O mais prestigiado galardão literário da língua portuguesa, o Prémio Camões, foi entregue este ano à poetisa brasileira Adélia Prado. O júri que decidiu por atribuir a distinção à escritora foi composto por uma reunião virtual de autores e académicos do Brasil, Portugal e Moçambique.
O prémio, no valor de 100 mil euros, é financiado pela Fundação Biblioteca Nacional do Brasil e pelo Governo de Portugal. Esse mesmo júri destacou a originalidade da obra de Adélia Prado, especialmente a sua produção poética, e mencionou a sua ligação com Carlos Drummond de Andrade, que foi um dos seus maiores incentivadores.
A ministra da Cultura do Brasil, Margareth Menezes, celebrou a vitória, sublinhando a importância da conquista para a cultura brasileira e o reconhecimento do talento das escritoras do país.
Marco Lucchesi, presidente da Fundação Biblioteca Nacional, destacou a coincidência de Adélia Prado ser premiada no ano do quinto centenário de Camões, ressaltando a relevância da sua poesia na literatura de língua portuguesa.
Adélia Prado, nascida em Divinópolis, Minas Gerais, em 1935, é licenciada em filosofia e começou a sua carreira literária publicando poemas em jornais. O seu primeiro livro, “Bagagem”, lançado em 1976 com o apoio de Drummond, recebeu elogios pela originalidade. Ao longo da sua carreira, Prado ganhou diversos prémios, incluindo o Prémio Jabuti.
Especialistas afirmam que a sua obra “retrata o cotidiano com perplexidade e encanto, norteados pela fé cristã e permeados pelo aspeto lúdico, uma das características do seu estilo único. Em 1976, enviou o manuscrito de Bagagem para Affonso Romano de Sant’Anna, que assinava uma coluna de crítica literária no Jornal do Brasil, um dos mais importantes desse país sul-americano. Admirado, acabou por repassar os manuscritos a Carlos Drummond de Andrade, que incentivou a publicação do livro pela Editora Imago em artigo no mesmo periódico.
O livro foi lançado no Rio de Janeiro, em 1976, com a presença de Antônio Houaiss, Raquel Jardim, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Juscelino Kubitschek, Affonso Romano de Sant’Anna, Nélida Piñon e Alphonsus de Guimaraens Filho, entre outros.
O ano de 1978 marcou o lançamento de “O coração disparado”, que foi agraciado com o renomado Prémio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro.
Em 1980, dirigiu o grupo teatral amador “Cara e Coragem” na montagem de “O Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna. No ano seguinte, ainda sob a sua direção, o grupo encenou “A Invasão”, de Dias Gomes. Publicou ainda “Cacos para um vitral”.
Lucy Ann Carter apresentou, no Departament of Comparative Literature, da Princeton University, o primeiro de uma série de estudos universitários sobre a obra de Adélia Prado.
Outro ponto marcante da sua carreira aconteceu 1985, quando participou, em Portugal, num programa de intercâmbio cultural entre autores brasileiros e portugueses, e em Havana, Cuba, no segundo Encontro de Intelectuais pela Soberania dos Povos de Nossa América.
A atriz brasileira Fernanda Montenegro estreou, no Teatro Delfim, no Rio de Janeiro, em 1987, o espetáculo “Dona Doida: um interlúdio”, baseado em textos de livros de Adélia Prado. A montagem, sob a direção de Naum Alves de Souza, fez grande sucesso, tendo sido apresentada em diversos estados brasileiros e, também, nos EUA, Itália e Portugal.
A escritora brasileira apresentou-se, em 1988, em Nova York, na Semana Brasileira de Poesia, evento promovido pelo Comité Internacional pela Poesia. Participou também, em Berlim, Alemanha, no Línea Colorada, um encontro entre escritores latino-americanos e alemães.
Professora por formação, Adélia Prado exerceu o magistério durante 24 anos, até que a carreira de escritora se tornou na sua atividade profissional central. Em termos de literatura brasileira, o surgimento da escritora representou a revalorização do feminino nas letras e da mulher como ser pensante, tendo-se em conta que Adélia incorpora os papéis de intelectual e de mãe, esposa e dona-de-casa.
“A obra poética de Adélia Prado está entre as mais relevantes do século XXI no Brasil, ladeada por nomes como Augusto Branco e Bruna Lombardi, conforme estudo que levou em consideração a propagação da sua obra tanto para o público em geral como em sites especializados em literatura, trabalhos académicos, e a referência aos seus textos em obras literárias de outros autores”, consideraram fontes.
Em 2024, tornou-se na terceira escritora brasileira, e primeira escritora mineira, a vencer o prémio Camões em 35 anos.
Recorde-se que o Prémio Camões, criado em 1988 pelos governos do Brasil e de Portugal, visa “fortalecer os laços culturais entre os países lusófonos e reconhecer autores que contribuem para a literatura em português”.
O prémio é decidido por um júri internacional composto por representantes de países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).
A Casa dos Açores do Rio Grande do Sul, no Brasil, está a liderar um projeto humanitário que visa arrecadar brinquedos e livros infantis que estão a ser doados às crianças distribuídas por vários abrigos da região. Chama-se “Drive Thru do Brinquedo Solidário” e tem como objetivo possibilitar que os “mais jovens” envolvam-se com atividades lúdicas num período de caos após as fortes chuvas que atingiram o estado gaúcho nas últimas semanas. Uma iniciativa que segue os passos solidários de outro projeto da entidade, que foi a entrega de pequenos-almoços, promovido pelo Rancho Folclórico da Casa, que está localizada no município de Gravataí, a cerca de 20km da capital Porto Alegre.
“Gravataí foi atingida, tem população desabrigada, mas com uma menor proporção comparado a outros municípios. Diante de toda essa catástrofe, a Casa dos Açores, através da sua diretoria e do seu Rancho Folclórico, não poderia deixar passar tudo isso sem se solidarizar, tendo em vista que, como nós não fomos diretamente atingidos, temos de criar iniciativas para amparar essas pessoas que estão aqui, obrigadas, especialmente na nossa cidade. Então, por aproximadamente 20 dias, fizemos pequenos-almoços para alguns abrigos da nossa cidade. Desde as 5h30 da manhã, já começava a movimentação de preparo desses alimentos, levávamos sandes, pão com queijo e fiambre, manteiga, fruta, café com leite, e, em algumas ocasiões, sumos e bolos. Todos os dias, pela manhã, encontrávamo-nos, preparávamos o café e saíamos para a distribuição em abrigos fixos. As pessoas já nos esperavam para a entrega dos alimentos, para então distribuir aos abrigados dessa localidade”, explicou Viviane Peixoto Hunter, presidente da Casa dos Açores do Rio Grande do Sul, que conta com aproximadamente 150 associados e 21 anos de existência.
Viviane, que é natural de Cachoeira do Sul, no estado gaúcho, e descendente de açorianos da sexta geração, vindos da Ilha do Faial, conta que o município de Gravataí está situado numa região “privilegiada no que toca à logística, tendo se tornado numa espécie de “Gravataí Solidária”, pois muitas das doações que chegam de outros estados do Brasil e de fora do país estão a chegar através de Gravataí, que tem acolhido as doações e redistribuído aos municípios mais gravemente atingidos”.
O facto de a própria Casa dos Açores ter sofrido alguns prejuízos, como infiltrações, deslocamento de telhas e muitas goteiras no prédio, não desmotivou a equipa.
“Em meio a todo esse processo, criamos uma campanha nova, uma espécie de “Drive Thru do Brinquedo Solidário”. Ficamos no final de semana na Casa dos Açores, com a casa aberta e de plantão, a recolher as doações de brinquedos, porque muitas dessas famílias são compostas por muitos filhos, há muitas crianças, então a gente pensou em levar minimamente alguma atividade lúdica para essas crianças, para se envolverem nesses abrigos, para tornar um pouco mais leve toda essa situação, se é que é possível. (…) As doações podem ser entregues sem sair do carro”, disse esta responsável.
Nos últimos dias foram entregues, aproximadamente, 300 brinquedos em abrigos espalhados por Gravataí e também na cidade de Canoas. No campo da alimentação, foram distribuídos cerca de mil pequenos-almoços para entrega durante todos esses dias nos abrigos.
“Então, a Casa dos Açores tem sim se movimentado”, destacou Viviane, que contou que “algumas das pessoas que estavam envolvidas nessa frente de preparo dos alimentos precisaram retornar aos seus trabalhos”.
“Nós ficamos praticamente 20 dias sem ninguém poder trabalhar. Tudo estava parado aqui no Rio Grande do Sul. Um estado de calamidade pública mesmo. Acreditamos que vem aí uma recessão económica muito cruel. Vai ser necessário um longo período de reconstrução, há muitas estradas bloqueadas, com queda de pontes e viadutos, barragens, enfim, uma destruição total e inimaginável”, afirmou a presidente da entidade.
O objetivo agora passa também por comprar materiais de higiene pessoal e de limpeza, pois será necessário limpar as casas alagadas para as pessoas poderem voltar aos seus lares, isso no caso das casas que resistiram à força das águas.
“Pensamos também em fazer kits de material escolar para as crianças. Temos muitas ideias, não vamos parar por aqui. Estamos solidários com as famílias que perderam as suas casas, os seus lares, as suas histórias, as suas memórias”, reforçou Viviane, que não descarta a hipótese de ter açorianos e açordescendentes afetados pela tragédia.
“Acredita-se que muitos açorianos ou descendentes de açorianos são também vítimas de toda essa tragédia, já que o Estado do Rio Grande do Sul é formado por muitos municípios de raiz açoriana, então, muitos descendentes encontram-se nas cidades atingidas. Temos aqui açorianos descendentes de quinta, sexta, sétima geração, tendo em vista que os açorianos chegaram aqui há 272 anos. Ou seja, acreditamos que muitos descendentes de açorianos foram atingidos pelas inundações, pois há municípios com forte presença e identidade açoriana”, comentou.
Apesar de todas as dificuldades, Viviane garante que “o nosso voluntariado continuará através de ações pontuais, com o intuito de contribuir, seja na aquisição de bens, seja no trabalho voluntário nas limpezas dos prédios, casas e afins”. Em virtude desse cenário, muitas das atividades culturais foram canceladas, com previsão de retorno no mês de junho.
“Estamos todos assustados aqui no Rio Grande do Sul, apreensivos com toda essa tragédia climática. É uma situação jamais vivenciada no nosso estado”, narrou Viviane, que disse ainda haver muitos municípios submersos e que as águas não baixam, é um processo muito lento, o que faz com que as pessoas não consigam voltar para as suas casas, resultando em “muita gente desabrigada”, finalizou Viviane Peixoto Hunter.
Daniel Evangelho Gonçalves, 39 anos, nascido no Rio de Janeiro, no Brasil, é descendente de terceirenses. Foi batizado na igreja de São Bento, em Angra do Heroísmo, e cresceu no Brasil com as raízes açorianas bem presentes. Há um ano, decidiu mudar-se com a sua esposa e filha para a terra que lhe “desperta paixões”, conta, em conversa com o Diário da Lagoa (DL).
Curiosos para conhecer melhor o “carioca açoriano”, encontramo-nos com ele no jardim em frente ao Palácio da Conceição, em Ponta Delgada, que tinha acolhido o Conselho da Diáspora e o V Encontro Açores Brasil, nos quais Daniel Gonçalves participou.
Numa conversa descontraída, começou por falar nas recordações dos Açores da sua juventude: “Tenho memórias maravilhosas. Na verdade, o que me fez querer vir para cá foram essas memórias. Fui batizado na igreja de São Bento. Voltei cá várias outras vezes, em adolescente, a descobrir a vida e os Açores ” O primeiro grande marco na sua vida, explica, foi a Direção Regional das Comunidades ter-lhe oferecido um curso para aprender a tocar Viola da Terra para apoiar o grupo folclórico da Casa dos Açores do Rio de Janeiro, quando tinha 18 anos. Nessa vinda aos Açores, lembra, “deparei-me com a cultura já um pouco mais maduro e apaixonei-me”.
Já depois disso, e de volta ao Brasil, licenciou-se em História, sempre com especial interesse no tema da emigração, e entrou na Casa dos Açores do Rio de Janeiro como diretor cultural. Trabalhou também como professor e foi historiador na Força Aérea Brasileira.
“Depois, com as minhas próprias pernas, comecei a criar eventos na Universidade dos Açores, vir em trabalho, dar palestras, e o interesse de morar aqui ficou cada vez maior,” conta ao DL o carioca, que está neste momento a terminar o doutoramento na Universidade dos Açores, onde colabora como investigador convidado.
O luso-brasileiro já estuda a emigração há 20 anos: “Escrevo artigos, dou palestras, sempre sobre a emigração, porque é o que gosto: porque é que as pessoas saem da sua terra natal; como é que são acolhidas. Geralmente o meu foco é a emigração açoriana, para o Rio de Janeiro, que é pouco estudado. Confunde-se com a minha história. A minha ideia sempre foi registar as memórias para as futuras gerações, porque estão a perder-se. Essa é a minha missão académica”.
É diretor cultural da Casa dos Açores do Rio de Janeiro há 15 anos: “Criamos eventos, atraímos pessoas e fazemos o máximo para divulgar a cultura açoriana no Rio e para os açorianos se sentirem em casa, porque esse é o foco da Casa. Fiz protocolos com várias universidades, trazendo um lado mais académico e tornando a Casa mais conhecida. Hoje ela já é um polo de açorianidade, misturada com a cultura carioca” realça o luso-brasileiro. “Gosto de brigar pela nossa comunidade, trazer coisas para o Rio, mostrar que existimos, que somos grandes, temos importância, que mantemos as nossas tradições há mais de 70 anos. É uma comunidade grande. Hoje, se contarmos os netos e bisnetos, já chega a quase um milhão de descendentes de açorianos, no Rio de Janeiro. Os Açores não fazem ideia das raízes que deixaram por aí,” considera.
Desde 2021, faz parte do Conselho da Diáspora: “É um trabalho que já faço há muitos anos, de conectar as pessoas, criar projetos, incentivar a cultura açoriana”, salienta o historiador.
Mudou-se para a Terceira há apenas um ano, lugar que escolheu para criar as suas filhas, por haver “paz e segurança”.
Em 2023, lançou o livro infantil “Nem de Cá, Nem de Lá”, que está a ser apresentado em todas as escolas dos Açores. Com o objetivo de educar sobre a emigração, o livro conta a história de um açoriano, da Terceira, que fugiu da guerra do Ultramar, fixando-se no Brasil. Essa personagem principal chama-se “João”, e é uma homenagem aos seus dois avôs.
Também cá nos Açores, Daniel, em conjunto com a sua esposa, Monique Vieira, pedagoga, está a continuar o trabalho que começou no Brasil: desenvolver projetos educacionais. “Criamos projetos que transformam a vida das pessoas através da educação”, explica o luso-brasileiro, “criamos programas, dinâmicas. Temos vários tipos de clientes e ainda trabalhamos para o Brasil”. Atualmente, trabalham na Rede Valorizar.
“Essa é a missão da minha vida e da minha esposa, tentar, através da educação, transformar as pessoas e mostrar que elas podem ser mais felizes por serem mais humanas. Na nossa diferença, em todos os aspetos, é que vamos ver, com empatia, que todos somos importantes, e não precisamos disputar nada”. Para o carioca com sangue açoriano, viver na terra do seu pai e avós é o realizar de um sonho. “Estou a gostar muito de viver cá, da paz, da segurança que esse lugar tem, mas também de acordar todos os dias e olhar para o Monte Brasil, que era o lugar que sonhava ver todos os dias. Agora acordo de manhã e olho pra ele e sinto um calor no coração”, assegura.
DL: Filho de emigrantes açorianos no Brasil, nasceu no Rio de Janeiro, há 39 anos, mas quando era mais novo vinha aos Açores. O que recorda desses tempos?
Tenho memórias maravilhosas. Na verdade, o que me fez querer vir para cá foram essas memórias. Fui batizado na igreja de São Bento, na terra onde o meu pai foi criado. Depois vim já maior, com 12 anos, para as bodas de ouro da minha avó. A minha avó teve 13 filhos, então foi o encontro de dezenas de primos. Foi muito bom estar em família. Depois voltei várias outras vezes, em adolescente, a descobrir a vida e os Açores, um lugar seguro que pude desbravar. O grande marco na minha vida foi a Direção Regional das Comunidades ter me oferecido um curso para aprender a tocar viola da terra, para ajudar o grupo folclórico. Nem tinha ligação com a Casa dos Açores. O meu avô tinha sido presidente. Quando cheguei aqui, deparei-me com a cultura já um pouco mais maduro e apaixonei-me. Fui fazer o curso de História, ingressei na direção da Casa dos Açores. Depois, com as minhas próprias pernas, comecei a criar eventos na Universidade dos Açores, vir em trabalho, dar palestras, e o interesse de morar aqui ficou cada vez maior.
Aqui há uma alma muito parecida com a do carioca. Pessoas que recebem bem, há uma bela gastronomia, a cultura pulsante na Terceira, com muita música e festa. Gosto disso. É parecido com a minha cidade natal. O que me atrai mesmo aos Açores é a paz. As pessoas vivem num paraíso. Este é mesmo um lugar de encantamento, paz e segurança. Os Açores despertam paixões e como sou uma pessoa que gosta de viver apaixonada, vim para o lugar que me desperta paixões. As minhas paixões são os Açores, a minha esposa e as minhas filhas.
DL: Formou-se em História, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Está agora a terminar o seu doutoramento, também na mesma área. Porque decidiu seguir História?
Sempre fui uma pessoa bastante ligada à cultura. Sempre gostei de história, por conta da mitologia, e depois pelo lado social. Sempre gostei de memórias, de família, o que é que une as pessoas,a micro história. Fiz o curso que alimentava esse interesse e acabei voltando a minha formação para a minha ligação aos Açores. Sempre estudei emigração. É o foco da minha pesquisa. Estou a acabar o doutoramento, sou investigador convidado da Universidade dos Açores. Escrevo artigos, dou palestras, sempre com o tema da emigração, porque é o que gosto: porque é que as pessoas saem da sua terra natal; como é que são acolhidas. Geralmente o meu foco é a emigração açoriana, principalmente para o Rio de Janeiro, que é pouco estudado. Confunde-se com a minha história. Uso uma ideia de um projeto memorialista. A minha ideia sempre foi registar as memórias para as futuras gerações, porque estão a perder-se. É natural, as comunidades vão envelhecendo, a emigração para o Brasil cessou. Não queria só uma memória, queria um estudo historiográfico, algo com base científica, para que isso ficasse registado para sempre, saber que os açorianos são muito importantes no Rio de Janeiro e é uma comunidade diferenciada dos portugueses continentais. Os açorianos têm muitas particularidades, que nunca tinham sido estudadas, a não ser pela historiadora da Casa dos Açores, Judite Evangelho, que começou esse trabalho, mas não aprofundou. Essa é a minha missão académica.
DL: Faz parte da direção da Casa dos Açores no Rio de Janeiro. Quais as suas tarefas?
Sou diretor cultural da Casa dos Açores do Rio de Janeiro há 15 anos. Criamos eventos, atraímos pessoas e fazendo o máximo para divulgar a cultura açoriana no Rio e para os açorianos se sentirem em casa, porque esse é o foco da Casa dos Açores. Fiz protocolos com várias universidades, trazendo um lado mais académico e tornando a Casa mais conhecida. Hoje ela já é um polo de açorianidade, misturada com a cultura carioca.
A primeira de todas as Casas dos Açores foi a nossa. Tem 71 anos. Depois tivemos a de São Paulo, a de Santa Catarina, a de Rio Grande do Sul e a do Maranhão, a do Espírito Santo, a da Baía. Estamos espalhados naquele continente todo.
Só há Brasil por causa dos Açores. A primeira emigração para o Brasil foi de casais açorianos para defender o Maranhão dos franceses. O território brasileiro é o que é por causa dos açorianos que deram a sua vida lá.
DL: Já no Brasil desenvolvia projetos educacionais, com a sua esposa. Acreditam na transformação pessoal através da educação?
Quando saí da Força Aérea Brasileira, onde trabalhava como historiador — fui chefe de setor, a nível Brasil, coordenando projetos culturais — começamos a focar mais na empresa que tínhamos criado. Criamos projetos que transformam a vida das pessoas por meio da educação. Por acaso, vim para cá para ser professor (talvez) mas encontrei na rede Valorizar o lugar que conectou a minha formação e a da minha esposa- que é pedagoga- com o nosso desejo de ajudar as pessoas. A Valorizar serve para as pessoas completarem os seus estudos, mas também para dar cursos de empregabilidade e tentar a inserção social. Vim para cá e consegui ajudar as pessoas, e por meio do nosso trabalho e da educação, fazer a diferença, com carinho e tratando as pessoas como seres humanos. Tem sido diferencial, temos feito não só alunos, mas também amigos. Estou muito feliz. Faço tudo com a minha esposa. Criamos projetos, dinâmicas. Temos vários tipos de clientes e ainda trabalhamos para o Brasil. O Centro de Qualificação e Emprego pediu para criarmos o projeto “Autonomia”, que vai começar agora, para tentar ajudar as pessoas a acreditarem mais no trabalho e em si. Já temos outras encomendas para dinamizar, de forma divertida. Achamos que aprender deve ser divertido.
DL: Faz também parte do Conselho da Diáspora Açoriana.
Fui eleito, com muito orgulho, em 2021. É um trabalho que já faço há muitos anos, de conectar as pessoas, criar projetos, incentivar a cultura açoriana. Ajudei a comunidade de Bom Jesus, Itabapoana, uma cidade do interior, que se descobriu açoriana, a trazer as suas raízes à tona. Criaram a Casa dos Açores do Espírito Santo, em conexão com Viana. Gosto de brigar pela nossa comunidade, trazer coisas para o Rio de Janeiro, mostrar que existimos, que somos grandes, que temos importância, que mantemos as nossas tradições há mais de 70 anos, numa Casa. É uma comunidade grande. Hoje, se contarmos os netos e bisnetos, já chega quase a um milhão de descendentes de açorianos, no Rio de Janeiro. Os Açores não fazem ideia das raízes que deixaram por aí, principalmente com a festa do Divino Espírito Santo que acontece em todo o Brasil. Esse é um dos meus projetos no Conselho na Diáspora: tentar criar uma comunidade — a Confraria do Divino Espírito Santo — para mostrar a importância destas festas.
O Conselho está a crescer como se fosse um ser humano. Esse foi um encontro maravilhoso, com muitas propostas. O Governo está muito aberto. Criaram uma secretaria para as Comunidades e projetos que vão valorizar a comunidade e interligar os Açores ao mundo. Estamos em todas as partes. O Conselho está a ajudar a mostrar o que de facto as comunidades querem e passam, como é que o governo pode ajudar, e como nós, comunidade, podemos ajudar os Açores. Depois tivemos o V Encontro Açores Brasil, que foi muito produtivo.
DL: Os brasileiros sentem-se bem acolhidos nos Açores?
Em geral sim. O mundo está a passar por um momento delicado, onde o extremismo é uma realidade. Infelizmente há um pouco de xenofobia. Conheço pessoas que passam por algum preconceito. Qualquer sociedade tem isso, mas acho que entre as sociedades que já conheci, os Açores são um povo muito acolhedor e pacífico, de braços abertos para aqueles que querem contribuir para a sociedade. Os imigrantes que conheço são bem recebidos.
DL: Sempre se sentiu açoriano?
Não. Só me senti açoriano depois dessa viagem em que vim cá aprender a tocar viola da terra, aos 18 anos. Amei esse lugar.
DL: Para além dos projetos educacionais, já publicou o livro infantil “Nem de Cá, Nem de Lá”. Pretende continuar nos Açores e desenvolver novos projetos?
Com certeza. Queremos que as pessoas se sintam acolhidas, mas despertar a humanidade e os sentimentos através da educação. O projeto do livro é um desses. Contamos de forma dramatizada e lúdica para as crianças perceberem a importância da emigração e o sentimento por trás dela. Se conseguirmos fazer isso aqui — e já estamos a conseguir — não vejo por que voltar. Quero trazer a minha família para cá. Embora vou sempre amar o Rio de Janeiro, prefiro os Açores para criar as minhas filhas.
Os açorianos são parte da solução para esse problema que existe agora no mundo, da falta de humanidade. O açoriano sempre foi um povo migrante. É um povo do mundo. Somos mais parecidos do que diferentes. Embora nascemos num lugar, podemos pertencer ao mundo todo. Toda a gente tem coisas positivas a acrescentar e pode se identificar com a história de vida um do outro. Essa é a missão da minha vida e da minha esposa, tentar, através da educação, transformar as pessoas e mostrar que elas podem ser mais felizes por serem mais humanas. Na nossa diferença, em todos os aspetos, é que vamos ver, com empatia, que todos somos importantes, e não precisamos disputar nada. Há espaço para todos sermos como somos.
Os emigrantes materializam que podemos pertencer a todos os espaços, podemos ter amor e ligação a vários espaços ao mesmo tempo. Sentimos saudades de outros lugares e conseguimos nos conectar mais facilmente com a dor do outro. Temos de lembrar que somos todos seres humanos.Toda a gente é diferente. Essa é que é a graça. Devemos respeitar-nos nas diferenças. É tentar combater a ignorância por meio da educação. Se conseguir isso, através desses projetos, mesmo que de grão em grão, já me vai realizar enquanto ser humano. Acho que essa é a missão que tenho aqui.
A tragédia que está a assolar o Estado do Rio Grande do Sul, no Brasil, depois das cheias provocadas pelas fortes chuvas nas últimas semanas, soma já mais de uma centena de mortes, num contexto em que se verificam cidades inteiras destruídas e num momento em que mesmo a logística local foi alterada, sobretudo, na região serrana e na capital, Porto Alegre.
Em poucas horas, entre o final de abril e o início de maio, choveu o equivalente a três meses no Rio Grande do Sul. Os rios chegaram a níveis históricos. Segundo dados do governo do Rio Grande do Sul, em constante atualização, o número de mortes provocadas pelas enchentes chega a 157. Já o número de municípios atingidos pela tragédia chegou a 464. O número de pessoas afetadas pelos temporais também subiu: são mais de dois milhões de moradores do Estado atingidos. Mais de 76 mil pessoas estão em abrigos desde o início das chuvas no final de abril. Foram também resgatados mais de 12 mil animais.
No campo estrutural, barragens estão sob pressão, o sistema de contenção de cheias está sob stresse, diversos hospitais foram atingidos, os serviços essenciais foram interrompidos, aeroportos estão paralisados, estradas, cortadas e várias pontes desabaram. Esta é considerada a maior catástrofe climática do Estado, o que levou o governo do Rio Grande do Sul a iniciar o Plano “Marshall” de reconstrução do Estado, juntamente com a Autoridade Estadual para Emergência Climática, com foco, segundo apurámos, em promover “Assistência, Restabelecimento e Reconstrução”, além de “Prevenção e Resiliência Climática”.
Desde o início da tragédia, existe também uma importante movimentação de portugueses e lusodescendentes para tentar salvar vidas na região. A nossa reportagem conversou com António Davide, conselheiro das comunidades portuguesas eleito no Brasil por Curitiba e Porto Alegre. Vive na cidade de Bento Gonçalves, na zona serrana, a 120 km de Porto Alegre. Segundo ele, praticamente 52% do Estado está com “destruição total”.
“Cidades ribeirinhas estão praticamente destruídas, assim como cidades pequenas que tinham as suas populações, as suas empresas”, disse este responsável, que conta que a cidade de São Leopoldo, por exemplo, que fica a cerca de 30 km de Porto Alegre, está “totalmente debaixo de água” e que “em todas as localidades há casas que sumiram, que foram por água abaixo. Devido a força das águas, há morros que desapareceram”.
Este responsável revela que, onde vive, não há relatos de membros da comunidade portuguesa em perigo. Já com relação aos negócios geridos por empresários da comunidade portuguesa, o comércio terá sido o ponto mais afetado pelas cheias. As zonas do centro de Porto Alegre, onde esses empresários têm as suas lojas e empresas, conta com grandes prejuízos, segundo António Davide, como é o caso no tradicional mercado público de Porto Alegre, onde as pessoas estão à espera de ver o nível da água baixar para calcularem os estragos.
Existe ainda o problema dos assaltos e saques que estão a acontecer um pouco por todo o Estado. Há inclusive assaltos com recurso a barcos ou em jet-skis a mercados locais abandonados durante a enchente. E, nas estradas, o cenário é de assaltos aos condutores quando estão no trânsito a tentar deixar a região metropolitana de Porto Alegre.
Antonio David recebeu uma mensagem de José Cesário, secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, a dar apoio para a comunidade e para toda a população do Estado do Rio Grande Sul.
Entrevistamos também o lusodescente Marcos Neto, guia de turismo, sommelier e vice-presidente do Rotary Club de Canoas Industrial. Ele vive na cidade de Canoas, um dos locais mais atingidos pelas chuvas.
Marcos conta que o grande volume de água na região acabou por destruir muitas cidades também no vale do rio Taquari, na Serra Gaúcha, onde houve o rompimento parcial de uma barragem. Além disso, esse volume de água desceu em direção à capital do Estado, Porto Alegre, o que fez com que o nível da água na cidade subisse, em muitos lugares, mais de 30 metros.
Somente em Canoas, cerca de dois terços da cidade estão debaixo de água. Mais de 150 mil pessoas tiveram que deixar as suas casas e, quem não conseguiu sair rapidamente, teve de ser resgatados por helicópteros desde os telhados das casas.
“Algumas pessoas chegaram a ficar mais de três dias nos telhados de casa sob frio, chuva, a espera do resgate, que está a ser feito pelas forças armadas brasileiras”, contou Marcos, que atesta que existe hoje uma autêntica “operação de guerra”, pois “todos os serviços essenciais foram literalmente destruídos, a maior parte da cidade está sem energia elétrica e a produção de água potável foi suspensa, uma vez que as bombas ficaram debaixo d’água. As estradas foram totalmente destruídas”.
Segundo Marcos, há muitos voluntários no terreno, o que faz com que o cenário não piore em virtude dos esforços desses grupos. Os trabalhos concentram-se em tentar dar comida, medicamentos e albergar as pessoas em abrigos e escolas. Existem peditórios públicos dos rotarianos locais que destacam que tudo o que puder ser enviado para a região será “bem-vindo”, como medicamentos, alimentos, água, roupas e colchões.
Dezenas de famílias residentes na cidade de Rio Grande, no Estado do Rio Grande do Sul, estão a receber o apoio de diversos voluntários após ficarem desabrigadas. Uma dessas entidades que está a prestar um apoio fundamental à população é a Cruz Vermelha de Rio Grande, que, de forma voluntária e gratuita, acolhe mais de 200 pessoas num galpão que conta com diversos serviços sociais e de saúde, mas também com estrutura para as pessoas realizarem a sua higiene, se alimentarem e dormirem em segurança. Na liderança dessa iniciativa, está o português Júlio César Pereira da Silva, presidente da unidade local da Cruz Vermelha de Rio Grande. Além de advogado, este responsável é vereador nessa cidade brasileira há 25 anos, estando já no quinto mandato, o que lhe permite melhor conhecer os desafios da região e a sua população. É também neto de portugueses, preside ao Conselho Deliberativo do Centro Português do Rio Grande, e integra ainda, como voluntário, outros movimentos associativos e da organização civil na região, um trabalho que ganha agora novos contornos em virtude da catástrofe climática que atingiu o Estado. Segundo apurámos, o objetivo das ações dos voluntários é salvar vidas.
Um dos restaurantes portugueses mais tradicionais do Brasil, “Gambrinus”, é um dos estabelecimentos fortemente atingidos pelas enchentes em Porto Alegre. O restaurante está localizado no mercado público na capital gaúcha e é considerado o mais antigo do Rio Grande do Sul e um dos mais antigos do país, sendo conhecido pela aposta na gastronomia portuguesa e internacional. Fruto de herança familiar, João Alberto Cruz de Melo, de 45 anos, é hoje proprietário do local, que conta com cerca de 20 funcionários. Este empresário nasceu em Porto Alegre, mas é filho de portugueses. O seu pai, natural de Pedaçães, no norte de Portugal, próximo à Águeda, no distrito de Aveiro, deixou Portugal em 1951, trazendo a família, os irmãos, para esse país sul-americano. Chegaram primeiro ao Rio de Janeiro e, depois, foram para o Rio Grande do Sul. Este empresário pretende “iniciar uma limpeza, avaliar os prejuízos e reprogramar a abertura, contratar todo mundo e tentar voltar a vida”.
Outro exemplo desse movimento para tentar diminuir o caos e a dor das famílias é o trabalho que está a ser feito pela Casa de Portugal de Porto Alegre, que abriu as suas portas para que a população tenha abrigo e acesso à água potável, uma vez que o local conta com uma fonte de água mineral fruto de um poço artesiano. No local, as pessoas podem tomar banho e utilizar casas de banho.
“Os diretores da Casa de Portugal estão envolvidos nas suas comunidades e todos estão a ajudar da maneira que podem”, é o que garante Fernando Lopes, presidente da Casa de Portugal de Porto Alegre, que adicionou que, desde domingo, “a Casa de Portugal viu que tinha um recurso (água potável) que estava a faltar para diversas cozinhas de voluntários que fazem marmitas e comida para os desabrigados”.
E as pessoas têm procurado cada vez mais o clube, conhecido na região por valorizar as tradições portuguesas. Fernando conta que chegam pessoas que foram resgatadas há dias e que ainda não haviam tomado banho. Para evitar doenças, elas podem fazer a higiene no local. Muitas outras levam recipientes para levar água para casa. Há filas na porta.
Este responsável garante que há muitos portugueses utilizando recursos da Casa neste momento, como pegar água potável e etc., e que este público conta com um horário extra para as suas necessidades, além do público em geral.
A nossa reportagem conversou também com Filipa Mendonça, vice-cônsul de Portugal em Porto Alegre, que explicou que, “infelizmente, nesta situação de calamidade pública decretada no Estado, temos que aguardar com muita calma o desenrolar dos acontecimentos”.
“Até ao momento ainda não conseguimos reabrir as nossas atividades normais, o que me preocupa. As previsões climatéricas para os próximos dias também não ajudam a que se consiga retomar de imediato. No seio da comunidade portuguesa vamos nos mantendo em contacto e, até ao momento, apenas a lamentar a perda de bens materiais”, afirmou esta responsável, que sublinhou que “o espírito de solidariedade do povo gaúcho é louvável e ímpar, no entanto, há a registar que existem regras e condutas próprias a seguir, e há que se respeitar a integridade das instituições”.
A situação preocupou também o Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, que emitiu uma nota a dizer que o governo de Portugal “está solidário com o povo brasileiro”, e mostrou apoio às iniciativas do presidente do Brasil, Luis Inácio Lula da Silva, e do governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite.
Através das redes sociais, a embaixada de Portugal no Brasil disse estar a acompanhar “com preocupação” a tragédia no Rio Grande do Sul.
José Cesário, secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, confirmou à nossa reportagem que, “até ao momento, não há informação sobre vítimas portuguesas”.
A Casa dos Açores em Lisboa realizou, no dia 19 de maio, o tradicional “Almoço da Festa do Divino Espírito Santo”, um evento importante do ponto de vista cultural e religioso na agenda açoriana. Mas, este ano, esta entidade resolveu dar uma demonstração ainda maior da força e da solidariedade açoriana, ao divulgar os cartazes “SOS Rio Grande do Sul” que apelam a “doações internacionais” para a auxiliar a população residente nesse estado brasileiro.
A Casa dos Açores em Lisboa justifica esta incitava solidária e afetiva com o facto de que “os primeiros açorianos chegaram ao Estado do Rio Grande do Sul em 1752; que vive hoje neste Estado uma grande comunidade de açordescendentes; que há dois anos foram celebrados os 250 anos da fundação açoriana da cidade de Porto Alegre; que Gravataí é cidade irmã de Horta (ilha do Faial) e Porto Alegre, cidade irmã de diversas outras cidades, entre elas, Ribeira Grande (ilha de São Miguel) e Horta”.
Outros movimentos pelo Brasil, incluindo entidades luso-brasileiras, como a Obra Portuguesa de Assistência no Rio de Janeiro, e instituições em São Paulo, como a Associação Portuguesa de Desportos, e a comunidade brasileira em Portugal estão a reunir doações que visam auxiliar as famílias neste momento.
O que sabemos é que as enchentes causaram um grande impacto na indústria e na produção de alimentos e produtos na região. O presidente do Brasil garantiu que não faltarão recursos para recomeçar a reconstruir as cidades e que está a enviar dinheiro e integrantes das forças armadas para auxiliar nos resgates. A reconstrução de rodovias federais custará mais de um bilhão de reais, cerca de 200 milhões de euros, segundo cálculo inicial do ministro dos Transportes do Brasil.
Uma triste realidade num Estado brasileiro que faz fronteira com a Argentina e o Uruguai, que conta com a imponente Serra Gaúcha, onde está a região vinícola do Vale dos Vinhedos e inclui cidades turísticas de estilo alemão como Gramado e Canela, famosas pelas paisagens naturais. Porto Alegre, a capital, é um grande porto com estruturas clássicas como o Mercado Público e a Catedral Metropolitana, no centro histórico.
Agora, o grande volume de água e as alterações climáticas podem alterar esse percurso e essa história.
A Casa dos Açores em Lisboa realiza este domingo, 19 de maio, o tradicional “Almoço da Festa do Divino Espírito Santo”, um evento importante do ponto de vista cultural e religioso na agenda açoriana. Mas, este ano, esta entidade resolveu dar uma demonstração ainda maior da força e da solidariedade açoriana, ao divulgar os cartazes “SOS Rio Grande do Sul” que apelam a “doações internacionais” para a auxiliar a população residente nesse estado brasileiro, que foi duramente atingido por enchentes causadas pelas fortes chuvas que se fizerem sentir nas últimas semanas.
Dados recentes da Defesa Civil do Estado do Rio Grande do Sul mostram que o número de mortes provocadas pelas enchentes voltou a subir. Agora são 151 óbitos. O número de municípios atingidos pela tragédia chegou a 458. O número de pessoas afetadas pelos temporais também subiu: são 2,2 milhões de moradores do Estado atingidos de alguma maneira. Mais de 77 mil buscaram abrigos desde o início das chuvas no final de abril. Nas últimas horas, 619 pessoas precisaram ir para abrigos montados no estado.
“Porque este é também um tempo de partilha e de solidariedade, a Casa dos Açores solidariza-se com a Casa dos Açores e o Estado do Rio Grande do Sul. Venha participar na Festa da partilha e da solidariedade”, frisaram os responsáveis pela entidade açoriana na capital portuguesa.
A Casa dos Açores em Lisboa justifica esta incitava solidária e afetiva com o facto de que “os primeiros açorianos chegaram ao Estado do Rio Grande do Sul em 1752; que vive hoje neste Estado uma grande comunidade de açordescendentes; que há dois anos foram celebrados os 250 anos da fundação açoriana da cidade de Porto Alegre; que Gravataí é cidade irmã de Horta (ilha do Faial) e Porto Alegre, cidade irmã de diversas outras cidades, entre elas, Ribeira Grande (ilha de S. Miguel) e Horta”.
“Em situações de catástrofes e de dificuldades da vida, é ao Espírito Santo que o povo ilhéu sempre recorre. (…) Vamos colaborar! Num momento de infortúnio como o que se verifica no Estado do Rio Grande do Sul, toda a ajuda conta para suavizar o sofrimento de tantos açordescendentes”, mencionaram os responsáveis pela Casa dos Açores.
Segundo informações contidas num estudo compilado numa cartilha distribuída na Escola Estadual de Primeiro Grau Osório Duque Estrada, no Brasil, pela professora Ana Luiza Jaskulski, natural de Canoas, no Rio Grande do Sul, mas descendente de imigrantes alemães, a imigração açoriana na região do Rio Grande do Sul merece destaque, pois, “com a penetração portuguesa no Rio Grande de São Pedro, havia a necessidade de casais para povoar e colonizar as terras, assegurando, assim, a posse da região. O pedido da vinda de casais para o sul do Brasil foi feito desde a fundação da Colónia do Sacramento, mas poucos casais para vieram, sendo, na sua grande maioria, de portugueses e brasileiros vindos de Laguna, Rio de Janeiro, Bahia, Minas Gerais e São Paulo. (…) A erupção vulcânica na Ilha do Faial, nos Açores, flagelou os seus moradores, que foram transferidos para outras ilhas do arquipélago. A superpopulação das ilhas, a falta de terras para o plantio, os muitos flagelos da natureza e a miséria em que viviam levaram os açorianos a pedir novas terras ao rei. Em 1746, foi ordenada a vinda de casais em grupos de 60, que seriam distribuídos em cada povoado a ser formado. Os colonizadores homens não poderiam ter mais de 40 anos, e as mulheres, não mais de 30. Assim, deu-se início à propaganda para atrair os novos colonizadores, sendo-lhes oferecidos diversos atrativos: dinheiro, passagem gratuita até a nova morada, ferramentas, armas, sementes, alimentação por um ano, isenção do serviço militar, áreas para plantar (as chamadas datas), duas vacas, uma égua, quatro touros e dois cavalos, sendo os touros e os cavalos para uso de mais de uma família”.
Este mesmo estudo refere, porém, que “essas promessas, no entanto, não foram devidamente cumpridas, pois as datas demoraram muito a ser repartidas e doadas. No início do ano de 1748, chegaram a Santa Catarina os primeiros casais açorianos, os quais enfrentaram uma longa viagem, na qual passaram fome, ficaram doentes, enfrentaram epidemias como o escorbuto e conviveram em más acomodações. Vários morreram na travessia do Atlântico, principalmente crianças. As outras viagens que aconteceram, trazendo mais casais açorianos, não foram diferentes da primeira. Em 1752, começam a chegar a Rio Grande, no Estado do Rio Grande do Sul, os primeiros casais açorianos que haviam desembarcado em Santa Catarina. Os açorianos seriam levados para a região Missioneira, mas, enquanto não se cumpria o tratado de Madrid, foram conduzidos a vários núcleos que viriam a ser por eles povoados, como Rio Grande, Viamão, Porto do Viamão (Porto Alegre), Triunfo, Santo Amaro e Rio Pardo. Depois da invasão espanhola, os casais que habitavam Rio Grande foram para o Uruguai, e outros fugiram para o Norte, povoando Estreito, Taquari, Santo Antônio da Patrulha, Mostardas e Cachoeira. Alguns dirigiram-se à região da campanha, adquirindo sesmarias, dedicando-se à pecuária e povoando, assim, a campanha gaúcha”.
Ainda de acordo com a professora Ana Luiza Jaskulski, “o açoriano adaptou-se bem ao Rio Grande de São Pedro, dedicando-se à agricultura, plantando trigo, algodão, centeio, cevada, legumes, arroz, cebola, alpiste, melancia, cana de açúcar e uva. Povo católico, de princípio morais rígidos, os açorianos fizeram respeitar os seus lares e as suas famílias. Os índios, os castelhanos, os gaudérios, os aventureiros que se aproximaram dos povoados dos ilhéus assimilaram os seus costumes e as suas tradições. Dos açorianos também é a hospitalidade que o gaúcho herdou, hoje tão apreciada pelos turistas. As suas festas religiosas, como Terno de Reis, Festas Juninas, Festa do Divino, assim como as procissões, as novenas e os presépios, ajudaram a formar a tradição gaúcha. A arquitetura portuguesa das nossas primeiras construções, bem como o uso do tamanco e do chapéu de palha, são costumes que se somaram na formação das tradições do gaúcho”.
“Na culinária gaúcha, os açorianos contribuíram com sonho, arroz de leite, os famosos doces portugueses e uma grande variedade de pratos com peixe. Na música e na dança tradicionalista gaúcha, os ilhéus deixaram a sua herança: o balaio, o tatu, o pezinho, a cana verde, a dança do pau de fita. O açoriano ainda transmitiu ao gaúcho a técnica de plantar pelo sistema do pousio (cultiva-se a terra por dois anos consecutivos e deixa-se que ela descanse por outros dois anos)”, explicou esta professora.
O programa da Festa do Divino Espírito Santo em Lisboa conta com Missa, pelas 12 horas, seguida de coroação de crianças, na Igreja da Lapa, sendo as cerimónias presididas pelo Padre Hermínio Vitorino, natural da ilha de São Jorge, além de Cortejo entre a Igreja da Lapa e a Casa dos Açores em Lisboa, onde haverá o Almoço tradicional com Sopas do Espírito Santo, Carne assada e massa sovada e Arroz doce e massa sovada.
A tragédia que está a assolar o Estado do Rio Grande do Sul, no Brasil, depois das cheias provocadas pelas fortes chuvas nos últimos dias, soma já dezenas de mortes, num contexto em que se verificam cidades inteiras destruídas e num momento em que mesmo a logística local foi alterada, sobretudo, na região serrana e na capital, Porto Alegre.
Em poucas horas, entre o final de abril e o início de maio, choveu o equivalente a três meses no Rio Grande do Sul. Os rios chegaram a níveis históricos. Segundo dados do governo do Rio Grande do Sul, em constante atualização, há 401 municípios afetados, mais de 15 mil pessoas acolhidas em abrigos, mais de 80 mil desalojados, mais de 710 mil afetados, 155 feridos e 100 desaparecidos. Ao todo, 95 pessoas morreram até ao momento.
No campo estrutural, há 12 barragens sob pressão, o sistema de contenção de cheias está sob stresse, 110 hospitais foram atingidos, estando 17 sem atendimento e 75 com apenas atendimento parcial. Serviços essenciais foram interrompidos, aeroportos estão paralisados, estradas, cortadas e várias pontes desabaram. Esta é considerada a maior catástrofe climática do Estado.
Nas últimas horas, o governo do Rio Grande do Sul iniciou o Plano “Marshall” de reconstrução do Estado, juntamente com a Autoridade Estadual para Emergência Climática, com foco, segundo apurámos, em promover “Assistência, Restabelecimento e Reconstrução”, além de “Prevenção e Resiliência Climática”. E, hoje, existe também uma importante movimentação de portugueses e lusodescendentes para tentar salvar vidas na região.
A nossa reportagem conversou com António Davide, conselheiro das comunidades portuguesas eleito no Brasil por Curitiba e Porto Alegre. Vive na cidade de Bento Gonçalves, na zona serrana, a 120 km de Porto Alegre. Segundo ele, praticamente 52% do Estado está com “destruição total”.
“Tudo começou na semana passada, entre os dias 29 e 30 de abril. Mas o dia primeiro de maio foi o mais crítico. Cidades ribeirinhas estão praticamente destruídas, assim como cidades pequenas que tinham as suas populações, as suas empresas”, disse este responsável, que conta que a cidade de São Leopoldo, por exemplo, que fica a cerca de 30 km de Porto Alegre, está “totalmente debaixo de água” e que “em todas as localidades há casas que sumiram, que foram por água abaixo. Devido a força das águas, há morros que desapareceram”.
Este responsável revela que, onde vive, não há relatos de membros da comunidade portuguesa em perigo. Já com relação aos negócios geridos por empresários da comunidade portuguesa, o comércio terá sido o ponto mais afetado pelas cheias. As zonas do centro de Porto Alegre, onde esses empresários têm as suas lojas e empresas, conta com grandes prejuízos, segundo António Davide, como é o caso no tradicional mercado público de Porto Alegre, onde as pessoas estão à espera de ver o nível da água baixar para calcularem os estragos.
Existe ainda o problema dos assaltos e saques que estão a acontecer um pouco por todo o Estado. Há inclusive assaltos com recurso a barcos ou em jet-skis a mercados locais abandonados durante a enchente. E, nas estradas, o cenário é de assaltos aos condutores quando estão no trânsito a tentar deixar a região metropolitana de Porto Alegre.
Antonio David recebeu uma mensagem de José Cesário, secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, a dar apoio para a comunidade e para toda a população do Estado do Rio Grande Sul.
Entrevistamos também o lusodescente Marcos Neto, guia de turismo, sommelier e vice-presidente do Rotary Club de Canoas Industrial. Ele vive na cidade de Canoas, um dos locais mais atingidos pelas chuvas.
Marcos conta que o grande volume de água na região acabou por destruir muitas cidades também no vale do rio Taquari, na Serra Gaúcha, onde houve o rompimento parcial de uma barragem. Além disso, esse volume de água desceu em direção à capital do Estado, Porto Alegre, o que fez com que o nível da água na cidade subisse, em muitos lugares, mais de 30 metros.
Somente em Canoas, cerca de dois terços da cidade estão debaixo de água. Mais de 150 mil pessoas tiveram que deixar as suas casas e, quem não conseguiu sair rapidamente, teve de ser resgatados por helicópteros desde os telhados das casas.
“Algumas pessoas chegaram a ficar mais de três dias nos telhados de casa sob frio, chuva, a espera do resgate, que está a ser feito pelas forças armadas brasileiras”, contou Marcos, que atesta que existe hoje uma autêntica “operação de guerra”, pois “todos os serviços essenciais foram literalmente destruídos, a maior parte da cidade está sem energia elétrica e a produção de água potável foi suspensa, uma vez que as bombas ficaram debaixo d’água. As estradas foram totalmente destruídas”.
Segundo Marcos, há muitos voluntários no terreno, o que faz com que o cenário não piore em virtude dos esforços desses grupos. Os trabalhos concentram-se em tentar dar comida, medicamentos e albergar as pessoas em abrigos e escolas. Existem peditórios públicos dos rotarianos locais que destacam que tudo o que puder ser enviado para a região será “bem-vindo”, como medicamentos, alimentos, água, roupas e colchões.
Um outro bom exemplo desse movimento para tentar diminuir o caos e a dor das famílias é o trabalho que está a ser feito pela Casa de Portugal de Porto Alegre, que abriu as suas portas para que a população tenha abrigo e acesso à água potável, uma vez que o local conta com uma fonte de água mineral fruto de um poço artesiano. No local, as pessoas podem tomar banho e utilizar casas de banho.
“Os diretores da Casa de Portugal estão envolvidos nas suas comunidades e todos estão a ajudar da maneira que podem”, é o que garante Fernando Lopes, presidente da Casa de Portugal de Porto Alegre, que adicionou que, desde domingo, “a Casa de Portugal viu que tinha um recurso (água potável) que estava a faltar para diversas cozinhas de voluntários que fazem marmitas e comida para os desabrigados”.
E as pessoas têm procurado cada vez mais o clube, conhecido na região por valorizar as tradições portuguesas. Fernando conta que chegam pessoas que foram resgatadas há dias e que ainda não haviam tomado banho. Para evitar doenças, elas podem fazer a higiene no local. Muitas outras levam recipientes para levar água para casa. Há filas na porta.
Este responsável garante que há muitos portugueses utilizando recursos da Casa neste momento, como pegar água potável e etc., e que este público conta com um horário extra para as suas necessidades, além do público em geral.
Conversamos também com Filipa Mendonça, vice-cônsul de Portugal em Porto Alegre, que confirmou que “a situação de calamidade pública decretada no Estado permanece e a tendência é de agravamento nas próximas horas devido à aproximação de nova corrente fria acompanhada de tempestade extratropical, que trará bastante chuva acompanhada de ventos muito fortes e queda de granizo”.
“Dos 95 óbitos registados não há conhecimento da existência de nenhum nacional”, disse esta responsável.
Até ao último dia 8 de maio, estiveram encerrados os serviços no Consulado-Geral de Portugal em Porto Alegre, em virtude da dificuldade de deslocação que se verifica na região. Todos os agendamentos realizados serão remarcados automaticamente, porém, os serviços consulares seguem disponíveis para emergências.
A situação preocupou também o Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, que emitiu uma nota a dizer que o governo de Portugal “está solidário com o povo brasileiro”, e mostrou apoio às iniciativas do presidente do Brasil, Luis Inácio Lula da Silva, e do governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite.
Através das redes sociais, a embaixada de Portugal no Brasil disse estar a acompanhar “com preocupação” a tragédia no Rio Grande do Sul.
José Cesário, secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, confirmou à nossa reportagem que, “até ao momento, não há informação sobre vítimas portuguesas”.
O que sabemos também é que as enchentes causaram um grande impacto na indústria e na produção de alimentos e produtos na região. O presidente do Brasil garantiu que não faltarão recursos para recomeçar a reconstruir as cidades e que está a enviar dinheiro e integrantes das forças armadas para auxiliar nos resgates. Mais de 14 mil pessoas estão deslocadas pelo governo federal para atuarem diretamente na região. A reconstrução de rodovias federais custará mais de um bilhão de reais, cerca de 200 milhões de euros, segundo cálculo inicial do ministro dos Transportes do Brasil.
Uma triste realidade num Estado brasileiro que faz fronteira com a Argentina e o Uruguai, que conta com a imponente Serra Gaúcha, onde está a região vinícola do Vale dos Vinhedos e inclui cidades turísticas de estilo alemão como Gramado e Canela, famosas pelas paisagens naturais. Porto Alegre, a capital, é um grande porto com estruturas clássicas como o Mercado Público e a Catedral Metropolitana, no centro histórico.
Agora, o grande volume de água e as alterações climáticas podem alterar esse percurso e essa história.