Dou por mim a recordar a minha avó Julinha, as suas histórias e o tempo alegre da minha infância nas vindimas da casa da Galera, na Caloura da Vila de Água de Pau. Vou abrir uma janela no seu passado, para recordar a história que sua irmã mais nova, a Maria José, me contou sobre ela.
A minha mãe um dia avisou-me que preparasse o carro para ela, eu e meus irmãos irmos à Água D’Alto, sua terra natal, visitar sua tia Maria José, chegada da Califórnia. Tia Maria José emigrara para a Califórnia e de lá fizera carta de chamada aos irmãos Francisco, Manuel, Victorino e à irmã Rosário. Permaneceram em Água D’Alto as duas irmãs Júlia e a Maria de Jesus. Foi só em setembro de 1973 que a irmã Maria José regressou, pela primeira vez, à ilha de S. Miguel, desde que a deixara. Ela prometera regressar à Água D’Alto para abraçar Maria de Jesus, a sua única irmã ainda viva.
Naquele ano de 1973, eu tirara a carta de condução e dirigi o nosso Volkswagen até à porta da casa da tia Maria de Jesus, irmã da avó Júlia, falecida alguns anos antes. A sensação com que fiquei na altura foi que titia Maria José mostrou seu afeto por sua sobrinha Maria Lia, mas minha mãe demonstrou ainda maior alegria por a ver e abraçar. Desde criança, ouvíamos minha mãe falar com saudade, de seus tios e tias. Sempre gostei de ouvir histórias antigas da nossa família, e por isso, aproximei-me da tia Maria José da Califórnia, pedindo-lhe que me contasse a sua história de emigrante, pois fora a primeira dos irmãos a chegar à Califórnia. O seu semblante mudou, o sorriso desapareceu e em seu lugar a sua face enrijeceu e desagradada com o meu interesse, afastou-se. Envergonhado e sem perceber o que dissera que a deixara zangada, livrei-me do ambiente e fui para o balcão no exterior da casa esperar que terminasse a visita. Na hora de regressarmos a casa, nem me aproximei da tia Maria José para me despedir. Ela não gosta de mim, pensei. Mas ela veio ter comigo, puxou-me e disse-me, baixinho: “- Vou partir daqui a cinco dias, na terça-feira à tarde. Vem amanhã pelas nove horas e conto-te a história que querias saber.” E, nisso, agarrou-me e deu-me um beijo na face. No outro dia, sentados no balcão, em frente à porta do quintal, a tia Maria José avisou-me que me contaria a sua história, mas que não a poderia contar antes dela partir para a América. Prometi e só, anos mais tarde, pude contar o segredo que me confiou.
Na primeira metade do século XX, minha avó Júlia, e os seus seis irmãos viviam com os pais, Flora de Jesus Rego Quintanilha e Francisco Furtado Simas, numa casa da rua da Cruz, em Água D’Alto. Júlia namorava um rapaz da terra chamado José que ambicionava emigrar para a América, nem que fosse num barco baleeiro. De tronco robusto e mãos calejadas do rude trabalho nas terras da freguesia, meteu-se num desses barcos baleeiros que na torna viagem da faina nas ilhas do ocidente, passou em São Miguel. Júlia ficou vendo passar os dias, esperando notícias. Se tivesse sucesso, conseguisse trabalho e casa na Califórnia, José viria casar à ilha e levá-la para a América. O tempo foi passando e Júlia não tinha notícias de José. Na verdade, só escreveu a Júlia quase um ano depois, mas esta nunca receberia nem a primeira nem as cartas seguintes. Embora tardias, as que iam chegando, a irmã Maria José, a responsável da casa por ir aos correios levantar a correspondência, não as entregou à Júlia. A demora de José em escrever explica-se dado a América estar a recuperar da “depressão económica” e ele, nesses tempos difíceis, não ter encontrado trabalho. Um dia, sem forças e com fome, desfaleceu e caiu à entrada dum “farm” de. O proprietário recolheu-o, e deu-lhe trabalho. Alguns meses depois, já com trabalho e casa onde ficar, tratou de escrever a Júlia várias cartas que nunca tiveram resposta. Passaram-se alguns anos e, entretanto, Júlia sem notícias, pensara que José, ou tinha morrido ou casado na Califórnia. Apareceu então Mariano de Lima, emigrante nas Bermudas, de regresso a Água D’Alto que lhe pediu namoro, e, depois, casamento. Júlia aceitou. Maria José escreve a José para a Califórnia dando conta de que Júlia, sua irmã, se tinha casado, mas que ele não ficasse triste, porque na verdade quem sempre mais gostara dele fora ela – a Maria José. José fica desiludido, mas, atribui ao destino o facto de não poder casar com Júlia. Por isso, depois de pensar algum tempo, decidiu mandar buscar Maria José para a Califórnia. Com ela se casou e teve cinco filhas.
Júlia acreditou em Maria José quando esta lhe disse que José desistira dela, até porque agora já pensava apenas no seu Mariano de Lima. Júlia Furtado Simas e Mariano de Lima, meus avós, tiveram dois filhos, Victorino Furtado Lima e Maria Lia Lima, minha mãe. No início de 1950, meus avós mudaram-se de Água D’Alto para uma propriedade com casa na Galera, em Água de Pau. Foi aí que meu pai conheceu minha mãe, e se casaram a 30 de novembro desse ano.
No início de 1990, Mabel e Adelina, duas das filhas de tia Maria José vêm de Kerman (Fresno), Califórnia, à ilha para conhecerem os primos em São Miguel. Por coincidência, o táxi que as trazia do aeroporto, parou na frente do nosso supermercado A Cova da Onça. Depararam com minha mãe e perguntaram-lhe se sabia onde vivia sua prima Maria Lia, porque traziam indicação para perguntar por ela, em Água de Pau. Adivinhem a alegria deste reencontro!
Todos, primos e primas, recordamos a história, que lhes contei apenas, depois da tia avó Maria José Furtado Simas ter falecido. Todos estamos felizes porque, se assim não tivesse acontecido, não estaríamos cá para a contar.