Nascido numa família de músicos que tocava para os americanos na Base das Lajes, na Terceira, Luís Gil Bettencourt desde cedo teve um instrumento nas mãos. É músico, compositor e mantém atividade na organização de eventos há já largos anos. Não acredita em dons nem em inspirações.
Numa conversa com o Diário da Lagoa, no hotel onde ficou hospedado na sua visita a São Miguel, em março, Luís Gil Bettencourt conta sobre como as suas experiências de vida o moldaram enquanto pessoa. A imigração, nos anos 70, para os Estados Unidos. O retorno à sua terra, na década de 80. Explica a sua ligação a São Miguel, uma ilha que também chama de casa. Fala sobre o passado, o presente e um pouco sobre o futuro. Prefere não avançar informações sobre o próximo Atlantis – Concert for Earth, mas faz um balanço da primeira edição do festival que aconteceu em 2022 junto à lagoa das Sete Cidades.
DL: Como surgiu o gosto pela música na sua vida?
O gosto não acontece. São influências que vamos recebendo ao longo da vida. A minha família está ligada à música desde sempre. A minha avó era pianista, o meu pai era multi instrumentista, e depois foram contratados pelos americanos, para criar uma banda na Base das Lajes, onde nasci. Fomos ouvindo os sons. Felizmente tive a sorte de ouvir sempre boa música, fui crescendo e educando o ouvido. Não acredito em dons nem em inspiração.
DL: Desde muito cedo teve um instrumento nas mãos…
Eles estavam à minha volta. Comecei a tocar piano aos quatro anos. Pelos cinco, queria tocar violão. Uma irmã minha estava a aprender a tocar e tinha um papel com acordes. Um dia, ela deixou cair aquele papel, agarrei-o e comecei a aprender sozinho. Até hoje foi assim: sozinho, sempre a amarrar com aquilo até dizer chega. Pelos seis anos, comecei a tocar em grupos de baile.
DL: Como se define? Quem é Luís Gil Bettencourt?
Estou com quase 68 anos, e é difícil, em poucos segundos, uma pessoa fazer uma análise a si própria. Sou teimoso, no sentido de querer. Sou atrevido, no sentido de arriscar. Sou persistente, no sentido de ultrapassar. Ter vivido nos Estados Unidos da América, e no tempo de Salazar moldou-me para ultrapassar obstáculos. Nada estava à mão de semear. É claro que toda esta escola, ainda por cima a dos Estados Unidos, onde não há subsídios, moldou-me no sentido de querer ver as coisas com um palmo de distância, e ver para lá do horizonte, e, de forma equilibrada, fazer coisas que possam servir o meio onde vives. Acredito muito em trabalhar para a comunidade, daí ter criado a Maré de Agosto, ter sido mentor do auditório na Praia da Vitória, e outros festivais e projetos.
Ao fim e ao cabo, é ser um cidadão o mais completo possível e olhar para quem nos rodeia, porque não vivemos sozinhos. Cada vez mais, devíamos olhar uns para os outros dessa forma. Nos Açores, falta-nos o sentido de comunidade, na minha opinião. Demos um salto muito grande, do nada para o mundo, e não soubemos interpretar economicamente a moeda. Há uma aculturação desequilibrada e isso incomoda-me um pouco. Deram-nos muitas ferramentas e não nos ensinaram a trabalhar com elas. Vivemos no mundo das redes sociais, onde tudo temos e nada nos chega. Nos anos 70, em Boston, queríamos que o mundo nos conhecesse. Hoje, o mundo conhece-nos, mas não tem tempo para nós. Sou uma pessoa comum, como outra qualquer.
DL: Qual é a sua ligação a São Miguel?
Aqui, mais do que nas outras ilhas, notava-se muito as classes. Havia uma divisão muito grande e acho que isso moldou a população aqui. De início, senti as pessoas um pouco fechadas, o que é natural, mas quando se abrem é para o resto da vida. É um povo que se mexe. São empreendedores, atrevidos, aventureiros. Criei amizades aqui muito cedo. É uma ilha mágica, embora sinta, com muita pena, que perdemos Ponta Delgada e já não é tão nossa como era. Quem é de cá já não pode passear e usufruir tanto da cidade como fazíamos no passado. Mas não é razão para desistir.
DL: Como foi a experiência de emigrar para os Estados Unidos, em 1971, quando tinha apenas 15 anos?
Já todos falávamos inglês, tocávamos música em inglês, tínhamos televisão e a rádio americana. A Praia da Vitória tinha uma realidade muito diferente do resto do país. Tocamos para os americanos, na Base das Lajes, numa média de duas a três noites por semana. Claro que na América houve coisas menos saudáveis. Sentíamos alguma descriminação da comunidade irlandesa, mas era um país em que sabíamos que se querias, conseguias. Foi o que fizemos, enquanto família. Trabalhávamos uns para os outros. Queríamos que um de nós chegasse algures. Os irmãos mais velhos foram “pavimentando a estrada”, e o mais novo é que dá o salto, mas ele também trabalhou muito para isso.
“Há cheiros, horizontes, mares e pessoas que não esquecemos.
Luís Gil Bettencourt
Depois, quer-se também trazer um pouco dos Estados Unidos.
Queres ajudar, com as tuas ideias, e foi o que fiz, com o festival Maré de Agosto.
Não o criei pela música, mas para o desenvolvimento da ilha.”
DL: Na década de 80 volta aos Açores.
Vim cá passar um fim de semana e fiquei. Quando se sai com 15 anos não é como não se conhecesse isto. Um miúdo com 10, 11 anos, a viver a vida que vivia aqui, não era para qualquer um. Entrava no barco, ia tocar para o Faial, para São Miguel. Isso fez-me crescer bastante. Há cheiros, horizontes, mares e pessoas que não esquecemos. Depois, quer-se também trazer um pouco dos Estados Unidos. Queres ajudar, com as tuas ideias, e foi o que fiz, com o festival Maré de Agosto. Não o criei pela música, mas para o desenvolvimento da ilha.
DL: Nos Açores tem organizado uma diversidade de eventos. Está satisfeito com o trabalho que tem desenvolvido cá?
A Maré de Agosto vai fazer 40 anos, nem é um caso de satisfação, é uma certa alegria. Costumo dizer que a Maré de Agosto e o Carnaval da Terceira são dos bons exemplos de que a cultura pode ser um motor de arranque para a economia local. A Maré de Agosto tem um problema que é acontecer só uma vez por ano. Era importante que durante o ano se fizesse outras coisas, e há essa tentativa.
Os Açores têm de ser promovidos de uma forma única, no meu ver. As outras ilhas precisam das ilhas grandes. Não se pode levar tudo para São Miguel ou para a Terceira. Tem de haver um equilíbrio. Temos de olhar uns pelos outros.
DL: Que projetos tem agora entre mãos?
Eu e a minha filha Maria Bettencourt estivemos em Los Angeles, no outro dia, para ver um novo técnico de gravação e produtor para ela. Também tenho o festival Atlantis. Há outras coisas que gostaria de fazer, em termos de documentários e um pequeno estudo sobre a nossa emigração nos Estados Unidos e no Canadá, por exemplo.
DL: Está a residir na Terceira. Viaja muito em trabalho?
Tem de ser. Venho a São Miguel muita vez, por causa do festival das Sete Cidades, o Atlantis.
DL: O balanço da primeira edição do festival Atlantis, que aconteceu em 2022, foi positivo?
Sim, tinha de ser. Não havia outra forma de resultar. Já temos experiência nestas coisas, eu no lado de cá e o meu irmão Nuno Bettencourt pelo mundo. Sabíamos perfeitamente o que tínhamos de fazer. Tivemos um público impressionante, exemplar. Penso que 90 por cento do festival foi público de cá.
Não queremos fazer à moda de lá, nem à moda de cá. Queremos fazer de uma forma que possa, de alguma forma, ir ao encontro da população, dos músicos e ir ao encontro da nossa intenção, que se prende com a questão ambiental.
Na primeira edição, o público foi de forma saudável. Alguns aspetos que eram muito importantes era as pessoas poderem ir ao festival num horário saudável e praticar um preço acessível à família. Depois, naquela beleza, ouvir música à luz do dia, que é algo que devíamos fazer mais cá. Os Açores são para ser vistos de dia e não de noite.