Junto à Ermida do Convento da Caloura, quem chega à “Meia-Laranja”, nome dado ao miradouro em frente à “Ilha Botinha de Nossa Senhora”, não pode deixar de fazer uma pergunta a si próprio. Porque será que tem esta ilhota um muro de pedra seca circundante a vedá-la?
Temos de recuar até ao século XIX para melhor entender alguns dos motivos, pelo menos os de que tive conhecimento, junto da família que tinha uma propriedade do lado nascente desta ilha. Do lado poente ficam a Ermida e o Convento da Caloura.
No antigo portinho da Caloura havia uma pequena parcela de terra, dividida em duas. Numa delas, hoje estão o bar-restaurante e a zona do apoio balnear da Caloura e na outra, que pertenceu a Iria Vieira, existia um terreno com uma pequena casa, que hoje é minha propriedade. A propriedade completa e antiga pertenceu ao Padre Manuel Inácio Vieira, figura sobejamente reconhecida de alguma comunidade da Vila de Água de Pau. Ele foi um dos principais responsáveis pela construção do molhe ou cais de apoio aos pescadores e escoamento de cereais, vinhos e outros fins, que no passado foram importantes para a economia desta vila, que foi concelho de 1515 a 1853.
Foram depois os herdeiros do tio padre que partiram a propriedade inicial em duas. Para não tornar a história muito comprida, porque não é do senhor padre que quero falar, mas sim de um dos seus herdeiros. Ou seja, do seu sobrinho neto, que se chamava José Inácio “Carteiro”[por ter sido filho do carteiro de Água de Pau]. José Carteiro, ao tempo, apercebeu-se que alguém estava a construir muros de pedra na ilha Botinha de Nossa Senhora. Estranhou quem estava a fazê-lo, mas não interferiu. Duma coisa ele ficou logo ciente. Propriedade vedada por muro poderá ter dono. Ora ele sabia que a ilha não tinha dono. Então, por que razão estavam a construir aqueles muros?
Esperou e depois viu que também tinham colocado uma cancela ou portão num dos pontos em que os muros se encontravam. Assim, a partir daquele momento, a ilha passara a ter dono, porque propriedade vedada e com portão, tem de ter um dono! Só que para o José “Carteiro” aquilo não passava de um abuso de posse de algo que não tinha dono e por alguém que não tinha como provar ser seu proprietário.
Se havia coisa de que José «carteiro» se orgulhava era de ser bom nadador. Deixou passar o dia e, na calada da noite, da sua propriedade ali ao lado, atirou-se ao mar e em poucas braçadas alcançou a ilhota em dois tempos. A cancela foi arrancada e aboada ao mar: – “Agora, propriedade sem portão, já não tem dono, de novo!” – pensou para consigo. No outro dia, ou nos seguintes, quem queria apoderar-se da ilha reparava que a propriedade já não tinha portão. Devassa, era terra de todos e isso não podia ficar assim. Mandou fazer outro portão, julgando ter sido coisa de nadadores furtivos. Não foram nadadores furtivos. Disso sabia o José “Carteiro”. Por isso, atirou-se ao mar de novo e… ala! Portão pelo ar, para o mar, como fora o outro. Foram-se repetindo teimosamente por alguns anos estas cenas de “põe o portão/ tira o portão” até que, por fim, alguém pôs cobro ao assunto e exigiu o documento de posse da propriedade ao que se dizia ser dono da ilha. Não tinha nenhuma prova documental, e desistiu de mandar colocar mais portões na ilha da “Bota de Nossa Senhora”.
José Vieira “Carteiro” emigrou para os Estados Unidos e foi viver em Bristol Rhode Island. Conheci o filho com o mesmo nome, em 1977, por mero acaso num restaurante, no Canadá, na cidade de Toronto. Ele aparecera ali com um grupo de pessoas, vindo dos Estados Unidos, como guia turístico de uma agência em Providence, onde era funcionário. A sua prima Iria de Fátima Vieira, emigrante de Água de Pau, vivia em Toronto e levara-me ao mesmo restaurante onde nos encontramos, coincidência difícil de explicar. Mas o mundo é pequeno demais para alguns. Sabemos isso. Foi ali que o carteiro me contou “a história dos muros” e do portão pelo ar para o mar!
De regresso a Água de Pau, o primo António Inácio Vieira, também primo e procurador da “menina” Iria Vieira, a antiga vizinha da ilha, disse-me saber da história e acrescentou que, os pretensiosos donos, durante alguns anos, ainda tinham chegado a plantar vinha na ilha, protegida dos muros.
Hoje, quando visito o miradouro da “Meia-Laranja” e ponho meus olhos naqueles muros, penso nesta história. Que trabalheira tiveram para transportar pedra seca para aquela ilha! Tinham de o fazer quando a maré estivesse bem vazia, senão não poderiam entrar pelo atalho-abaixo por trás do Convento. Só de barco, mas a distância é tão curtinha, que preferiram fazê-lo assim, carregando às costas cestos e cestos de pedra. As mesmas pedras que ainda hoje vemos nos pequenos murinhos, na ilha da “Botinha de Nossa Senhora”, assim chamada pelo povo, por ter o formato da bota que apontam ser da mãe do Senhor Santo Cristo, quando àquela ilha aportou, dum barco, em imagem dentro duma caixa de madeira, destinada à antiga e primitiva Ermida da Caloura.
Suscitam perguntas e a curiosidade a quem ali chega e que, sem se aperceber, tira fotografias dos muros e da araucária que não cresce, desde há muitos, muitos anos! Foi assim que me contaram a história dos muros de pedra-seca que rodeiam a ilhazinha para onde tantas vezes nadava com os meus amigos de infância, para vermos as “pegadas” do Senhor Santo Cristo, mesmo à frente da araucária.
Acreditávamos em histórias antigas e delas ocupávamos os tempos livres, questionando os mais velhos que nos iam contando outras sobre a nossa querida Vila de Água de Pau e suas gentes!
(Crónica publicada na edição impressa de janeiro de 2021)
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