Rui Tavares de Faria
Professor e Investigador
O tagarela é o terceiro retrato ético que consta da obra de Teofrasto e é, ironicamente, um dos mais curtos, se não o mais curto dos trinta Caracteres. Ironicamente, porque associamos, por norma, o tagarela àquele indivíduo que não se cala, que fala pelos cotovelos e que não reconhece o quão despropositado se torna, na maior parte das extensas interações que desencadeia. O autor grego define a tagarelice como “a narrativa dos discursos imensos e sem nexo.” (Char. 3.1.), mas o que nos dá a ler é extremamente curto, talvez para nos poupar de perdas de tempo a pensar sobre o vazio que domina o falatório prolixo do tagarela.
Ao contrário do que sucede com a língua grega antiga, que apresenta o vocábulo ἀδολεσχίας (transliterado em adoleschías) para este tipo humano, a palavra portuguesa “tagarela” sugere, desde logo pelo seu escopo fonético, uma sucessão de sons que nos parecem querer reproduzir, de certa forma, aquilo que efetivamente significa: o tagarela é alguém que emite um enunciado discursivo longo e sem ter ponta por onde se lhe pegue, devido à ausência de nexo. É como se da boca do tagarela ouvíssemos, em jeito onomatopeias de bebé, tá-tá-tá, tá-tá-tá, gá-gá, tá-tá, ré-ré-ré, tá-tá, gá-gá-gá, ré-ré, tá-tá-tá, lá-lá. Vira o disco e toca o mesmo. Na verdade, é esta a perceção com que ficamos do perfil conversacional do tagarela.
Segundo Teofrasto, o tagarela “senta-se ao lado de um fulano que não conhece de parte nenhuma e começa por lhe fazer o elogio da mulher; depois conta-lhe o sonho que teve na noite anterior; por fim, desfia-lhe, tim-tim por tim-tim, o que comeu ao jantar.” (Char. 3.2.) Que levante o dedo quem nunca passou por este episódio estranho! Os espaços de eleição dos tagarelas são os transportes públicos coletivos e as salas ou filas de espera de um serviço qualquer. No autocarro, no comboio e também no avião, estando nós a viajar sem companhia, corremos o risco de travar conhecimento com o tagarela. Se já está sentado no banco ao lado do nosso quando chegamos, mostra-se logo solícito e simpático. Disponibiliza-se para nos arrumar a bagagem e até se encolhe para que tenhamos a área do nosso lugar mais folgada. Esta é a fase de aquecimento. Se lhe agradecemos com um franco sorriso, estamos tramados! Por isso, um obrigado neutro será a melhor opção.
Nas salas ou filas de espera, o tagarela manifestar-se-á, penso seu, por causa da exasperação que lhe causa precisamente a natureza do lugar ou situação em que se encontra: a espera! Acredito, contudo, que a inexistência de um motivo também lhe fomentará a abertura da boca. O problema é se alguém lhe dá troco… aí, o fulano fala e fala, dá opinião sobre A, diz mal de B, evoca um C, volta a opinar sobre o A, mas já de outro modo; não se cala, portanto. A espera, que já de si é desagradável, parece tornar-se interminável na presença de um tagarela. Os seus destinatários já não lhe respondem, por isso não são interlocutores, e normalmente entreolham-se, culpando em silêncio aquele que, sem querer, abriu as portas à tagarelice. Esta é uma experiência pela qual já terá passado todo o leitor, contando que não tenha sido ele – lamento – a vestir a pele do tagarela.
Para além da constatação objetiva do carácter que assina a autoria dos “discursos imensos e sem nexo”, creio que podemos alargar esse comportamento individual a outros âmbitos que não apenas os atrás mencionados. Pensemos, por exemplo, na verborreia que ouvimos da boca dos mais variados e distintos líderes políticos. E neste domínio Portugal até se vai safando bem; basta verificarmos o efeito de certos fluxos palavrosos no eleitorado, se tivermos em conta os resultados da última ida às urnas. Como é possível que, em certas nações, a tagarelice consiga confundir-se com a demagogia? Como é possível que os cidadãos se submetam à loquacidade vazia daqueles que encabeçam as listas do partido a quem acaba confiado o futuro de um grande país ou, pelo contrário, o futuro de um declínio galopante?
O tipo humano do tagarela converte pelo cansaço. O mesmo se passa com os gatos, que miam e miam até lhes darmos o que de facto pretendem. Mas, enquanto nos rendemos à beleza dos felinos, que podemos mimar (se eles nos deixarem), em relação aos tagarelas a nossa vontade vai para a surdez momentânea. Quando isso acontece, corremos, porém, um risco: o tagarela pensa que estamos atentos à sua conversa, que estamos de acordo com o que, sem nexo, vai falando e nos cansando e, sem querer, ainda nos envolvemos nas incoerências tagareladas, involuntariamente.
Se, nas edições anteriores, pude deixar algumas sugestões práticas para sabermos lidar com o dissimulado e com o bajulador, relativamente ao tagarela devo confessar-vos que nada me ocorre de útil ou lógico, sem ser o remate que o próprio Teofrasto dá ao seu retrato: “De tipos desta força é preciso fugir a sete pés e passar de largo a todo o pano, se se quiser evitar uma seca. É obra aguentar um parceiro que não sabe distinguir o que é ter tempo livre ou estar ocupado.” (Char. 3.4.). Assim, ocorrem-me algumas ideias, disparatadas e dignas de um tagarela, dirão uns, ou engraçadas e exequíveis, pensarão outros. Aqui vão: 1. seguir a moda dos jovens e dos desportistas e ter sempre uns auscultadores postos nas orelhas, quando vamos viajar ou estamos em contexto de espera para sermos atendidos em algum serviço; 2. não encarar o tagarela nos olhos e mostrar um ar alienado, nas circunstâncias antes referidas; 3. simular um telefonema de modo a sair do jogo desinteressante da tagarelice; por fim, 4. exibir má cara, o mesmo é dizer não esboçar qualquer indícios de sorriso ou de concordância no atinente à verborreia que vai fluindo e tentando dominar o ambiente.