Daniel Evangelho Gonçalves, 39 anos, nascido no Rio de Janeiro, no Brasil, é descendente de terceirenses. Foi batizado na igreja de São Bento, em Angra do Heroísmo, e cresceu no Brasil com as raízes açorianas bem presentes. Há um ano, decidiu mudar-se com a sua esposa e filha para a terra que lhe “desperta paixões”, conta, em conversa com o Diário da Lagoa (DL).
Curiosos para conhecer melhor o “carioca açoriano”, encontramo-nos com ele no jardim em frente ao Palácio da Conceição, em Ponta Delgada, que tinha acolhido o Conselho da Diáspora e o V Encontro Açores Brasil, nos quais Daniel Gonçalves participou.
Numa conversa descontraída, começou por falar nas recordações dos Açores da sua juventude: “Tenho memórias maravilhosas. Na verdade, o que me fez querer vir para cá foram essas memórias. Fui batizado na igreja de São Bento. Voltei cá várias outras vezes, em adolescente, a descobrir a vida e os Açores ” O primeiro grande marco na sua vida, explica, foi a Direção Regional das Comunidades ter-lhe oferecido um curso para aprender a tocar Viola da Terra para apoiar o grupo folclórico da Casa dos Açores do Rio de Janeiro, quando tinha 18 anos. Nessa vinda aos Açores, lembra, “deparei-me com a cultura já um pouco mais maduro e apaixonei-me”.
Já depois disso, e de volta ao Brasil, licenciou-se em História, sempre com especial interesse no tema da emigração, e entrou na Casa dos Açores do Rio de Janeiro como diretor cultural. Trabalhou também como professor e foi historiador na Força Aérea Brasileira.
“Depois, com as minhas próprias pernas, comecei a criar eventos na Universidade dos Açores, vir em trabalho, dar palestras, e o interesse de morar aqui ficou cada vez maior,” conta ao DL o carioca, que está neste momento a terminar o doutoramento na Universidade dos Açores, onde colabora como investigador convidado.
O luso-brasileiro já estuda a emigração há 20 anos: “Escrevo artigos, dou palestras, sempre sobre a emigração, porque é o que gosto: porque é que as pessoas saem da sua terra natal; como é que são acolhidas. Geralmente o meu foco é a emigração açoriana, para o Rio de Janeiro, que é pouco estudado. Confunde-se com a minha história. A minha ideia sempre foi registar as memórias para as futuras gerações, porque estão a perder-se. Essa é a minha missão académica”.
É diretor cultural da Casa dos Açores do Rio de Janeiro há 15 anos: “Criamos eventos, atraímos pessoas e fazemos o máximo para divulgar a cultura açoriana no Rio e para os açorianos se sentirem em casa, porque esse é o foco da Casa. Fiz protocolos com várias universidades, trazendo um lado mais académico e tornando a Casa mais conhecida. Hoje ela já é um polo de açorianidade, misturada com a cultura carioca” realça o luso-brasileiro. “Gosto de brigar pela nossa comunidade, trazer coisas para o Rio, mostrar que existimos, que somos grandes, temos importância, que mantemos as nossas tradições há mais de 70 anos. É uma comunidade grande. Hoje, se contarmos os netos e bisnetos, já chega a quase um milhão de descendentes de açorianos, no Rio de Janeiro. Os Açores não fazem ideia das raízes que deixaram por aí,” considera.
Desde 2021, faz parte do Conselho da Diáspora: “É um trabalho que já faço há muitos anos, de conectar as pessoas, criar projetos, incentivar a cultura açoriana”, salienta o historiador.
Mudou-se para a Terceira há apenas um ano, lugar que escolheu para criar as suas filhas, por haver “paz e segurança”.
Em 2023, lançou o livro infantil “Nem de Cá, Nem de Lá”, que está a ser apresentado em todas as escolas dos Açores. Com o objetivo de educar sobre a emigração, o livro conta a história de um açoriano, da Terceira, que fugiu da guerra do Ultramar, fixando-se no Brasil. Essa personagem principal chama-se “João”, e é uma homenagem aos seus dois avôs.
Também cá nos Açores, Daniel, em conjunto com a sua esposa, Monique Vieira, pedagoga, está a continuar o trabalho que começou no Brasil: desenvolver projetos educacionais. “Criamos projetos que transformam a vida das pessoas através da educação”, explica o luso-brasileiro, “criamos programas, dinâmicas. Temos vários tipos de clientes e ainda trabalhamos para o Brasil”. Atualmente, trabalham na Rede Valorizar.
“Essa é a missão da minha vida e da minha esposa, tentar, através da educação, transformar as pessoas e mostrar que elas podem ser mais felizes por serem mais humanas. Na nossa diferença, em todos os aspetos, é que vamos ver, com empatia, que todos somos importantes, e não precisamos disputar nada”. Para o carioca com sangue açoriano, viver na terra do seu pai e avós é o realizar de um sonho. “Estou a gostar muito de viver cá, da paz, da segurança que esse lugar tem, mas também de acordar todos os dias e olhar para o Monte Brasil, que era o lugar que sonhava ver todos os dias. Agora acordo de manhã e olho pra ele e sinto um calor no coração”, assegura.
DL: Filho de emigrantes açorianos no Brasil, nasceu no Rio de Janeiro, há 39 anos, mas quando era mais novo vinha aos Açores. O que recorda desses tempos?
Tenho memórias maravilhosas. Na verdade, o que me fez querer vir para cá foram essas memórias. Fui batizado na igreja de São Bento, na terra onde o meu pai foi criado. Depois vim já maior, com 12 anos, para as bodas de ouro da minha avó. A minha avó teve 13 filhos, então foi o encontro de dezenas de primos. Foi muito bom estar em família. Depois voltei várias outras vezes, em adolescente, a descobrir a vida e os Açores, um lugar seguro que pude desbravar. O grande marco na minha vida foi a Direção Regional das Comunidades ter me oferecido um curso para aprender a tocar viola da terra, para ajudar o grupo folclórico. Nem tinha ligação com a Casa dos Açores. O meu avô tinha sido presidente. Quando cheguei aqui, deparei-me com a cultura já um pouco mais maduro e apaixonei-me. Fui fazer o curso de História, ingressei na direção da Casa dos Açores. Depois, com as minhas próprias pernas, comecei a criar eventos na Universidade dos Açores, vir em trabalho, dar palestras, e o interesse de morar aqui ficou cada vez maior.
Aqui há uma alma muito parecida com a do carioca. Pessoas que recebem bem, há uma bela gastronomia, a cultura pulsante na Terceira, com muita música e festa. Gosto disso. É parecido com a minha cidade natal. O que me atrai mesmo aos Açores é a paz. As pessoas vivem num paraíso. Este é mesmo um lugar de encantamento, paz e segurança. Os Açores despertam paixões e como sou uma pessoa que gosta de viver apaixonada, vim para o lugar que me desperta paixões. As minhas paixões são os Açores, a minha esposa e as minhas filhas.
DL: Formou-se em História, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Está agora a terminar o seu doutoramento, também na mesma área. Porque decidiu seguir História?
Sempre fui uma pessoa bastante ligada à cultura. Sempre gostei de história, por conta da mitologia, e depois pelo lado social. Sempre gostei de memórias, de família, o que é que une as pessoas,a micro história. Fiz o curso que alimentava esse interesse e acabei voltando a minha formação para a minha ligação aos Açores. Sempre estudei emigração. É o foco da minha pesquisa. Estou a acabar o doutoramento, sou investigador convidado da Universidade dos Açores. Escrevo artigos, dou palestras, sempre com o tema da emigração, porque é o que gosto: porque é que as pessoas saem da sua terra natal; como é que são acolhidas. Geralmente o meu foco é a emigração açoriana, principalmente para o Rio de Janeiro, que é pouco estudado. Confunde-se com a minha história. Uso uma ideia de um projeto memorialista. A minha ideia sempre foi registar as memórias para as futuras gerações, porque estão a perder-se. É natural, as comunidades vão envelhecendo, a emigração para o Brasil cessou. Não queria só uma memória, queria um estudo historiográfico, algo com base científica, para que isso ficasse registado para sempre, saber que os açorianos são muito importantes no Rio de Janeiro e é uma comunidade diferenciada dos portugueses continentais. Os açorianos têm muitas particularidades, que nunca tinham sido estudadas, a não ser pela historiadora da Casa dos Açores, Judite Evangelho, que começou esse trabalho, mas não aprofundou. Essa é a minha missão académica.
DL: Faz parte da direção da Casa dos Açores no Rio de Janeiro. Quais as suas tarefas?
Sou diretor cultural da Casa dos Açores do Rio de Janeiro há 15 anos. Criamos eventos, atraímos pessoas e fazendo o máximo para divulgar a cultura açoriana no Rio e para os açorianos se sentirem em casa, porque esse é o foco da Casa dos Açores. Fiz protocolos com várias universidades, trazendo um lado mais académico e tornando a Casa mais conhecida. Hoje ela já é um polo de açorianidade, misturada com a cultura carioca.
A primeira de todas as Casas dos Açores foi a nossa. Tem 71 anos. Depois tivemos a de São Paulo, a de Santa Catarina, a de Rio Grande do Sul e a do Maranhão, a do Espírito Santo, a da Baía. Estamos espalhados naquele continente todo.
Só há Brasil por causa dos Açores. A primeira emigração para o Brasil foi de casais açorianos para defender o Maranhão dos franceses. O território brasileiro é o que é por causa dos açorianos que deram a sua vida lá.
DL: Já no Brasil desenvolvia projetos educacionais, com a sua esposa. Acreditam na transformação pessoal através da educação?
Quando saí da Força Aérea Brasileira, onde trabalhava como historiador — fui chefe de setor, a nível Brasil, coordenando projetos culturais — começamos a focar mais na empresa que tínhamos criado. Criamos projetos que transformam a vida das pessoas por meio da educação. Por acaso, vim para cá para ser professor (talvez) mas encontrei na rede Valorizar o lugar que conectou a minha formação e a da minha esposa- que é pedagoga- com o nosso desejo de ajudar as pessoas. A Valorizar serve para as pessoas completarem os seus estudos, mas também para dar cursos de empregabilidade e tentar a inserção social. Vim para cá e consegui ajudar as pessoas, e por meio do nosso trabalho e da educação, fazer a diferença, com carinho e tratando as pessoas como seres humanos. Tem sido diferencial, temos feito não só alunos, mas também amigos. Estou muito feliz. Faço tudo com a minha esposa. Criamos projetos, dinâmicas. Temos vários tipos de clientes e ainda trabalhamos para o Brasil. O Centro de Qualificação e Emprego pediu para criarmos o projeto “Autonomia”, que vai começar agora, para tentar ajudar as pessoas a acreditarem mais no trabalho e em si. Já temos outras encomendas para dinamizar, de forma divertida. Achamos que aprender deve ser divertido.
DL: Faz também parte do Conselho da Diáspora Açoriana.
Fui eleito, com muito orgulho, em 2021. É um trabalho que já faço há muitos anos, de conectar as pessoas, criar projetos, incentivar a cultura açoriana. Ajudei a comunidade de Bom Jesus, Itabapoana, uma cidade do interior, que se descobriu açoriana, a trazer as suas raízes à tona. Criaram a Casa dos Açores do Espírito Santo, em conexão com Viana. Gosto de brigar pela nossa comunidade, trazer coisas para o Rio de Janeiro, mostrar que existimos, que somos grandes, que temos importância, que mantemos as nossas tradições há mais de 70 anos, numa Casa. É uma comunidade grande. Hoje, se contarmos os netos e bisnetos, já chega quase a um milhão de descendentes de açorianos, no Rio de Janeiro. Os Açores não fazem ideia das raízes que deixaram por aí, principalmente com a festa do Divino Espírito Santo que acontece em todo o Brasil. Esse é um dos meus projetos no Conselho na Diáspora: tentar criar uma comunidade — a Confraria do Divino Espírito Santo — para mostrar a importância destas festas.
O Conselho está a crescer como se fosse um ser humano. Esse foi um encontro maravilhoso, com muitas propostas. O Governo está muito aberto. Criaram uma secretaria para as Comunidades e projetos que vão valorizar a comunidade e interligar os Açores ao mundo. Estamos em todas as partes. O Conselho está a ajudar a mostrar o que de facto as comunidades querem e passam, como é que o governo pode ajudar, e como nós, comunidade, podemos ajudar os Açores. Depois tivemos o V Encontro Açores Brasil, que foi muito produtivo.
DL: Os brasileiros sentem-se bem acolhidos nos Açores?
Em geral sim. O mundo está a passar por um momento delicado, onde o extremismo é uma realidade. Infelizmente há um pouco de xenofobia. Conheço pessoas que passam por algum preconceito. Qualquer sociedade tem isso, mas acho que entre as sociedades que já conheci, os Açores são um povo muito acolhedor e pacífico, de braços abertos para aqueles que querem contribuir para a sociedade. Os imigrantes que conheço são bem recebidos.
DL: Sempre se sentiu açoriano?
Não. Só me senti açoriano depois dessa viagem em que vim cá aprender a tocar viola da terra, aos 18 anos. Amei esse lugar.
DL: Para além dos projetos educacionais, já publicou o livro infantil “Nem de Cá, Nem de Lá”. Pretende continuar nos Açores e desenvolver novos projetos?
Com certeza. Queremos que as pessoas se sintam acolhidas, mas despertar a humanidade e os sentimentos através da educação. O projeto do livro é um desses. Contamos de forma dramatizada e lúdica para as crianças perceberem a importância da emigração e o sentimento por trás dela. Se conseguirmos fazer isso aqui — e já estamos a conseguir — não vejo por que voltar. Quero trazer a minha família para cá. Embora vou sempre amar o Rio de Janeiro, prefiro os Açores para criar as minhas filhas.
Os açorianos são parte da solução para esse problema que existe agora no mundo, da falta de humanidade. O açoriano sempre foi um povo migrante. É um povo do mundo. Somos mais parecidos do que diferentes. Embora nascemos num lugar, podemos pertencer ao mundo todo. Toda a gente tem coisas positivas a acrescentar e pode se identificar com a história de vida um do outro. Essa é a missão da minha vida e da minha esposa, tentar, através da educação, transformar as pessoas e mostrar que elas podem ser mais felizes por serem mais humanas. Na nossa diferença, em todos os aspetos, é que vamos ver, com empatia, que todos somos importantes, e não precisamos disputar nada. Há espaço para todos sermos como somos.
Os emigrantes materializam que podemos pertencer a todos os espaços, podemos ter amor e ligação a vários espaços ao mesmo tempo. Sentimos saudades de outros lugares e conseguimos nos conectar mais facilmente com a dor do outro. Temos de lembrar que somos todos seres humanos.Toda a gente é diferente. Essa é que é a graça. Devemos respeitar-nos nas diferenças. É tentar combater a ignorância por meio da educação. Se conseguir isso, através desses projetos, mesmo que de grão em grão, já me vai realizar enquanto ser humano. Acho que essa é a missão que tenho aqui.
O escritor e pesquisador luso-brasileiro, Daniel Evangelho Gonçalves, lançou o livro “Nem de Cá, Nem de Lá”, que conta a história de um açoriano, natural da Ilha Terceira, nos Açores, que decidiu fugir dos horrores da guerra do ultramar, fixando-se no Brasil, onde, entretanto, se deparou com a saudade do seu lar.
“Mas rapidamente encontra na Casa dos Açores do Rio de Janeiro o seu novo porto seguro, lugar onde se respira açorianidade e se mantêm as tradições por várias gerações, dando-lhe um gostinho de lar”, disse o autor numa nota divulgada sobre o livro que se tornou um projeto itinerante.
A obra, que conta a história emocionante de um açoriano que migra para o Brasil, está a percorrer as escolas das ilhas açorianas e já alcançou mais de mil crianças do 1º e 2º Ciclo do Ensino Básico e pretende chegar a 3.500 até o fim deste ano.
Com ilustrações feitas pelas próprias crianças da Casa dos Açores do Rio de Janeiro, o livro destaca-se por ser uma “ferramenta didática para ensinar sobre a emigração açoriana, promovendo o respeito pela diversidade cultural e mantendo viva a memória dessa importante prática migratória”.
Segundo Daniel Gonçalves, a obra “não é apenas um trabalho infantil escrito em verso”, pois “passou a ser quase que um livro didático sobre imigração”.
O autor contou que doou os direitos autorais do livro, cuja primeira edição está esgotada, para o projeto Cooperativa Regional de Economia Solidária dos Açores (CRESAÇOR).
“Uma nova edição já está sendo impressa. O livro vai estar disponível em cada escola do arquipélago, mas, quem quiser, pode solicitar um exemplar à CRESAÇOR”, frisou o autor.
A história é contada de forma lúdica, como numa técnica de narração de histórias que usa elementos e objetos da cultura açoriana, atraindo o interesse das crianças, pelo que, depois, é feito uma roda de conversa com os mais jovens sobre o tema da emigração.
O autor considera ainda que “o mais bonito do livro é que foi apresentado às crianças da Casa dos Açores carioca antes da sua publicação e esse público infantil fez as ilustrações que foram trabalhadas pela artista Margarida Andrade, CRESAÇOR, e, dessa forma, transformou-se no livro.
“É uma obra feita com o protagonismo também das crianças”, finalizou Daniel Gonçalves.
Recorde-se que a CRESAÇOR e a Casa dos Açores do Rio de Janeiro são duas instituições parceiras desta iniciativa literária, que conta também com o apoio do Governo Regional dos Açores. Um trabalho que visa “manter viva a memória desta prática migratória tão intrinsecamente importante para a história do arquipélago açoriano”.
Atualmente, o escritor e pesquisador luso-brasileiro Daniel Gonçalves, natural do Rio de Janeiro, vive na terra dos seus pais e avós, a Ilha Terceira, nos Açores.