Rui Tavares de Faria
Professor e investigador
O leitor que tem seguido, com regularidade, esta coluna e que, até provavelmente, já foi ler Os Caracteres, de Teofrasto, esperaria que, por razões lógicas, ao décimo segundo carácter – o inoportuno – se seguisse o décimo terceiro. Mas, eis que optei por adulterar a ordem. Explico: os três tipos humanos que vêm descritos depois do retrato comentado no mês passado – XIII. O Intrometido; XIV. O Estúpido; XV. O Autoconvencido – caem um pouco na repetição de características das personagens sobre as quais tenho vindo a escrever. Para não entediar o meu leitor, passei para o décimo sexto carácter da lista teofrástica, XVI. O Supersticioso, porque se reveste de novidade e não torna – creio eu – repetitivo nem aborrecido este espaço do Diário da Lagoa, que se quer a priori leve e descontraído.
De acordo com o autor grego, “a superstição é simplesmente o temor do sobrenatural” (Char. 16.1.). À primeira leitura, não nos parece haver uma ligação direta ou explícita com o conceito que hoje temos de supersticioso. Maria de Fátima Silva esclarece, em nota à tradução portuguesa, que a “deisidaimonía [i.e. a superstição] exprime etimologicamente o temor dos deuses ou do sobrenatural e é, na justa medida, uma atitude de piedade, embora o risco de exagero a encaminhe para um temor ou subserviência exagerada perante o divino. A superstição leva à adoção de uma série de práticas fúteis ou a apelos constantes à divindade, como profilaxia contra um receio permanente de sinais de perigo que se inferem até das situações mais comezinhas.” O esclarecimento da tradutora de Teofrasto vem, pois, ao encontro, em larga escala, daquilo que consideramos superstição, nos dias de hoje. Contudo, esta atitude não se circunscreve, como bem sabemos, ao domínio religioso ou do culto sobrenatural. Atualmente, há muitas situações corriqueiras que manifestam receios que traduzem o carácter supersticioso do indivíduo.
Teofrasto diz que o supersticioso “é um sujeito que lava as mãos em três fontes, encharca-se em água benta, mete uma folha de louro na boca e assim fica preparado para começar o dia.” (Char. 16.2) ou “se um gato lhe atravessa o caminho, ele não dá mais um passo antes que alguém por ali passe, ou sem atirar três pedras pela rua fora.” (Char. 16.3.). Assim descrito, o leitor moderno já se revê ou já revê em alguém os traços de carácter motivados pela superstição. Quem é que ainda não recorre às folhas de louro e as guarda em recantos da casa ou na carteira, para garantir prosperidade, porque terá lido num blogue que é recurso do “tira e queda”? Quem, ao ver um gato preto que pode ou não cruzar o respetivo caminho, não pensas no mau agoiro que o episódio lhe poderá trazer? Quem não acredita que o treze é o número do azar e que a sexta-feira, calhando em dia treze, pode ser um dia fatal?
O temor que sente para que nada de mal aconteça leva o supersticioso a encetar um conjunto de rituais para se sentir protegido e abençoado. No Instagram, por exemplo, proliferam mensagens que alimentam esse temor. Frases do tipo “Se não digitar SIM, algo de maléfico irá acontecer nos próximos sete minutos…” ou “Há alguém que não deixa de pensar em você. O nome desse alguém começa pela letra do seu segundo contacto do partilhar em WhatsApp…”, enriquecidas por músicas de fundo que lembram casas assombradas ou cenas de filmes do Hitchcock. Estes jogos – que é, no fundo, do que se trata – estimulam a superstição que, por sua vez, se torna em crença, assumindo a forma quase de uma psicopatia.
Contudo, há outras superstições mais engraçadas que persistem. “Se passares por debaixo daquela escada, não cresces mais…”, avisa a avó que não quer que o neto de sete anos se afaste muito de si; ou “Se brindares com água, não terás sexo durante sete anos…”, adverte o conviva que quer é emborcar mais uns copos. Sempre penso no que dirá um(a) prostituto(a), que faz da prática sexual o seu ofício profissional, se for confrontado(a) com uma advertência dessas. E muitas mais superstições poderiam ser aqui listadas, às quais se juntariam aquelas em que pensa o meu caro leitor.
Mas, estando eu a escrever este texto na Sexta-feira Santa (uso a maiúscula como convenção ortográfica e em sinal de respeito pelos fiéis), creio que se me impõe um breve apontamento relativamente a um assunto que, por desconhecimento de muitos crentes, se tornou não numa manifestação de fé – mortificação voluntária –, mas numa superstição tola. “Em dia de Sexta-Feira Santa, não se come carne!”, alertam os supostos entendidos, pastores de rebanhos, para recordar o tom metafórico das Sagradas Escrituras. Não explicam, porém, a razão dessa prática! Há mesmo quem pense que não deve comer carne, porque é o dia em que Cristo morre, e estaria a “comer o seu corpo!” Não é disso que se trata. A Igreja Católica sugere a prática do jejum e da abstinência na Sexta-Feira Santa, o mesmo é dizer que o crente deve evitar tudo quanto dê prazer ao seu corpo, no dia da morte de Cristo. Deve começar pelo que come, portanto. Ora, antigamente, a carne era um alimento bem mais caro do que o peixe. Assim, na Sexta-Feira Santa, deve optar-se pelo jejum alimentício ou pela ingestão de alimentos que não traduzam o supérfluo ou o luxo. Hoje, está o peixe pela hora de morte! Como fazer, então, se a carne é bem mais em conta do que o peixe? Passar-se a vegetariano ou vegano?
Os supersticiosos continuarão, pois, a comer peixe, para não incorrer na desonra do pecado. Esquecem-se, ironicamente, de que há famintos pelo mundo inteiro para quem os ossos de uma costeleta de porco seriam um pitéu para fazer um caldo capaz de alimentar quatro crianças e dois adultos, fosse em que dia fosse de um qualquer calendário religioso. Assim sendo, que não se parta do ato genuíno de ter e expressar fé para o zelo desenfreado que desemboca na futilidade do excessivo “temor do sobrenatural”.
No ensino existem Professores(as) e depois existem “Margaridas”. Não fomos uma turma fácil de lidar. Nenhum adolescente é fácil de lidar. A Professora Margarida ensinou-nos a ser e não somente parecer. Fez-me rir e chorar de emoção. Transmitiu-me que do passado se faz presente nos estudos/ciência.
O meu interesse pelo comportamento humano a ela o devo. Ensinou-me que as estantes terão de ter livros guardados de forma correta, caso contrário, quando um cair inevitavelmente cairão todos. Recordo-me de lhe querer transmitir todo o meu interesse nos testes, enquanto pedia-me para ser sintética.
Até hoje, a minha admiração prevalece e recordo-a muitas vezes enquanto escrevo. Decidi, por isso, recordar questionando-a depois do tanto que me deu a aprender com amor e, assim, ainda continua.
Quem é a Margarida?
Sou sonhadora, sensível e com emoções fortes. Adoro viver, valorizo muito a minha família e os meus amigos. Sou exigente comigo e com os outros, pouco tolerante, mas com um grande sentido de justiça. Moldada pelo tempo e pelas experiências e histórias que carrego, tento aproveitar cada dia da melhor forma possível e faço projetos como se fosse eterna.
Como surgiu o gosto pela psicologia?
Em parte, por influência de professores inspiradores — de Psicologia e de Filosofia; por outro lado, sempre tive muita curiosidade e fascínio pelo comportamento humano, interesse pelo autoconhecimento, desejo de me compreender a mim e aos outros.
Porquê ingressar no ensino da mesma?
A minha formação de base é Filosofia. O ensino da psicologia foi um desafio que tive de aceitar pois são os professores de Filosofia que lecionam Psicologia no secundário. O desafio foi aceite, fiz muito investimento como autodidata e fui-me apaixonando cada vez mais pela área. A partir daí quanto mais aprendia mais interesse me despertavam os temas relacionados com a mente, as emoções, os pensamentos, os comportamentos.
Este caminho que fui trilhando permitiu-me compreender-me melhor a mim mesma, e contribuiu para o meu crescimento pessoal. Este autoconhecimento também me permitiu compreender melhor o outro, desenvolver a empatia e melhorar as minhas relações interpessoais.
Como se sente a dar aulas?
Fui para o ensino por vocação e, durante muito tempo, senti um grande entusiasmo e paixão. Saía das aulas com o sentimento de dever cumprido e pensava que ainda que não chegasse a todos os alunos, poderia fazer a diferença na vida de alguns deles.
Ao longo dos últimos anos as coisas mudaram muito. Apesar de adorar dar aulas, ensinar pode ser desgastante, especialmente, quando há desafios como falta de interesse dos alunos e dificuldade em cativá-los. Esta realidade é mais evidente na lecionação da disciplina de Filosofia, pois no mundo atual, a busca de resultados práticos e imediatos, muitas vezes, supera a valorização do pensamento. A sociedade moderna incentiva soluções rápidas em vez de reflexões profundas. O avanço da tecnologia e das redes sociais promove informações instantâneas, muitas vezes deixando de lado o incentivo à reflexão crítica.
O que vê nos seus alunos?
Por um lado, talento, potencial, possibilidades de crescimento, desafios, transformações, curiosidade, criatividade, emoções; por outro lado, dificuldades, inseguranças, falta de motivação, baixa autoestima, dependência excessiva do professor, individualismo e muitos problemas emocionais não resolvidos.
Muitos destes aspetos não são apenas “negativos”, mas sinais de dificuldades que podem ser trabalhadas.
O pensam os seus alunos sobre as suas aulas?
Dizem-me, com frequência, que as minhas aulas passam rápido; que são aulas onde têm em alguma liberdade, que podem participar e partilhar algumas vivências e preocupações. Julgo que isso tem a ver com o conteúdo das disciplinas que leciono. Na Filosofia porque promovo muito a reflexão sobre temas da atualidade, fazendo a ponte com os conteúdos programáticos; na Psicologia sentem mais motivação porque as temáticas lhes são familiares, mais suscetíveis de os cativar e interessar e, muitas vezes, vão de encontro, às situações que estão a vivenciar ou já vivenciaram.
Como professora, o meu desafio é encontrar formas de motivar e ajudar os alunos a superar as suas dificuldades. Mas confesso que esta tarefa está a ser cada vez mais complicada. Para tal resultar é preciso que cada um cumpra com a sua parte.
Sinto que a relação com os alunos pode ser muito rica, quando gera interação, conexão, empatia e até laços afetivos mas quando os alunos não têm motivação torna-se difícil chegar à meta.
Acha que o interesse pelo conhecimento do comportamento humano tem aumentado?
Talvez, porque há, na generalidade, um maior interesse pela saúde mental, necessidade de melhorar relacionamentos, autoconhecimento e desenvolvimento pessoal, necessidade de adaptação ao mundo em mudança.
Por outro lado, também me deparo com muitas situações de desinteresse e falta de motivação. O que acontece geralmente é que, no contexto escolar, aqueles que não manifestam motivação para a compreensão do comportamento humano também não se interessam por nada. Isto é que é preocupante. Deparo-me, hoje em dia, com alunos mais desmotivados do que no passado.
Há algum episódio especial que tenha surgido em aula que possa revelar?
Há muitos anos, quando lecionei na Escola Secundária da Ribeira Grande aprendi uma grande lição com um aluno.
Dava aulas a esta turma às 8h e este aluno, numa certa altura do ano, adormecia com frequência nas minhas aulas. Fui chamando a atenção mas a situação foi recorrente. Um certo dia, de forma autoritária, impulsiva e até agressiva, aproximei-me dele e disse-lhe: ”Eu não vou continuar a pactuar com esta situação. Dorme-se em casa e nas aulas é para se estar desperto e atento”. O aluno baixou os olhos e não respondeu. No final da aula, dirigiu-se a mim e justificou a razão pela qual adormecia nas minhas aulas. O pai tinha uma lavoura, tinha adoecido gravemente e não havia dinheiro para pagar empregados. Então, ele (com 16 anos ) e um irmão (com 18 anos) levantavam-se às 4h da manhã para tratar das vacas, voltavam a casa e preparavam-se para ir para a escola e não faltar às aulas.
Fiquei bastante sensibilizada com a situação, pedi-lhe mil desculpas e aprendi que por detrás de cada aluno há uma pessoa que carrega uma história de vida, nem sempre fácil. Aprendi a tentar perceber as causas de alguns comportamentos e, simplesmente, dizer “ Está tudo bem contigo”? ou “Precisas de ajuda? Se precisares estou disponível”. Na verdade, eles precisam sentir-se apoiados. Podem não usar esta ajuda mas precisam sentir que alguém está disponível, no caso de ser necessário.
Imagina-se sem dar aulas?
Durante muito tempo não imaginava a minha vida sem dar aulas e sentia que não conseguiria fazer outra coisa a nível profissional.
Nesse momento sim. Estou em final de carreira, sinto-me cansada, sobrecarregada com tarefas burocráticas, desmotivada e julgo já ter dado o meu contributo e cumprido a minha missão. Já sonho com a reforma e com dedicação a outras prioridades na minha vida.
Fazendo um exame retrospetivo e crítico, julgo poder concluir com justiça, que me empenhei com entusiasmo e lucidez nos desafios que me foram solicitados. Dei o melhor de mim. Com empenho e dedicação abracei a profissão que escolhi por vocação.
O que sugere aos futuros professores?
Ensinar é uma missão! Assim, ensinar é, mais do que uma profissão, é um propósito, é a possibilidade de mudar vidas por meio do conhecimento. Educar não é apenas ensinar conteúdos mas formar seres humanos, preparando-os para enfrentar o mundo. Por isso, para se abraçar esta profissão tem que se ter vocação, tem que se cultivar a paixão pelo ensino. Esta tarefa é bastante desafiante, sobretudo no mundo atual que está a mudar de forma vertiginosa. É preciso ajustar-se e adaptar-se, inovando as nossas práticas.
Por outro lado, é preciso entender o exercício do trabalho na área da docência como um processo de desenvolvimento nunca acabado. Nas várias vertentes do ensino, muito há para despertar, interiorizar e aprender e o envolvimento nestes desafios é essencial para o desenvolvimento pessoal e profissional do professor no cumprimento da sua missão. Nunca pare de aprender. Aprendi que ensinando se aprende!
Entre amigos, antigos colegas, por vezes recordamos a Professora Margarida. Na nostalgia de um passado só compreendido com o amadurecimento daquilo que somos, desafiei Rodrigo Medeiros e Filipe Oliveira a lembrar também esse tempo.
Rodrigo Medeiros: «Sem dúvida que quando enfrentamos situações difíceis na nossa vida profissional, as aprendizagens da Professora Margarida vêm dar uma luz, é uma orientação a seguir.
Sem dúvida que se há professora que marcou o ensino secundário, foi a professora Margarida.
Vivíamos todos uma realidade de proximidade com a vida real porque ela demonstrava como seria a vida profissional e não apenas o mar que navegávamos enquanto alunos livres das responsabilidades que nos esperavam. Ela ensinou-nos a ultrapassar vários obstáculos com palavras simples e frontais, por isso ficará sempre no nosso coração. E, assim, hoje em dia, o seu sorriso e humildade ainda faz brilhar o nosso dia.»
Filipe Oliveira: «Desde a primeira aula que impôs o seu respeito, não deu abertura de folia e brincadeiras (muito provavelmente ja nos tinha feito o “Raio-x”, e com razão).
Fomos alguns que não tínhamos paciência para nada, não queríamos estudar e não respeitávamos quem queria.
Mas se houve alguém que nos meteu na linha, uma delas foi ela, A grande Prof. Margarida. Connosco durante três anos, começamos com quase 30 e terminámos com nove. Professora incrível, com um ensinamento e forma contagiante de dar a sua aula — só não aproveitava quem não queria —, humana ao mais alto nível, pois sabia dividir o seu tempo de professora e o de nossa conselheira. Lembro-me de nos seus testes (1ª parte sempre escolhas múltiplas) e eu fazia um dó li tá, e não é que acertava em quase tudo? O que nos riamos à conta disso. Ainda me lembro da sua gargalhada.
Ficaria aqui a falar durante horas sobre “si”. Agradeço do fundo do coração o caminho que fez comigo/connosco e por não ter desistido de mim/nós. Obrigado “Migui”.»
E, em jeito de desfecho, quis saber igualmente junto de quem tem o maior orgulho.
«Para nós, claro, a nossa mãe é a melhor mãe do mundo! É a pessoa que sempre se dedicou a dar-nos toda a sua atenção, amor, carinho e sabedoria. Sempre a tivemos como uma referência de vida e, cada vez mais, e à medida que também vamos ficando mais velhas, temos a noção de que queremos tentar, pelo menos, ser um bocadinho de tudo aquilo que ela é. Quando éramos adolescentes diziam que éramos “as três irmãs”. Ela ficava toda lisonjeada. Agora percebemos que nós é que deveríamos ficar. Faz tudo por aqueles de quem gosta e que gostam dela, mas também sabe ser assertiva quando é preciso ou quando lhe “pisam os calos”. Quando éramos mais pequenas, ficávamos com vergonha da sua assertividade em público, hoje em dia os nossos maridos dizem que somos todas iguais nesse aspeto. Estudamos na escola onde ela dá aulas e percebemos que vários alunos se referiam à nossa mãe como uma professora especial e ainda hoje temos amigos que passaram pelas suas mãos e continuam a tê-la num cantinho especial do seu coração. Costumamos dizer que é capaz de ser das poucas professoras de Filosofia “normal”, mas talvez normal seja dizer pouco para o que ela realmente é. Neste momento de entrada dos 60 anos, desejamos que ela se mantenha assim durante muitos mais, a partilhar connosco todos os momentos importantes da nossa vida, com saúde, alegria e genica. Parabéns mamã!»
Obrigada por tanto querida Professora.
Rui Tavares de Faria
Professor e investigador
O décimo segundo carácter sobre o qual recai a atenção e o interesse de Teofrasto é o inoportuno. É mais um termo conhecido do leitor contemporâneo e o retrato que dele faz o autor grego em pouco ou nada difere da imagem e do conceito que se tem, atualmente, de quem não mede a oportunidade, antes de agir ou falar. Na verdade, é sobre a καιρός (kairós) – vocábulo igualmente familiar do leitor micaelense –, isto é, a “oportunidade”, “qualidade que a retórica aplicou ao discurso, como a propriedade de usar da palavra ou do argumento na hora certa” (Maria de Fátima Silva), que incide a atuação do inoportuno. Embora curto, o retrato deste tipo ético faz-se em catorze pontos e todos eles dão a (re)conhecer o quão inconveniente e despropositado é aquele que tem “falta do sentido da oportunidade” (Char. 12.1.). Mas centremo-nos nos aspetos mais engraçados.
Segundo Teofrasto, o inoportuno “vê um tipo atarefado, vai ter com ele e põe-se com confidências” (Char. 12.2.), cenário com o qual já nos deparamos uma série de vezes. Desinteressado e completamente alienado do mundo que o rodeia, o inoportuno atribui importância tal àquilo que pode ter de ir dizer a A ou a B, mesmo podendo perceber que A ou B não dispõem de tempo para o ouvir ou até mesmo porque a A ou a B pode nem sequer importar o teor das confidências de última hora que vêm em momento…inoportuno. Do mesmo modo, “faz uma serenata à namorada no dia em que a moça está com febre.” (Char. 12.3.), o que, nos nossos dias, equivaleria, por exemplo, a convidar um(a) amigo(a) para sair à noite debaixo de chuva torrencial ou trovoada imensa. Convite feito no próprio dia, que é como quem pensa: “está sempre a dizer que não o/a convido para nada e eis que, quando convido, não aceita!” Pudera, quem sai à noite de casa, em dia de temporal?!
Outro aspeto gracioso que Teofrasto destaca na figura do inoportuno é o seguinte: “convidam-no para uma festa de casamento, e aí o têm a dizer mal das mulheres” (Char. 12.6). Se fosse num casamento gay masculino até se compreenderia (ou não!), mas, tratando-se de um cerimónia que é, sobretudo para a noiva, desde tempos remotos, uma das ocasiões mais felizes da sua vida, quem “sentido de oportunidade” há em dizer-se mal – ou o que quer que seja de negativo – acerca das mulheres? Ou, noutra situação, “quando já toda a gente ouviu e percebeu, ele, [o inoportuno], levanta-se e retoma a questão do princípio” (Char. 12.9.), como se dele dependesse exclusivamente o que já era do entendimento de todos os presentes…
Atualmente, o inoportuno também repete as mesmas cenas a que se refere Teofrasto e que no-las reporta de modo engraçado, mas há outros comportamentos que, nas últimas décadas, têm redesenhado este carácter humano. São inoportunos os que nos interrompem sem pedir licença, quando estamos nós a deter a palavras (Oh! Quantas vezes!); são inoportunos os que fazem intervenções pouco felizes acerca do foro íntimo de quem, estando ausente, não tem a oportunidade de se defender ou justificar; são inoportunos os que nos abordam com problemas e mais problemas, não no sentido de nos pedirem auxílio, mas com o objetivo de se de tomarem por vítimas, incessantemente. São, ainda, manifestações de falta do sentido de oportunidade procurar achincalhar o outro diante de seja quem for ou divulgar um assunto que se quer reservado ou que venha ser surpresa, só pela simples satisfação de estragar ou antecipar o momento.
Por isso, caro leitor, façamos por entender e compreender a oportunidade. Manter o silêncio, evitar aquela frase que nos dá comichão na língua ou fazer “ouvidos moucos” são algumas das formas que inviabilizam que sejam ou nos tornemos inoportunos. É como se diz: a ocasião faz o ladrão, o mesmo é dizer que o oportunidade cria o inoportuno. Às vezes, é mais forte do que nós, mas o decoro e a cortesia devem imperar e ter a voz mais elevada!
Quem sou eu?
Sou um exagero ambulante. Como pessoa, sou o caos organizado pelo amor, uma tempestade que se acalma quando encontra um olhar sincero. Como escritor, sou a tentativa de transformar esse caos em palavras que respirem, que gritem, que amem. Escrevo porque só assim me sinto inteiro. Há quem viva a vida a tentar sobreviver; eu escrevo para tentar viver melhor. A minha escrita é um reflexo do que sou: imperfeito, apaixonado, intenso. Quero que cada palavra minha faça alguém sentir, mesmo que seja raiva, porque pior do que sentir algo é não sentir nada.
O que o Benjamin me ensinou?
Ensinou-me que o amor não precisa de explicação. Que ser pai é desaprender a viver sozinho, porque, a partir do momento em que nasce um filho, já não existimos apenas para nós. Ele ensinou-me que a vida é feita de detalhes pequenos que, no fundo, são enormes. Que um sorriso pode salvar um dia inteiro. Que um abraço pode ser casa. Que o tempo passa depressa demais e que estar presente é a única forma de realmente viver. Com ele aprendi a amar de forma incondicional, a aceitar que o erro faz parte do crescimento e que amar alguém é desejar que seja sempre maior do que nós.
Como surgiu a escrita?
Surgiu como tudo o que é inevitável: sem aviso. Eu era um miúdo que se encantava pelas palavras, que descobria na literatura uma forma de fugir e, ao mesmo tempo, de me encontrar. Sempre escrevi para tentar compreender a vida, para tentar organizar o caos dentro de mim. Inspiro-me na vida, que é o maior livro já escrito. Nos olhares que se cruzam sem se verem. Nos amores que nascem sem se entenderem. Nas dores que ninguém vê, mas que estão lá. Escrevo porque, se não escrevesse, sentiria que não estava a viver por completo.
Como lido com críticas?
Mal, como qualquer ser humano. Dói sempre saber que alguém não gostou do que escrevemos, porque cada palavra que coloco no papel vem de mim. Mas aprendi que as opiniões são como os ventos: algumas ajudam a navegar, outras apenas fazem barulho. Nem todas merecem ser escutadas. Algumas são construtivas e ajudam-me a crescer; outras são apenas ódio disfarçado. Não posso escrever para agradar a todos, porque, se o fizesse, deixaria de escrever para mim. E a única forma de ser verdadeiro é escrever sem medo, aceitando que nunca vamos ser unânimes – e ainda bem.
Sobre “O Hospital de Alfaces”
É um livro sobre o que nos salva. Sobre o absurdo e o essencial. Sobre o que parece estranho, mas é profundamente humano. É uma viagem ao improvável, mas que, no fundo, é muito mais real do que parece. Fala de um hospital onde a cura acontece de formas inesperadas, onde a esperança se veste de surpresa. Foi um dos livros que mais me desafiaram a escrever, porque me obrigou a questionar tudo aquilo que damos por garantido. No fundo, é um livro sobre o que significa realmente estar vivo – e o que estamos dispostos a fazer para continuar a estar.
Ser escritor é ser intenso
Sempre. Porque escrever é arrancar o coração e colocá-lo em cada palavra. Sem intensidade, a escrita é um corpo sem alma. Ser escritor é viver em extremos: ou se sente tudo, ou não se sente nada. Escrevo com todas as células do meu corpo, porque não sei fazer de outra forma. Cada texto é um mergulho sem saber se há água. Cada livro é um grito que espero que alguém escute. Escrever é sentir tudo ao mesmo tempo e tentar transformar isso em algo que faça sentido. É loucura, é amor, é necessidade. Ser escritor é ser vivo em dobro.
O efeito dos meus livros nas pessoas
Saber que um livro meu aproxima pessoas é um dos maiores presentes que posso receber. A escrita é um abraço em forma de palavras. É uma ponte entre quem lê e quem sente. Saber que “Prometo Falhar” serviu para fortalecer a vossa amizade enche-me de gratidão. A literatura tem esse poder incrível: faz-nos sentir menos sozinhos. E, no fundo, todos escrevemos – e lemos – para isso: para nos encontrarmos no outro. Obrigado por partilhares essa história comigo.
Os meus emojis para si.
Porque palavras às vezes são demasiado pequenas. Um emoji pode ser um afago, um “estou aqui”. E estou. Mesmo sem saber quem és, soube que as palavras precisavam de um toque extra, de um sinal silencioso de que eram para ti. Porque escrever não é apenas colocar palavras no mundo – é fazer com que alguém se sinta visto. E se, de alguma forma, esses emojis foram um empurrão, fico feliz. Talvez a literatura seja isso: um conjunto de pequenos empurrões na direção certa.
A nova geração e a escrita
Escrevem como vivem: intensamente, com urgência, com sangue. E isso é maravilhoso. A literatura precisa sempre de novas feridas e novas curas. Vejo uma geração que já não tem medo de se expor, que não quer apenas contar histórias, mas senti-las. Isso faz-me acreditar que a escrita nunca vai morrer, porque enquanto houver quem queira transformar dor em arte, a literatura continuará a respirar. Cada época tem os seus escritores, e cada escritor tem o seu tempo. O importante é continuar a escrever, a arriscar, a encontrar novas formas de fazer com que as palavras nos salvem.
O meu futuro
Continuar a escrever. Continuar a amar. Continuar a falhar. Porque é falhando que prometo continuar. O futuro, para mim, é um livro que ainda não escrevi. Sei que quero continuar a ser alguém que acredita no poder das palavras, que não tem medo de errar, que vive com intensidade. Quero escrever histórias que façam alguém sentir-se menos sozinho, que sirvam de abrigo, de espelho, de impulso. Não sei onde estarei amanhã, mas sei que estarei sempre onde a escrita me levar. Enquanto houver algo para contar, eu estarei aqui.
Poderia descrever um tanto sobre o Pedro, ou poderia ser só mais um Pedro, mas nunca será um resumo. O Pedro, além de escritor e orador, foi dos muito poucos que me deu conforto na escrita e, só por isso, tem todo o meu respeito e admiração.
A humanidade que é escassa em muitos, transborda no Pedro.
Obrigada Pedro.
Rui Tavares de Faria
Professor e investigador
O décimo primeiro carácter a que Teofrasto dedica nove pontos muito breves é o disparatado, termo com que o leitor da atualidade está inteiramente familiarizado. O retrato que dele faz o autor grego é, na verdade, curto, sugerindo talvez nesta extensão a brevidade do “disparate” que é, nas suas palavras, “uma atitude espalhafatosa e chocante” (Char. 11.1). A julgar pela definição enunciada, estamos em crer que vivemos atualmente num “disparate” constante, pois são tantas as situações ilustrativas de espalhafato e os episódios que nos chocam diariamente que só podemos concluir o seguinte: estamos a conviver com um mundo “disparatado”!
Quanto ao perfil deste tipo ético, Teofrasto enumera circunstâncias hilariantes que nos permitem encontrar facilmente correspondências, nos dias de hoje, daquele que, “diante de senhoras, arregaça as fraldas e mostra o sexo” (Char. 11. 2) ou, “no teatro, bate palmas quando os outros deixam de bater; assobia aos atores que os outros admiram; e, no meio do silêncio geral, estica o pescoço e arrota, de modo a fazer o anfiteatro inteiro voltar-se para ele” (Char. 11.3). É uma figura caricata de facto, mas bastante comum na nossa contemporaneidade. Pelo menos na de Ponta Delgada ou, em sentido lato, na nossa ilha de S. Miguel.
Ainda há um ou dois anos a comunicação social impressa noticiava casos de exibição dos genitais por indivíduos sem-abrigo aos turistas que se passeavam pelas artérias centrais da capital micaelense. Os estrangeiros, pensando aqui encontrar o “paraíso perdido” – não o de Milton, mas o de uma revista turística qualquer –, deparavam-se com uma imagem pervertida do jardim do Éden, onde homens despiam as calças e abanavam o “mangalho”, no canto de uma das várias ruelas que compõem o centro histórico de Ponta Delgada. Acredito que tenha havido quem tivesse gostado de apreciar o estado masculino autóctone na sua mais nua representação, mas, por outro lado, não deixa de ser um grande “disparate” ter de lidar com situações como essas. De há algum tempo para cá deixou de se ouvir falar sobre os disparatados que baixavam as calças ou os calções para exibir a potencialidade (caída) do abono de família! Terão encontrado abrigo ou terão sido acolhidos por algum(a) turista que neles reconheceu potencial naquela sua arte exibicionista? Nunca se sabe…
Outros disparates, porém, mantêm-se e tendem a constituir traços caracterizadores intrínsecos de um certo tipo de gente apalermada. O que “bate palmas quando os outros deixam de bater” é um indivíduo que persiste. Não no teatro, que aqui, na nossa terrinha, não há espetáculos dessa arte com a frequência e a fartura com que existem noutras cidades. O disparatado local aplaude comícios, perante a verborreia dominante de discursos políticos vazios e mal estruturados; louva, com aplausos, as figuras públicas da praça, sobretudo aquelas que chegaram onde chegaram por uma série de disparates; bate palmas a si próprio, porque não tem qualquer noção do quão disparatado é. Não “assobia aos atores”, mas grita “buhhh”, quando alguém com dois dedos de testa anuncia um bom plano estratégico para a resolução de um dado problema, ou “arrota” diante de alguém respeitado, simplesmente porque se quer fazer notar. Vistos os cenários nesses prismas, temos mesmo de considerar a hipótese de o nosso mundo se ter convertido num autêntico e enorme disparate.
Por outro lado, há episódios espalhafatosos e chocantes que convidam à presença o disparatado. E estes episódios são, aliás, bem corriqueiros. Quantas vezes não “passa um sujeito com quem [o disparatado] não tem intimidade nenhuma e ele põe-se a chamá-lo pelo nome” (Char. 11.5) como se fossem grandes amigos? Quantas vezes “um fulano vem a sair do tribunal, depois de ter perdido um processo importante e o nosso homem [i.e. o disparatado] salta-lhe em cima para lhe dar os parabéns” (Char. 11.6)? É claro que, nestes casos, o disparatado se confunde com o despropositado, aquele indivíduo que, não tendo ideia do ridículo a que se expõe, atua com a maior das naturalidades nas circunstâncias mais caricatas ou adversas.
Em tempos ouvia-se amiúde da boca dos adultos – dos nossos pais e avós, por exemplo – a expressão “não digas disparates”, como forma de negar um dado pedido aos mais novos. À primeira vista até nos pareceria desadequado usar o termo “disparate” para dizer “não” a um “posso sair logo à noite com os meus amigos?”, mas, se pensarmos um pouco, veremos que o propósito da pergunta prevê uma situação espalhafatosa ou até chocante. Basta para isso atentarmos no estado em que os jovens adolescentes regressam a casa às cinco da manhã, completamente alcoolizados e drogados. Foi um disparate! Ou, então, quando se anunciava alguma coisa sem sentido, descabida aos olhos dos mais velhos, era também vulgar escutar-se o “não digas disparates”. Muitas vezes estes “disparates” coincidiam com rumores, maledicências que se tinha ouvido a fulano ou beltrano e que desonravam sicrano ou sicrana.
Por isso é que se vive da forma como se vive, dando atenção a disparates e sendo conivente com disparatados. Há que ter a noção de que chocar os outros não é – nunca foi – uma atitude eticamente louvável. Opõe-se ao ato de disparatar a consciência da discrição, propriedade de carácter em vias de extinção. Porque se antes os disparatados atuavam numa esfera social paralela, a mais provinciana, hoje lideram empresas e governam países e tomam decisões em nome do disparate em que se metamorfoseou o seu cérebro. Quer isto dizer que se tornaram numa espécie ética em autêntica proliferação. É lamentável, portanto, mas é a realidade.
No meu pensamento, hoje, passeiam-se, como se dum filme se tratasse, as velhinhas da rua do Pico quando desciam à nossa mercearia para fazerem as suas compras. Na maioria vinham de xaile escuro pela cabeça, cobrindo-lhes quase o corpo todo. Só lhes via a fronte, os olhos, o nariz e a boca. Assim que chegavam encostavam-se ao balcão, mas antes de me dizerem ao que vinham, ponham em dia a conversa com as vizinhas do pico de cima, se elas eram do pico de baixo. A Ti Maria dos Anjos Marrenêga, na tarela com a Ti Virgínia Bainêta, a Ti Amélia Rondoa com a Sofia Secalhita, a Tia Rosa Caga-Pregos com a mãe do Saneta, a Ti Gilda Pés-Sujos, com a Ti Lurdes Arrepiada e outras que iam chegando enquanto umas iam saindo. Os apelidos não tinham nada de mal, era e é apenas uma maneira de nos recordarmos de quem estamos a falar, porque na verdade os primeiros nomes se pareciam e o povo usava as alcunhas em vez dos apelidos do nome próprio. Elas sabiam o respeito que eu nutria por todas elas e até me chamavam de “menino Roberto”. Se uma me pedia dezoito vinténs de tabaco-de-cheirar a outra queria uma serrilha de chá preto ou seis vinténs de cloral. Metade de um pão e trinta centavos de queija, dava para o almoço e só custavam uma pataca. Nisso entrava o José Pereira, todo alegre com a mão fechada simulando uma corneta em frente da boca e entoando o instrumento do músico José Elias “pinguinha” da nossa banda Fraternidade Rural. Vinha atazanar a mãe para lhe comprar uma serrilha de cigarros-à-larga S. Luís da Fábrica de Tabaco da Maia. Enquanto isso eu tentava entender o Serafim “gaiafo” que queria “ú li petó”, que depois entendi que o que ele pedia era “um litro de petróleo”, não fosse o João “rachadinho”, o nosso empregado, a fazer-me a tradução.
Enquanto isso, uma menina entrou, distraída e absorta, com dezoito vinténs apertados na mão, porque já não se lembra o que foi que a mãe lhe pediu que fosse comprar à antiga Cova da Onça.
Não podemos mudar o passado nem o trazer de volta. Só sinto a falta dele! Sinto falta do comércio tradicional e do tempo em que eu e meus dois irmãozinhos brincávamos, depois da porta fechada, aos “clientes, caixeiros e donos da loja”. Minha irmãzinha Lina era a cliente, Duartinho, um ano mais velho do que ela enchia os pacotinhos de meio e de um quilo de açúcar e eu os pesava na balança. Depois, eu unia superiormente as pontas dos pacotes, dava-lhes duas voltas na vertical e voltava para dentro as duas orelhas que sobressaiam e entregava à cliente. Foi assim que nosso pai, Manuel Egídio de Medeiros nos ensinou enquanto minha mãe que descera de casa à loja, colocava na sua face um sorriso, ao ver-nos, antes de avisar meu pai que se tornava tarde para os meninos irem para a cama, e, ele também.
– “Lia, eu já vou, leva-os que já subo também a seguir.”
Cresci e tornei-me rapaz e homem com meus irmãos mais novos no comércio tradicional na Vila de Água de Pau. Meu pai ensinava-nos que se soubéssemos servir bem um cliente e se ele nos respeitasse e admirasse, da mesma forma a sociedade nos acolheria e respeitaria na nossa vida.
Por isso, “Antes que a Memória se Acabe” registo estes e muitos outros momentos do meu passado num livro de crónicas de Água de Pau.
Talvez 70% ou mais dos que alegam diversos motivos para não comprarem no comércio tradicional, em Ponta Delgada ou nas Freguesias e Vilas rurais de S. Miguel, não sabem, não se lembram ou os pais esqueceram-se de lhes dizer, ensinar ou educar que TODOS os seus pais, avós, bisavós e trisavós foram sustentados, sobreviveram ou não morreram de fome graças ao comerciante, ao merceeiro, loja do canto, ou ao comércio tradicional, como agora se diz.
Tanta gente que agora, nas redes sociais, sabe tão bem escrever, mas não sabe nada nada, do que foi e como foi a vida no tempo em que se comprava fiado para pagar na colheita. Aliás, nem sabem o que é a colheita, pois só conhecem agora as «lindas» pastagens verdes “sem vacas”, porque nem estas já pastam. Mas, disso, nem sabem também porquê?!.
Desde criança, ia eu à “Loja da Preta” em Ponta Delgada, do senhor “Dias” e dos filhos, pela mão de meu pai, não apenas no Natal, para ver os brinquedos, mas muitas vezes durante o ano. Que saudades desse tempo!
A geração de agora, não tem saudades de nada, porque nada têm, nem sentem, para recordar-se daquele tempo: nem sobre a sua história, infelizmente. De resto, já é tarde demais para corrigir o que está feito, mas possível ainda é educar e ensinar aos mais novinhos que nem sempre a nossa vida e a nossa saúde estão bem e que tempos difíceis pandêmicos acontecem, nem que seja de 100 em 100 anos. Nessa altura é que alguns se interessam em “ouvir ou interrogar-se” como era no tempo quando ocorreu a pandemia anterior? Mas, grande parte das pessoas são irresponsáveis mesmo e não querem saber nem do comércio tradicional nem em proteger-se desta pandemia.
Na primeira década deste século XX, enquanto vereador da cultura e vice-presidente da Câmara Municipal da Lagoa (1990-2009), apresentei em reunião camarária uma proposta para a aquisição da antiga “Mercearia Central” e residência anexa. Por aprovação camarária o concelho de Lagoa passou a ter “O Núcleo da Mercearia Central – Casa Tradicional”, alojado num edifício fundado no século XIX, na Praça da República da Vila de Água de Pau.
No interior há uma exposição que pretende mostrar a atividade comercial do século passado, através da mercearia e da taberna, ambas localizadas no rés-do-chão. No piso superior são evocadas as vivências domésticas de uma família da pequena burguesia local (José Inácio Vieira Favela e Angelina da Conceição Reis), no espaço que foi a sua habitação, que ocupa o primeiro andar e o sótão.
Rui Tavares de Faria
Professor e Investigador
Iniciar o ano a falar sobre mesquinhice pode não parecer um bom augúrio. Tranquilize-se, porém, o caro leitor, porque o décimo tipo ético a que se dedica Teofrasto nos seus Caracteres bem pode ser ilustrativo de um comportamento ou modus uiuendi a considerar no dia a dia, não apenas no período cronológico que agora se inaugura, mas também a médio e a longo prazo. A mesquinhice, afirma o autor grego, “é uma economia levada para além das marcas.” (Char. 10.1). O que mais se deseja “para além das marcas” em véspera de Ano Novo? Prosperidade! E se estes votos traduzissem a mesquinhice teofrástica, não seria de facto próspero – financeiramente – o Ano Novo? Na ótica do “mesquinho”, não há esbanjamentos, não há manhãs e tardes passadas no shopping a encher sacos com prendas para o Natal ou para o Reis, não se coloca sequer a hipótese de beirar o supérfluo… De acordo com os traços deste carácter humano, a quadra que ainda se vive e celebra restringir-se-ia ao extremamente necessário e básico, o mesmo é dizer a um amealhar de “prosperidades” para os 365 dias que se seguem, evitando dispensar o que quer que seja ou fosse com o(s) outro(s). Esperto, pois claro.
O termo grego a que corresponde a palavra “mesquinho” em português, opção mais que acertada pela tradutora de Teofrasto, é μικρολόγος (mikrológos). Procedendo à decomposição morfológica do vocábulo chega-se, quase por intuição, a μικρός (pequeno, pouco) e λόγος (palavra, conhecimento, …), estrutura que sugere, à letra, qualquer coisa como “o de pequenas/poucas palavras ou ações”.
Etimologicamente, o μικρολόγος (mikrológos) é, assinala Maria de Fátima Silva, “o miudinho, aquele que presta atenção e faz contas a coisas pequenas; tem, portanto, um lado de avareza na sua personalidade”; e a classicista acrescenta que “sobre a falta de maleabilidade no que respeita ao dinheiro, Aristóteles (Ética a Nicómaco 1121a, 10-15) divide os comportamentos humanos em dois estilos: “os que exageram no receber e os que se excedem no não dar.” […] É sobretudo nesta dicotomia que o mesquinho e o avarento divergem, o primeiro muito apertado no dar e o segundo sobretudo preocupado em receber e acumular. Logo o mesquinho ensaia, de certa forma, um comportamento regular para com os outros, apenas se excede no grau das restrições que impõe.” Por outras palavras, embora próximo do sovina ou do forreta, o mesquinho tem a particularidade de se “autorrestringir”, apertando-se no dar. Não há neste perfil um ideal de busca da prosperidade?! No poupar está o ganho, dita o adágio popular, e nesta perspetiva não se sabe se o português (nós!) não deveria assumir um carácter de mesquinhice de vez em quando, com o objetivo de se impor certos limites e aproximar-se dos que são efetivamente prósperos (como os nórdicos, por exemplo). É caso para se refletir sobre o assunto…
Na verdade, o mesquinho de Teofrasto é aquele que, “a meio do mês, vai a casa de um devedor cobrar uns míseros cinco tostões” (Char. 10.2.), logo, os empréstimos ficam devidamente saldados, não há aqui o “pagas (muito) depois” ou o “nunca chega a pagar”. O mesquinho é aquele que, “num banquete, deixa contas a quantos copos cada um bebe e, entre todos os convivas, não há quem como ele rateie as oferendas a Ártemis.” (Char. 10.3), ou seja, é o indivíduo que, num jantar entre colegas e/ou amigos, não aceita dividir equitativamente a conta, uma vez que não bebeu vinho ou não comeu sobremesa.
Chamemos-lhe de tolo! O mesquinho é aquele a quem trazem “a comida por uma pechincha e, quando se lhe apresenta a conta, ele queixa-se de que é muito caro” (Char. 10.4); trata-se, pois, não de um insatisfeito, mas de alguém excessivamente crítico que, procurando apertar-se no dar, exige uma correspondência entre a qualidade do produto que adquire e o valor que por ele tem de pagar. Os exemplos continuam, mas os que antes se enumerou são suficientes para se justificar a intenção inicial de que o “mesquinho” pode ser um bom augúrio para se ter ou alcançar a tão desejada prosperidade que se recebe nos votos de um feliz Ano Novo.
Poupado e atento – e não sovina ou forreta –, ser-se mesquinho é, afinal, sinal de se possuir alguns dotes de inteligência (prática, com certeza) ou, pelo menos, de um certo sentido de oportunidade e estratégia de atuação social. Veja-se como nos rodeamos de adeptos da mesquinhice. Quantas vezes não se acompanha um colega de trabalho ao café e se avança, dois ou três dias seguidos, com os “míseros cinco tostões” para pagar os dois cafés? Nunca aconteceu o aparecimento de um outro colega, à hora do almoço, que, não fazendo planos para nossa companhia, se junta, almoça e se esqueceu da carteira? Noutros casos, quando se organiza um convívio, há sempre um elemento – o mesquinho – que se recusa a participar no evento porque o valor lhe foge, diz ele, do orçamento semanal, mas conduz um carro de topo de gama e tem piscina aquecida em casa. Ou, ainda, em comemorações que implicam dar uma prenda a um colega ou a um aniversariante, há também aquele envolvido que considera de mais proceder desse modo, pois a sua presença e o valor que pagará pelo almoço/jantar já são oferta mais que satisfatória…
Talvez por tudo isso não seja de todo despropositado ser-se mesquinho, porque é o mesquinho quem sai sempre a ganhar, é ele quem sabe, na realidade, o que é a prosperidade. Esquivando-se àquilo que considera supérfluo, impondo-se limites nos gastos, sobretudo naqueles que não lhe dizem diretamente respeito, que é isso senão saber poupar e, ato contínuo, prosperar? Fica, pois, a ideia de que nem todos os perfis éticos desenhados por Teofrasto nos Caracteres são exclusivamente negativos. Desejados votos de um próspero 2025, com a devida e necessária mesquinhice!
Ser-se mesquinho é, afinal, sinal de se possuir alguns dotes de inteligência (prática, com certeza) ou, pelo menos, de um certo sentido de oportunidade e estratégia de atuação social.
Às portas de 2025, é tempo de reflexão. 2024 é um espelho das nossas ações e interações, onde urge pensar sobre o ser humano. A avalanche de notícias torna difícil distinguir a verdade, enquanto perdulários ocupam cargos de poder e guerras eclodem apenas para alimentar a máquina bélica. Os antagonismos agravam-se, polarizando as opiniões entre direita e esquerda, preto ou branco.
Vivemos isolados em ilhas e (des)conectados, presos na luz rectangular do telemóvel, que olhamos mais de 300 vezes ao dia.
Falo de mim porque é a experiência que domino. 2024 constituiu um marco na minha vida, onde resistir e persistir foram essenciais para pequenos sucessos. Um deles é a marca Mythica, que junta o poder da fauna e flora açorianas à inovação em dermocosméticos, com ingredientes secretos como o raro Asinus Atlanticus da Ilha Graciosa. Este projeto nasceu com prémios, incluindo o German Brand Award. Neste Natal, o meu lema é: “Compre local!” Ajuda a economia e apoia empreendedores resilientes. Nada disto foi tarefa simples.
O segundo projeto, a Casa Matriz Séc. XVI, ressuscitou um alojamento com 540 anos, acolhendo hóspedes de todo o mundo. Aqui, a hospitalidade é um ato humano essencial. Os nossos colaboradores não são meros executores; são a engrenagem de um palco em que os hóspedes são os protagonistas. A humildade, a paciência e a tolerância são virtudes fundamentais. A crítica pública deve ser equilibrada e a responsabilidade é necessária para que a nossa equipa mantenha a motivação.
Essas histórias podem parecer de perlim-pim, mas por trás delas estão muitos desafios. A acomodação nunca foi uma opção; a busca incessante pela melhoria pessoal é vital. A Inteligência Artificial deve ser vista como uma ferramenta que otimiza as nossas capacidades humanas, não como um substituto para a
interação.
“Para ser grande, sê inteiro: nada teu exagera ou exclui”, dizia Ricardo Reis. Precisamos entregar-nos totalmente ao que fazemos, escutando os outros atentamente. Em pequenas ações de respeito, vemos a importância do civismo. De que serve dar educação de excelência se na vida quotidiana não exercemos
esse civismo?
A escritora Han Kang, laureada com o Prémio Nobel da Literatura em 2024, lembra-nos que, sem atos humanos, “o mundo escurece”. Não será por isso que acendemos tantas luzes no Natal?
Em 2025, desejo ver a aliança entre criatividade e empatia, pois a arte é sublimação. Se lançássemos a Voyager 3 ao espaço, o que enviaríamos? A Voyager 1 e 2 levaram sons e outros registos da Terra, representando a diversidade humana. Na Voyager 3, devíamos transmitir a nossa generosidade,
coragem e capacidade de criar laços de confiança. Seria bom sermos lembrados pela nossa inclusão e compreensão. O amor será sempre o nosso maior legado, o nosso verdadeiro eco humano.
Rui Tavares de Faria
Professor e Investigador
Dos retratos éticos dos Caracteres de Teofrasto que aqui temos vindo a analisar, a comentar e a recriar à luz da modernidade, o Descarado é talvez aquele que menos correspondências estabelece com a noção ou o conceito que hoje se tem do indivíduo que tomamos por um “descarado”. Em nota à tradução portuguesa, Maria de Fátima Silva refere que, comparativamente ao tipo humano do Descarado descrito por Aristóteles na Ética a Nicómaco, “o quadro traçado em Caracteres não acentua, no entanto, aspetos morais, mas regras de convivência.” Na verdade, antes de apresentar o perfil do Descarado, Teofrasto define o descaramento como “o desprezo pela opinião pública, com vista a benefícios mesquinhos” (Char. 9.1.), ou seja, segundo o autor grego, quem pratica o descaramento tem objetivos definidos, é como se houvesse recurso a uma máscara – a do Descarado – para camuflar o carácter de interesseiro e/ou oportunista que caracteriza o tipo teofrástico.
Ora, falar de descaramento nos dias de hoje significa falar de “caras de pau” (na variante do português do Brasil, já adotada por Portugal), “gente sem um pingo de vergonha na cara”, “tipos despropositados” que procuram integrar-se nos mais variados meios e nas mais diversas situações, sem que com eles mantenha qualquer tipo de relação ou afinidade. Se, para Teofrasto, o Descarado é aquele que, sabendo do caso de alguém que sofreu um calote, pede precisamente à vítima dinheiro emprestado (Cf. Char. 9.2), para nós, cidadãos da modernidade, o Descarado é quem se dirige ao autor do calote e lhe chama de caloteiro. Se, para Teofrasto, o Descarado é aquele que, “no dia em que fez sacrifícios aos deuses, arranja maneira de ir jantar a casa de alguém” (Char. 9.3), para nós, o Descarado apresenta-se em casa de alguém à hora de jantar, pergunta se vai jantar e, mesmo dizendo que tem jantar feito à sua espera em casa, acaba sentando-se à mesa de quem lhe abriu a porta e come com ele. Que levante a mão quem ainda não experienciou tamanho descaramento!
O “nosso” Descarado, i.e., aquele que não tem vergonha na cara, acaba por ser um tipo humano até bastante comum na sociedade hodierna. Pensemos em alguns exemplos. No âmbito político, quando sabemos que certos cargos ou postos de comando são ocupados pelos filhos, pelos afilhados, pelos sobrinhos de quem está no poder num dado momento, o que dizemos? É cá um descaramento! No campo religioso, quando ouvimos da boca dos curas que é preciso viver o desprendimento e a pobreza, que é necessário exercer a caridade e ajudar o próximo, mas logo a seguir à cerimónia eucarística põe-se a milhas o vigário num carro de topo de gama, o que dizemos? É cá um descaramento. E quando, no domínio da educação, se apregoa a desburocratização e se promove o sucesso escolar, mas a insatisfação dos docentes e os maus resultados dos alunos persistem, o que não hesitamos em dizer? É cá um descaramento.
Noutras circunstâncias – e também bastante corriqueiras –, o Descarado é o indivíduo que não se preocupa minimamente com o propósito, a elegância ou a cortesia das suas falas ou dos seus atos. Aborda os colegas no sentido de lhes dizer algo menos positivo ou apropriado, mesmo sabendo que essa sua abordagem constitui, por exemplo, uma apreciação pejorativa ou rude. Não se diz a uma colega recentemente divorciada, vítima que foi de sucessivos enganos por parte do ex-cônjuge, que se viu o dito marido a passear com a nova conquista! Também não se refere a bom som à secretária do chefe que ela está mais jeitosa do que o habitual porque pretende seduzir o patrão a troco de um aumento ou de um par de dias de férias a mais do que os restantes colaboradores! Sem “papas na língua” e com a perfeita noção do desadequado, o Descarado deixa mal qualquer um. E é talvez por isso que é o tipo ético paradigmático do destemido.
Na realidade e ao contrário do retrato desenhado por Teofrasto, que nos apresenta o Descarado como alguém cuja conduta tem em vista “benefícios mesquinhos”, a versão moderna desse tipo humano concebe um indivíduo que age propositadamente de forma natural. E se há alguma intenção que resulte do descaramento stricto sensu, não nos parece que tenha como objetivo “benefícios mesquinhos”. O Descarado nosso contemporâneo limita-se a dizer, sem rodeios ou subterfúgios, aquilo que pensa, seja ou não verdade, envergonhe ou não o alvo a quem se dirige. A sua natureza descarada torna-o numa figura de quem se gosta de estar afastado, porque da sua boca pode sair – e sai de facto – qualquer coisa. Por isso, não vale a pena correr riscos e optar por ter os descarados nos círculos íntimos de convívio. É de crer que se tornem mais comedidos com quem os trate bem. Tomam-se por sinceros, quando efetivamente o que dizem pode bem pôr em causa a integridade de uma dada pessoa, expondo-a ao olhar e aos ouvidos de toda a gente. Contrariamente à sugestões por mim deixadas nos textos antes publicados, acho que é prudente termos o Descarado por “amigo”. Ganhamos ambos com isso.
Regresso aos Estados Unidos para realizar dois grandes presépios a convite da Portugalia Marketplace. Neste natal de 2024 inaugurará na sua loja em Fall River, no dia 6 de dezembro, pelas 6.00pm, um presépio de tradição lagoense em movimento inovador com nuances diferentes dos anteriores.
Porque a Portugalia Marketplace e toda a família do empresário Fernando Benevides, passada uma década a permitir-me promover e a realizar Presépios da Lagoa para os seus clientes luso e americanos, vai expandir a sua iniciativa e promoverá outro em New Bedford, na Biblioteca da Casa da Saudade. Este segundo presépio, terá também o apoio da Magazine “A Praça” porque Filomena Branco, uma das suas colaboradoras, ofereceu-me, a pedido do seu editor, David Loureiro, uma coletânea de figuras e casas dum magnífico presépio americano.
Assim, no dia 5 de dezembro pelas 5.00pm, a Biblioteca Casa da Saudade abrirá as suas portas ao público para a abertura da exposição de um inédito presépio açor-americano, pois integrará as duas tradições com figuras natalícias dos bonecreiros de Lagoa nos Açores juntamente com figuras e elementos urbanísticos americanos.
Na abertura de ambas as exposições contaremos com a presença do Mayor das respetivas cidades, representantes da Casa dos Açores da Nova Inglaterra, Escolas Portuguesas, Maria Tomasia e o grupo de Idosos da Casa da Saudade, assim como convidados, lagoenses, público da biblioteca e clientes da Portugalia Marketplace, o “ponto de encontro” da comunidade luso e americana.
O presépio tipicamente açoriano, aquela representação associada com a minha infância e em cuja feitura participei, em criança, com os meus irmãos e familiares, distinguia-se pela extraordinária variedade e curioso aspeto dos mais diversos objetos e primazia em construir o presépio no melhor quarto da casa. Os figurantes, na sua maioria eram simples bonecos de barro. Figuras de feição popular, com mulheres de capote e capelo, e outras de xaile e lenço. Lavadeiras, umas ajoelhadas no jeito de esfregar roupa na pedra, e outras de pé com trouxa na cabeça. Há os artefactos de vimes nas canastras seguras à cabeça de mulheres, dos cestos de trabalho dependurados ao braço dos homens, dos cestinhos de asa na mão das velhinhas, e ainda os seirões de burro mais as sebes das carroças. A olaria tradicional aparece representada em jarras, talhas e infusas, de barro vermelho, as quais são acarretadas à cabeça, ao ombro, ou no braço (com o apoio do quadril), por figuras em trajes regionais. Há igualmente figuras de militares trajando antigas fardas, padres de batina e sobrepeliz, barbeiros e sapateiros, tocadores de viola, rabeca e realejo, namorados e bailarinos, pescadores a pescar sentados sobre pedras e até matadores de porcos, em pleno desempenho do seu ofício.
Uma particularidade que, apesar da longa distância dos anos, nunca se esvaiu da minha memória, é essa de ter ajudado a fazer casas de papelão, com portas e janelas, algumas delas com o seu quintal. Com serradura alinhavam-se ruas e passeios. Moinhos de vento encimavam pequenos montes. Em lagos improvisados (por vezes um alguidar de barro, ou um pedaço de vidro cercado de musgo), flutuavam barquinhos e nadavam patinhos e peixinhos. Tudo isso, e muito mais, ficou estancado no tempo e espaço.
Confesso, sinceramente, que o presépio da minha infância constituiu sempre uma autêntica e enternecedora parada de cenas populares, que ainda hoje recordo com emoção, saudade e me motivam a continuar a fazê-los e a coleciona-los.
Desde que me lembro, desde tenra idade, que gosto de presépios e por isso ansiava pelo dia 25 de dezembro para ir com a minha família, visitar a minha madrinha Maria do Carmo e os primos Vieira na Praça Velha e assim poder ver o presépio deles. Cumpria-se o ritual. Eu é que tocava a campainha estridente da porta, que quando arranhava, o som afugentava ou assustava os mais distraídos, que se cruzavam connosco, no número oito da rua dos Coelhos. Ainda a família se cumprimentava e já eu escapulia para ir ver o presépio dos primos. O primo Quintiliano me fascinava. Era muito habilidoso. Fabricava o seu próprio fogo de artifício para as nossas festas de Natal e passagem de ano, e com a ajuda do filho António Inácio construía todo o presépio. Uma maravilha, autêntica réplica do cenário mais conhecido de Água de Pau, como o Monte Santo e a rua do Pico, a Igreja, o Fontanário e a Praça Nova, o comércio e a agricultura, as pescas e as festas e muitas das cenas do quotidiano rural de outros tempos. Não esquecendo a gruta e as figuras sagradas do presépio, bem entendido. Se olhava respeitoso, essa cena, era já com outros olhos que partia à descoberta dos lugares, dos cenários e das cenas mais diversas que constituíam o presépio deles. A árvore de Natal, as pedras de vermelho negro, dos vulcões, os musgos, as verduras e a serradura dão-me então saudades incríveis de tempos idos. De quando ia buscá-los, com o nosso trabalhador das terras, Tio Zé Raposo Tramela e os meus amigos João e Antero e o primo Victorino, ao Matinho e ao Monte Santo. A serradura ou farelo, para os caminhos, vinha da serragem e da oficina do mestre Antero Amaral. Era um leilão lá em casa, e, de vez em quando, enquanto o presépio não estava pronto, lá íamos atrás do Antero. Saltávamos o muro, que separava a nossa casa da dele, e de corrida, sentávamo-nos no capacho de linho-de-russo da cozinha da senhora Leonilde. Lá vinha a Alice com os bolinhos de Natal que a senhora, sua mãe, tirava do forno para nós. Era uma luxúria. Belo tempo!… pois era…