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O Impudente

Na sua crónica mensal o professor e investigador, Rui Tavares de Faria, escreve este mês sobre

Rui Tavares de Faria
Professor e Investigador

Prosseguindo com a nossa leitura moderna – ou modernizada – dos perfis éticos registados por Teofrasto nos seus Caracteres, eis que se nos oferece, como sexto tipo humano, o impudente. Não é termo muito comum do vocabulário do falante do século XXI, muito provavelmente por desconhecer o respetivo significado. Embora se identifique na raiz da palavra o morfema “pud-”, do qual derivam termos já mais conhecidos, como “pudor”, “púdico” ou “impúdico”, a verdade é que, segundo o autor grego, a “impudência” é um conceito mais amplo – e complexo, acrescentamos nós. Conforme se lê em Caracteres, “a impudência é a tolerância para com atos ou palavras condenáveis.” (Char. 6.1.) Por outras palavras e à primeira leitura, são impudentes, por exemplo, os indivíduos que apoiam genocídios, os que repudiam as minorias étnicas e sociais, os que apelidam de preguiçosos são migrantes, os que, numa escala mais restrita, secundam tudo quanto vai contra os Direitos Humanos.

Mas Teofrasto, querendo imprimir um tom de paródia às caricaturas que desenha no seu tratado ético, apresenta-nos feições, comportamentos e atitudes do impudente que tocam a comicidade e nos roubam umas gargalhadas. “Eis o perfil do impudente. Faz juramentos a torto e a direito; reputação, da pior; da difamação de gente importante, sempre pronto.” (Char. 6.2.) Ou seja, trata-se de um indivíduo mau reputado e difamador, de quem se deve sempre desconfiar, uma vez que da sua boca sai (de) tudo. Tanto se lhe dá enxovalhar A, porque A é cumpridor daquilo que lhe é devidamente instruído, como se lhe faz dizer mal também de quem instrui A. O impudente encontra, por mero acaso, a mulher do vizinho a conversar com um fulano que não o marido e, certamente no mesmo dia, já boa parte do prédio saberá pelas suas palavras – as do impudente, claro – que o tipo de terceiro esquerdo tem um bom par de galhos na testa!

Outro traço de carácter que Teofrasto elenca diz respeito à capacidade que o impudente tem para aceitar trabalhos duvidosos, alguns dos quais hoje tidos por crimes puníveis por lei. Ele “vira-se bem como estalajadeiro, chulo e cobrador de impostos; não há atividade, por mais indecorosa que seja, que ele recuse; ei-lo pregoeiro, magarefe ou jogador de dados.” (Char. 6.5.). Transpondo para o nosso quotidiano pelo menos os três primeiros atributos apontados por Teofrasto ao impudente do seu tempo, que indivíduos ou instituições lhes correspondem atualmente em matéria de impudência? Pois bem: os estalajadeiros são os senhorios que inflacionam a rendas dos imóveis que têm alugados e não declaram um centavo às finanças; os chulos são, por exemplo, os trabalhadores da construção civil que, perante uma clientela ignorante em matéria de obras e tarefas afins, cobram balúrdios pelos seus serviços, algumas vez mal feitos, outras tantas feitos à pressão, porque já têm à sua espera outro cliente, o qual será, obviamente, chulado; o cobrador de impostos é a nossa Autoridade Tributária, um bom exemplo de impudência, se tivermos em conta as questões da fiscalidade praticada pelo governo português. E muitos outros casos temos ao alcance do nosso olhar, mas, se nos centrássemos apenas neles, retiraríamos o tom jocoso que aos nossos textos costumamos ou tentamos imprimir.

Enquanto “fulanos que atraem e juntam à sua volta multidões; e que, com voz de trovão, começam a disparatar e a interpelá-las” (Char. 6.7.), os impudentes também vestem a pele do “palhaço demagógico” e, nesta função, é inevitável não nos passarem pela cabeça episódios das campanhas políticas que vão tendo lugar no nosso país, e na nossa região. Há de facto quem consiga, mais do que atrair, seduzir multidões e submetê-las, pela demagogia, às mais diversas ideologias partidárias. Nesses casos, o impudente toma-se ora por um Jesus da Galileia do antigamente, que incita, agora guloso, o “deixai vir a mim as criancinhas”, tendo em mente os mais variados intuitos, ora por uma sereia dos mares de outros tempos, os de Ulisses, que enfeitiça, pelo canto, os marinheiros mais fragilizados, desviando-os do rumo determinado da viagem, ora pela cantora brasileira Daniela Mercury e entoa, a grandes brados, o famoso “Dona Canô chamou! Eu vou!”. Qual o resultado desses ajuntamentos, mobilizados pela voz tonitruante do líder impudente? Disparates!

Quando deixam de ser novidade ou quando cessa o interesse de os seguir ou de lhes dar ouvidos, os impudentes tornam-se, no dizer de Teofrasto, “enfadonhos”, porque previsíveis nos seus atos e porque a sua finalidade é inevitavelmente a mesma: “de língua sempre pronta para a maledicência.” (Char. 6.10.) O que tem sucedido, pois, nas bancadas das nossas assembleias de deputados eleitos? O que é habitual acontecer nos debates políticos que os canais televisivos transmitem em direto, aquando das campanhas eleitorais? Ataques e contra-ataques, invetivas, insultos, injúrias, “lavar roupa suja”, como se diz popularmente. É isso o exercício político?! Não é necessário recuarmos ao século V a.C. para recordarmos como nasceu a democracia em Atenas, daí tirando bons paradigmas de cidadania; perante aquilo que nos tem sido dado a ver e a ouvir, no quadro do exercício político português, é legítimo considerar-se que vivemos num estado, não de direito, mas de uma impudência atroz.

O que fazem os candidatos aos altos cargos políticos? O que dizem os cabeças de lista dos partidos portugueses? Fazem “juramentos a torto e a direito”. Que perfil ético apresentam e que estilo de vida têm certas figuras que passam a integrar a Assembleia ou outros poisos de relevância no quadro da cidadania portuguesa? Um perfil e um modus uiuendi bastante duvidosos, isso porque a sua “reputação” é “da pior”. De que meios se serve a maior parte desta corja política? Em primeiro lugar, “da difamação de gente importante”; em segundo, da demagogia e, em terceiro, da promoção do mau carácter. Em face do cenário exposto, é caso para se concluir que somos (des)governados por impudentes, indivíduos que toleram (e promovem) atos e palavras condenáveis e, perante isso, torna-se-nos deveras difícil elencar medidas de combate para esse tipo humano, que se tem enrijecido na nossa sociedade. É este o retrato vergonhoso do Portugal da segunda década do século XXI, meu/minha caro/a leitor/a.

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