
A liberdade de imprensa e o papel dos jornalistas, pontos essenciais para o fortalecimento da democracia, estiveram no centro das atenções durante dois dias de intenso debate na CAIXA Cultural São Paulo, no Brasil. Num momento em que se discute globalmente a força da palavra e as consequências de falar sobre jornalismo no presente, a maior cidade da América Latina acolheu, dias 14 e 15 de agosto, o ciclo “Crónica de Uma Morte Anunciada: O Jornalismo Cultural Está Morrendo?”. O encontro reuniu jornalistas, críticos e escritores para refletirem sobre os rumos do jornalismo cultural perante as tensões da era digital.
As quatro mesas de discussão disponíveis na programação abordaram a crise da crítica especializada, a diversidade de vozes, o impacto das plataformas digitais e o papel do jornalismo diante das fake news. Entre as questões debatidas esteve a dificuldade em manter o ineditismo num fluxo de informação veloz, a fidelização de nichos de leitores, a sustentabilidade económica e a função de curadoria do jornalista cultural. Eliane Trindade e Walter Porto, do jornal brasileiro “Folha de S. Paulo”, sublinharam a necessidade de “coragem, independência e adaptação às novas linguagens digitais sem perder a credibilidade”. A crítica Giselle Vitória reforçou que “um bom texto continua a ser fundamental para o leitor”, embora o desafio maior seja a “monetização”.
O curador do ciclo, o português José Manuel Diogo, que mantém ligações profissionais ao Brasil, lembrou que a “morte anunciada” do jornalismo cultural tradicional representava também uma metamorfose, marcada pela emergência de experiências digitais, podcasts, newsletters e coletivos independentes.
“A provocação era inevitável e útil: será o jornalismo cultural apenas a crónica de uma morte anunciada? A minha posição foi clara: não. O jornalismo cultural, como todos os jornalismos do nosso tempo, não morre: renasce todos os dias. Precisa de morrer para poder voltar a nascer. Essa é a sua condição contemporânea, num mundo atravessado pela inteligência artificial, pela hiperconectividade e pela velocidade da informação. Mas, ao contrário de outros géneros jornalísticos, o cultural tem um papel ainda mais delicado: lembrar que a cultura não é adorno, mas, sim, fundamento da vida coletiva”, defendeu este responsável, que explicou a importância desta iniciativa.
“O que vimos no Brasil foi uma nova geração de jornalistas e criadores a assumir esse desafio. Não se resignam ao epitáfio, querem reinventar o jornalismo cultural com novas linguagens, cruzando crítica e reportagem, memória e criação. E isso é vital, porque numa era em que a verdade parece diluir-se na ausência de critérios éticos quotidianos, o jornalismo cultural continua a cumprir a sua função essencial: ser filtro, validação, consciência crítica. O ponto alto do encontro foi perceber esse sopro de futuro: não estamos a assistir a uma morte, mas a uma reinvenção. O resultado mais evidente foi o compromisso tácito de todos nós em afirmar que o jornalismo cultural, longe de estar condenado, continua a ser uma das frentes mais nobres de defesa da democracia”, disse em entrevista ao Diário da Lagoa.
Para além dos debates, o público pôde participar numa visita guiada com a fotojornalista Mônica Maia, que propôs novas leituras sobre a imagem e a cultura. O evento contou com a presença de nomes como Julio Maria, Daniella Zupo, Tom Farias, Naief Haddad, Guilherme Werneck e Fernando Mattar. Realizado pela LOGOS QUARTZ, com patrocínio da CAIXA e apoio do Governo Federal do Brasil, o ciclo mostrou que, mais do que um fim, o jornalismo cultural vive um processo de transformação em busca de novas formas de dialogar com a sociedade.
“Falar de jornalismo é falar da própria respiração da democracia. Durante séculos, o jornalismo foi visto como uma ponte entre factos e leitores, um espaço de mediação. Hoje, essa definição é insuficiente. Vivemos numa era em que a informação deixou de ser um recurso escasso para se tornar um excesso vertiginoso. E é precisamente nesse excesso que se escondem as maiores ameaças: a desinformação, a manipulação, a erosão da confiança coletiva. O jornalista não é apenas quem noticia, é quem organiza o caos, quem devolve à sociedade a possibilidade de distinguir entre realidade e ficção”, considerou José Manuel Diogo, que é também presidente da Associação Portugal Brasil 200 anos e responsável pela Casa da Cidadania da Língua, ambas com sede em Coimbra.
“Ao contrário do que muitos pensam, o jornalismo não morreu com as redes sociais. Ele tornou-se ainda mais necessário. Num mundo onde todos emitem, mas poucos sabem editar, o papel do jornalista é ser filtro, intérprete, guardião de critérios éticos. A comunicação social é hoje a muralha frágil, mas essencial, que separa a democracia da barbárie. Por isso, quando falamos de jornalistas, falamos de cidadania, de direitos, de futuro” frisou.

Na opinião do curador do evento em São Paulo, são necessários esforços conjuntos para valorizar os media em Língua Portuguesa.
“A minha avaliação é inseparável de uma experiência pessoal: o Plataforma. Foi o primeiro projeto original pensado para unir Portugal e Brasil num espaço comum de informação, um jornal global em língua portuguesa. A ideia era visionária: dar expressão mediática a um universo de mais de 260 milhões de falantes espalhados por quatro continentes. Mas a experiência revelou uma falha estrutural: faltou o negócio, a sustentabilidade económica. E sem economia não há jornalismo. O Plataforma mostrou-nos uma evidência dura: todos os projetos, mesmo os mais nobres, precisam de um modelo económico robusto, caso contrário tornam-se reféns da sua própria sobrevivência e deixam de cumprir o propósito para o qual nasceram. É a partir desta lição que olho hoje para os média em língua portuguesa. Temos talento, temos relevância cultural, temos histórias extraordinárias para contar, mas ainda não temos a estrutura necessária para dar escala e continuidade a esse esforço. Continuamos demasiado presos às agendas nacionais, quando o que se exige é uma rede editorial transnacional, capaz de trabalhar a língua como território comum. Quando isso acontece, e há exemplos em áreas como o jornalismo cultural, a força da língua revela-se imensa. Mas precisamos de ousadia e de sustentabilidade: só assim construiremos uma narrativa lusófona global, à altura da nossa história e da nossa presença no mundo”, finalizou José Manuel Diogo, que um dos responsáveis pelo Festival Literário Internacional da Paraíba (FliParaíba), no nordeste do Brasil, liderou, este ano, a primeira edição da Virada Cultural Lusófona, na capital de São Paulo, além de ter apresentado, em agosto, no âmbito da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), Brasil, o seu mais recente livro, “Uma Geografia Poética”, uma obra, que não se propõe como antologia nem estudo crítico, estabelece, antes, uma ponte criativa entre poetas de diferentes tempos e geografias.
Em “Uma Geografia Poética”, José Manuel Diogo constrói encontros literários imaginários entre figuras como Fernando Pessoa e Camões, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, Adélia Prado e Maria Teresa Horta, Almada Negreiros e Vinícius de Moraes. O livro, editado pela Patuá, desenha diálogos que atravessam o Atlântico e revelam as inquietações, os exílios e os encantamentos que moldaram a língua portuguesa como instrumento de criação, memória e resistência.
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