, diz ao DL. 

“Há pessoas que vão procurar ao lixo as coisas e trazem”

Vanessa Lopes considera que “devia haver pelo menos uma máquina em cada freguesia porque tem muita gente das várias freguesias que vêm a esta, isto está sempre cheio todos os dias, vem muita gente de Ponta Delgada também porque os ecopontos lá devem encher com facilidade, estamos aqui às vezes uma hora ou mais”.

Para João Pacheco, também do Cabouco, “devia haver aqui uma pessoa permanentemente para esvaziar os depósitos, assim não se estava à espera que o carro viesse esvaziar, os depósitos são pequenos para a aderência que está a ter”. E o cenário sugere repetir-se no concelho vizinho: “ontem fui a Ponta Delgada e o da Praça [Mercado da Graça] estava cheio, eram cinco da tarde e já estava cheio”. 

Algumas pessoas chegam a pé ou de bicicleta, carregadas de sacos com embalagens vazias, mas outras vêm de carro. E encontrar lugar para estacionar, por vezes, só em cima do passeio. 

Diamantina Alecrim chegou de carro com o marido e os dois netos pequenos. A agilidade característica da idade dos mais novos levou o avô a ter de ir passear com eles, longe do compasso de espera de mais de uma hora que a avó precisou ter, junto à máquina da reciclagem. Ao DL, confessa que fica inquieta com a fila cada vez maior e o tempo que “perde” ali. “Há pessoas que vão procurar ao lixo as coisas e trazem e não deixam as outras pessoas seguir o seu caminho, depois leva a tempos de espera muito grandes. Na minha opinião, quando tivesse uns cinco euros parava e outra pessoa seguia”, sugere Diamantina. A lagoense também concorda que o concelho deveria ter pelo menos mais uma máquina “porque vêm pessoas do Cabouco, de Água de Pau, junta-se tudo aqui, toda a gente quer fazer dinheiro mas também acredito que muitas pessoas precisam”, diz. 

Com o objetivo de aumentar as taxas de reciclagem nos Açores, foram instaladas 25 máquinas de logística reversa, em maio passado, em todos os concelhos do arquipélago, um investimento de quase um milhão de euros, financiado maioritariamente pelo EEA Grants Portugal, o Mecanismo Financeiro do Espaço Económico Europeu. 

Governo estuda limitação de embalagens por utilizador

Em resposta às perguntas dirigidas pelo DL à tutela, a secretaria regional do Ambiente e Alterações Climáticas (SRAAC) explicou que se trata de um projeto piloto com a duração de um ano que tem como “objetivo funcionar como um mecanismo de recolha de informação, de forma a possibilitar a definição do projeto definitivo de forma otimizada”. 

Sobre a máquina instalada no concelho da Lagoa, a SRACC diz que “existe a necessidade de serem efetuadas recolhas com maior frequência pela Câmara Municipal, de forma a otimizar a utilização da máquina disponibilizada”, salvaguardando que “não é fácil ajustar os Recursos Humanos existentes para dar resposta célere a este desafio”. 

A tutela reconhece, ao DL, que “se está a verificar a usurpação do uso das máquinas por utilizadores que desviam embalagens do setor HORECA [restauração, hotelaria e similares] para este Sistema de Depósito de Embalagens”. 

Os restaurantes e demais estabelecimentos comerciais similares já são obrigados, por lei, a remeter para reciclagem o que resulta da respetiva atividade, pelo que, no entender da SRACC “não fará sentido que os mesmos esgotem a capacidade das máquinas, impossibilitando o utilizador comum de utilizar as mesmas”. 

Desta forma, o Governo regional está a ponderar alterar “a programação do sistema para limitar o número de embalagens a receber mensalmente por utilizador, de forma a possibilitar que todos tenham acesso às máquinas de logística reversa”.

Nos esclarecimentos prestados ao DL, o vice-presidente da CML disse que “a Lagoa recebe, sensivelmente, cerca do dobro da segunda máquina que mais recolhe, que é no mercado da Ribeira Grande” e que “o facto de a máquina, situada na cidade de Lagoa, ser a que, de longe, mais recicla deve-se à frequência da recolha e limpeza que a Câmara Municipal de Lagoa faz, inclusive recebendo embalagens provenientes de outros concelhos”. Frederico Sousa diz que “está a ser equacionada a deslocalização da máquina de recolha para um local em que não haja os constrangimentos que se verificam atualmente, nomeadamente ao nível do trânsito, estacionamento e ruído”.        

De acordo com os dados da SRACC, a máquina instalada na Lagoa já recebeu quase 200 mil embalagens não reutilizáveis, sendo 46 por cento de vidro, 37 por cento de plástico e 18 por cento de metal. 

É expetável que novas alterações bem como novas máquinas a serem introduzidas no concelho e nas restantes ilhas só depois de concluído o atual projeto piloto em curso, em maio de 2023.

Sara Sousa Oliveira

Reportagem publicada na edição impressa de setembro de 2022

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