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Vozes na rua, envelhecidas!

(…) em viagem pelo tempo na minha Vila de Água de Pau

Roberto Medeiros

Hoje quando cheguei à Praça de Água de Pau apoiei-me à parede de um edifício e pareceu-me ouvir vozes na rua, envelhecidas! Fechei os olhos e lá estavam, passeando-se no meu pensamento. Surgiu-me então motivação para recordar-me de pessoas desta terra que conheci ou ouvi falar dos seus feitos, durante os antigos serões de família, no canto da rua da Carreira e nas Praças Nova e Velha da minha Vila de Água de Pau.

Recordo-me que era gente de saber de quase tudo; de mexer na terra, de falar das pescas, de saber fazer uma esparrela pra apanhar canários, de saber contar histórias, e, que me ensinaram como é bom conhecer a razão de tudo e das coisas que nos rodeiam.

Quando hoje penso nos tempos que já lá vão, nas pessoas com quem eu me criei, brinquei e pintei-o-corisco na minha mocidade maravilhosa, recordo os meus amigos antigos. Por onde andarão os que nunca mais vi? … o Roberto «marrão», o João «ratão», o Jorge «braz», o Virgínio «arrepiado», o «ningrinhas», o «pim-de-leite» e tantos outros. Sabe-se lá! … andaram na mesma escola que eu andei até que… eu fui para a cidade estudar e muitos deles emigraram. Hoje toda gente “estuda”. Naquele tempo não passávamos de 10 na nossa terra a apanhar a camioneta do Varela conduzida pelos motoristas José Viveiros ou Mariano de Lima, na carreira das sete que vinha da Vila Franca ou na do Manuel Canadi que saía às sete e meia mesmo da Praça d’Água de Pau…

Dos que emigraram, no início e meio da década de 1960, passados menos de dez anos, alguns regressaram à terra, por altura da festa da Quirida Senhora dos Anjos, no mês de Agosto.

Era pela Praça que tudo passava, procissões, cortejos de oferendas e do Espírito Santo (1966) © D.R.

Nalgum tempo, em que os primeiros emigrantes voltaram a Água de Pau, um “dólar” americano valia 27$50 (vinte e sete escudos e cinquenta centavos). Era uma folia vê-los com poucos “dollars” na algibeira, fazerem-se de ricos nos cafés e tabernas da Praça. Uma cerveja custava 2$50 o que era o mesmo que dizer que se um emigrante entrava no café-e-casa-de-pasto (nunca percebi porque davam este nome a um restaurante) do senhor Guilherme D’Arruda, bastava-lhe um dóllar, para pagar uma rodada a 11 pessoas, ou seja, a todos os que por lá andavam “à gosma” duma cervejola. Todos entravam na “corrida” mesmo os que já lá estavam ainda em viagem da última bebedeira, da semana passada ou do dia anterior, se não fosse já daquele mesmo dia até!

Como dizia, todos entravam na rodada, pois ver “gente-alegrinha” era uma das satisfações dos nossos emigrantes. É como se dizia antigamente – não faltavam caídos sempre à espera dos emigrantes na Praça, quer do lado de fora, quer do lado de dentro dos cafés. Nesse tempo, Água de Pau tinha a fama de ter o famoso vinho de cheiro da Caloura, mas os “caídos” estavam fartos de “levantar-Nosso-Senhor” (copos-de-vinho), durante todo o ano, que mal chegavam os emigrantes para as festas de agosto, antes da vindima, ninguém bebia já vinho velho. Eram as cervejolas que faziam “função-de-goela” dos “caídos” pela Praça.

Nem vou falar aqui dos nomes dalguns caídos, para ninguém cair da cadeira, quando lesse os mais curiosos nomes de como eram conhecidos à boca-cheia os ditos amigos da Praça. Eram engraçados os nomes apenas e muito típicos na maneira de identificá-los na nossa terra. Só recordo dentre tantos o do Serafim «gaiafo» ou «chonina», porque se publicou aqui a sua foto. Um impulso traz-me à memória também o Zé da Ti-Glória «giganta», o homem dos marrãos. Parecia-me vê-lo, como se fosse hoje, a entrar na Praça pelo Largo do antigo Barracão. Trazia segurando numa das mãos duas “guitas” de linho-de-russo, à volta do pescoço de dois marrãozinhos que alguém tinha comprado no improvisado campo-dos-porcos, na velha e terreira Canada da Espiga. O Zé da Ti Glória «giganta» era o portador da marrãozada para as casas daqueles que os compravam aos vendilhões que os traziam em seirões de vime da Ribeira Grande para Água de Pau, nas manhãs de domingo. As suas gritadas soavam-me no juízo ainda, recordando-me da maneira como ele desasava os coitados dos marrãozinhos, com uma vardasca de vime, malhando dum lado e do outro, das focinheiras, encaminhando-os para a rua dos Ferreiros, para a casa do “Mané Rebê-grande”, que era quem os tinha comprado e ia pagar ao Zé da Glória um quartilho de vinho de cheiro na Casa Benfica, pela tarefa desempenhada.

Era na “Praça” que os homens se juntavam para procurar trabalho – Camponês Serafim Gaiafo (1965) © D.R.

Naquele tempo aqueles amigos ou caídos encostavam-se às paredes dos cafés e das tabernas. Hoje, quem se encosta às paredes na Praça já não são os caídos são os descaídos, sem trabalho ou sem interesse no trabalho ou então, e também, a conviver na Praça, que é uma prática muito antiga também desta terra – viver e conviver fora-de-portas!
Antigamente essa tradição de viver e conviver fora-de-portas e ter sempre gente na Praça, durante o dia, ganhou força porque as famílias eram numerosas para casas pequenas. Apenas coabitavam juntos nas horas das refeições, ou à noite, bem entendido. Assim que amanhecia… “ála toda a gente p’rá rua”; crianças p’rá escola, rapazinhos pró campo desviar-praga nas sementeiras desde a Amoreirinha ao Pisão, que é como quem diz de ponta-a-ponta da nossa vila.
Os rapazes iam para as indústrias de vimes, os homens iam para o campo dar (ao corpo) uma semana ou um dia de trabalho nas terras dos agricultores. Já as raparigas iam para a costura nas Henriques, para as vindimas, para as desfolhadas de milho, para as fábricas de cordas de linho-de-russo (espadana) e outros ofícios domésticos.
Os nossos pescadores, recordo-me, também tinham de ir para a Caloura sempre em grupos de mais de duas “companhas” para ajudarem-se mutuamente no varar e recolher das embarcações a braços, pois ainda não havia o guincho elétrico para puxar as embarcações que regressavam com peixe.

Recordo-me dos gritos-de-ordem alucinantes do Arménio Pacheco pescador, pois os mesmos ecoavam na rocha da Caloura e espalhavam-se, ouvindo-se muito bem no Castelo, Portela e Cinzeiro da Caloura.

Desperto de tudo isso porque, entretanto, alguém buzina seu carro e traz-me de volta à realidade, numa Praça diferente, cuja função continua a fazer a sua histórica. Mas, agora com outras pessoas, com algumas das que antigamente a conheceram provavelmente. Depois ainda ouço um chaprão qualquer dizer – “acorda pá vida rapaz!”…e lá me fui embora para a minha Caloura!

Crónica publicada na edição impressa de janeiro de 2022

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