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Vimes de Água de Pau são cozidos nas Furnas. Peças em fibra natural são cada vez mais procuradas

É uma prática única nos Açores e no resto do país. Implica riscos para quem anda sobre as caldeiras mas todos os anos, dois artesãos de Água de Pau cumprem um ritual onde a natureza faz quase tudo

Artesãos de Água de Pau são os únicos a cozer vimes de forma sustentável nas caldeiras das Furnas © SARA SOUSA OLIVEIRA/ DL

Chegaram ainda antes das nove e meia da manhã. João Andrade, o filho Alcídio, e o ajudante, Sérgio Almeida, todos de Água de Pau, trazem com eles – numa carrinha de caixa aberta – a matéria prima que lhes ocupa os dias, há muitos e longos anos. Das mãos de pai e filho já saíram milhares de peças em vime, cada vez mais apreciadas por locais e estrangeiros.

Quando questionado sobre há quantos anos se dedica à arte da cestaria, João Andrade, de 68 anos, responde-nos: “faça as contas, já ando nisto desde 1963”, ainda Portugal vivia em ditadura. É mais de meio século dedicado a uma arte única. E o interesse de João Andrade pela arte dos vimes começou tinha ele muito tenra idade. “A minha mãe dizia que eu com três anos levantava-me logo de manhã cedo e estava todo o dia de roda do homem que meu avô metia lá em casa a fazer os cestos para as terras”, conta João. O gosto e o interesse foi tão grande que nunca mais largou a arte. Ao lado da escola que frequentou, em Água de Pau, havia uma indústria. “Quando saia da escola, às cinco horas, metia-me logo na indústria a ver as pessoas a trabalhar o vime”, prossegue o artesão que já soma 58 anos de experiência e tem bem fresco na memória as datas que o marcam. João conseguiu cativar o filho Alcídio, de 40 anos, para a arte, o único dos cinco filhos que se dedica com o pai a fazer qualquer tipo de peça.

Artesãos adaptam-se aos novos tempos

João Andrade dedica-se a trabalhar o vime há quase 60 anos. Cozedura demora três horas © SARA SOUSA OLIVEIRA/ DL

Apesar de já estarem os dois há mais de um ano sem eventos ou as habituais feiras nos Açores e no estrangeiro – Estados Unidos ou Canadá são apenas dois exemplos – as mãos de João e Alcídio quase não chegam para todas as encomendas. Os pedidos chegam de vários locais de São Miguel mas também das outras ilhas e do continente. Há até uma marca de decoração açoriana que recorre aos dois artesãos para mandar fazer as suas peças e enviá-las para qualquer parte do mundo. “Temos tido muitas encomendas de abajurs, pratos [em forma de mandala] para pôr na parede, cadeiras, tabuleiros, cestos, salas em vime, todo o tipo de peças que nos pedem a gente faz”, conta Alcídio que, desde miúdo ajuda o pai e já se dedica a este tipo de artesanato há mais de 30 anos.

Também esta arte se vai adaptando aos tempos modernos e agora os pedidos chegam de outra forma. “Ultimamente é tudo por desenhos da internet. Tem muita coisa que as pessoas julgam que é vime mas não é, mas a gente consegue imitar e às vezes fica mais bonito que aquelas coisas que estão na internet”, garante João.

Trabalhar com vime é um processo longo e demorado que lhes ocupa o ano inteiro. É preciso plantar, fazê-lo crescer, podar, mondar, cortar, cozer e secar os vimes ao sol.

Todos os anos, durante os meses de dezembro e janeiro há um ritual que não falha no calendário de João e Alcídio. Depois de concluírem a apanha do vime, igualmente entre o último mês do ano e o primeiro do seguinte, fazem umas três a quatro viagens, de Água de Pau até às Furnas para cozer o que plantaram. “Somos os únicos no país inteiro que cozemos assim, não se faz em mais lado nenhum”, garante Alcídio Andrade. A cozedura vai permitir descascar o vime e moldá-lo ao sabor da imaginação.

Vapor das caldeiras é o responsável pela cozedura

Nos primeiros anos em que João Andrade começou a cozedura dos vimes, no início da década de oitenta, fazia-o nas caldeiras da Ribeira Grande. Mas já desde há uns bons anos a esta parte trocou-as pela Lagoa das Furnas. “Nas outras ilhas e Portugal continental eles cozem os vimes em alumínios, tachos grandes, bidões, aqui a natureza é que faz tudo”, prossegue Alcídio.

O processo é simples mas demorado e muito arriscado. Depois de percorrer os passadiços envolventes às caldeiras das Furnas, com molhos de vinte quilos às costas, cada um dos homens vai deixando cair cada um dos molhos numa das caldeiras, situada junto a uma das encostas que envolve a zona. Alcídio, o mais ágil, é quem vai empilhando cada um dos molhos para que todos consigam um lugar dentro da caldeira.

Desta vez vão a cozer 50 molhos “mas a caldeira tem capacidade para levar 200” garante Alcídio. Depois de os empilhar e organizar, sempre saltando de pedra em pedra, e com a água a borbulhar a altas temperaturas os três homens cobrem os vimes com três grandes plásticos negros. Alcídio, que já soma a experiência de muitos anos a fazer o mesmo, não esconde o receio que ainda tem ao andar muito próximo da caldeira. E as queimaduras já aconteceram porque nem as botas de cano evitam que o borbulhar intenso da água chegue à pele. “É um bocado perigoso. A temperatura das águas ronda os 150 graus de calor mas quando tiramos o plástico passa a 200 graus de calor ali principalmente quando se tira o plástico e, às vezes tem algumas pedras ali um bocado húmidas e escorrega-se facilmente”, explica o cesteiro mais novo da família Andrade. Para Alcídio, que assume sempre a dianteira do processo por ser o mais novo, a parte mais difícil do processo de cozedura é mesmo a retirada dos plásticos e dos vimes.

João Andrade e o filho Alcídio trabalham diariamente juntos em Água de Pau © SARA SOUSA OLIVEIRA/ DL

Vimes mudam de cor e demoram 3 horas a cozer

A cozedura acontece sobretudo com o vapor gerado pela condensação imposta pelos plásticos. “Como a caldeira está coberta cria uma pressão enorme e quando se destapa a água está com temperaturas elevadíssimas, sai imenso fumo e não se consegue estar ali muito tempo”, explica o pauense. A agilidade e rapidez são essenciais durante todo o processo, mas sobretudo na reta final. Visivelmente mais escuros, depois de três horas de cozedura, cada molhe de vimes, ainda bastante quente, é transportado um a um da caldeira para os passadiços de madeira. Dali, cada um dos homens volta com os vimes às costas de volta para a carrinha que os trouxe de Água de Pau e os levará a casa. Nas imediações da casa onde vivem e onde trabalham o vime, estão centenas de hastes empilhadas numa parede de uma das ruas da vila. Depois de descascarem um a um, num gesto quase mecânico e muito rápido, os vimes ficam uns três dias ao sol para secar, evitando assim ganharem bolor. Só depois de concluído este último passo é que estão prontos para finalmente ganharem forma pelas mãos, e com a ajuda dos pés, dos dois artesãos pauenses, que a partir de Água de Pau, fazem a sua arte chegar a qualquer parte do país. Enquanto conversa, entre o presente e o passado, João Andrade mantém sempre o sorriso e a boa disposição. Na reta final de mais um garrafão, perguntamos-lhe o que iria fazer a seguir: “a asa para ele voar”. Entre risos, voltamos a insistir, “mas quantas peças já fez, tem uma ideia?”. A resposta não demorou e, de novo, o sorriso também não: “fiz da primeira à última”. E enquanto puder, assim continuará a ser.

 

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Comentários

  1. avatar João Paz 08-03-2021 14:24:06

    Boa reportagem

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