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Os Impérios do Espírito Santo

José Amaral

Na minha crónica de hoje vou falar sobre os Impérios do Divino Espírito Santo  que são um dos traços mais marcantes da identidade açoriana, constituindo um culto que para além de marcar o quotidiano insular, determina traços identitários que acompanham os açorianos para todos os lugares onde a emigração os levou. Para além dos Açores, o culto do Divino Espírito Santo está hoje bem vivo no Brasil e na América do Norte.

Apesar da colonização dos Açores só se ter iniciado a partir de 1432, quase 200 anos após o apogeu da doutrina de Joaquim de Fiore já ter sido condenada pelo papa Alexandre IV, há no arquipélago um claro reacender daquelas doutrinas, inspirando manifestações religiosas e ações rituais e simbólicas que continuam até aos nossos dias. Por influência dos franciscanos espiritualistas, que foram os primeiros religiosos a instalar-se nas ilhas, partilhando com os primeiros povoadores as agruras da colonização, o culto do Divino Espírito Santo, então em apagamento na Europa devido à crescente pressão da ortodoxia religiosa, foi trazido para as ilhas.

Sobre as origens do culto e dos rituais utilizados, pouco se sabe, no entanto pensa-se que foram introduzidas em Portugal pela Rainha Santa Isabel, que por sua vez as teria trazido de Aragão. O seu centro principal terá sido em torno de Tomar  que era sede do priorado da Ordem de Cristo,a que foiconfiada a tutela espiritual das novas terras, incluindo dos Açores.

As referências ao culto do Espírito Santo aparecem muito cedo e de forma generalizada em todo o arquipélago, já que Gaspar Frutuoso, escrevendo cerca de 150 anos após o início do povoamento, já o menciona, indicando ser comum a todas as ilhas. A expansão apenas foi possível se contasse com a tolerância, ou mesmo o incentivo, da Ordem de Cristo. Também as referências a festejos feitas nas Constituições Sinodais da Diocese de Angra, aprovadas em 1559 pelo bispo D. frei Jorge de Santiago, demonstram que naquela altura já eram matéria a merecer a atenção da autoridade episcopal.

A existência de Irmandades do Divino Espírito Santo é já generalizada no século XVI. O primeiro hospital criado nos Açores (1498), a cargo da Santa Casa da Misericórdia de Angra, recebe a designação, ainda hoje mantida, de Hospital do Santo Espírito. A distribuição de carne e os bodos eram também já comuns em meados do século XVI. Após o início do século XVIII, o culto do Divino Espírito Santo assume-se como um dos traços centrais da açorianidade. Com a imigração açoriana o culto é levado para o Brasil, onde já no século XVIII existia no Rio de Janeiro, na Baía e nas zonas de colonização açoriana de Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Pernambuco. No século XIX é levado para o Hawaii, para o Massachussets e para a Califórnia. Hoje o culto açoriano do Divino Espírito Santo está em claro crescimento, tanto nos Açores como nos Estados Unidos e a Província do Ontário, Canadá. Com o renascer da identidade açoriana no sul do Brasil, os festejos do Divino fortificaram-se também aí. No que se refere ao culto, ele assenta nas seguintes estruturas:

Irmandade que é formada por irmãos, todos eles iguais em direitos e deveres. Nas irmandades são todos iguais, não sendo aceites diferenças por origem ou posses. Esta regra foi raramente violada, mas há notícia nalgumas ilhas de Impérios dos nobres  (o mais conhecido e o único sobrevivente é o da Horta, hoje sob responsabilidade da Câmara Municipal) que apenas aceitavam irmãos provenientes da aristocracia local.As irmandades são territoriais, agrupando famílias residentes numa mesma freguesia ou localidade, podendo aceitar irmãos residentes noutras localidades, desde que tenham ligação familiar ou não à localidade onde se situa a irmandade.

El Império é onde cada irmandade se estrutura para realizar as atividades de culto normalmente num pequeno edifício com arquitetura distinta. A arquitetura dos Impérios varia grandemente de ilha para ilha, variando desde um simples telheiro no tardoz das igrejas na ilha de Santa Maria até capelas vistosamente ornadas e encimadas pela coroa imperial na ilha Terceira.

El Mordomo  é o irmão responsável que cabe coordenar a recolha de fundos para a festa e coordenar a sua realização, sendo para tal efeito considerado a autoridade suprema a que todos os irmãos estão obrigados a estrita obediência.

O culto do Divino Espírito Santo é autónomo face à Igreja pois não depende da organização formal da mesma nem necessita da participação formal do clero.

coroa, o ceptro e o orbe  são os símbolos mais importantes do Império do Divino Espírito Santo, assumindo o lugar central em todo o culto. É uma coroa imperial, em prata, normalmente com três braços, concluída por um orbe em prata dourada sobre o qual assenta uma pomba de asas alongadas. Cada irmandade dispõe de uma coroa grande e duas mais pequenas. Cada coroa é completada com um ceptro em prata, encimado por uma pomba de asas estiradas. Simboliza o império do Divino Espírito Santo e o seu poder universal. Servem para coroar e durante o ano as coroas circulam semanalmente entre as casas dos irmãos, que as colocam em lugar de honra, rezando e louvando o Divino, todas as noites, perante elas. As coroas são também transportadas pelos mordomos quando realizam peditórios.

A bandeira  é em damasco vermelho vivo, normalmente de dupla face, de forma quadrangular, no centro tem bordado uma pomba branca da qual irradiam para baixo raios de luz em branco e fio de prata. A bandeira é colocada numa haste em madeira com cerca de dois metros de comprido, encimada por uma pomba em prata ou latão. A bandeira acompanha a coroa e está sempre presente nas cerimónias litúrgicas onde se coroe.

El Hino  do Espírito Santo, composto em finais do século XIX para ser tocado pelas bandas e ser cantado durante as coroações, é o mais honrado de todos os hinos, sendo sempre escutado nos Açores com grande emoção e respeito.

No dia de Páscoa as coroas são transportadas para a igreja, fazendo-se no final da missa a primeira coroação, depois de coroado, o imperador parte para sua casa, acompanhado por um cortejo. Atrás vai uma filarmónica que acompanha com música alegre o percurso. Chegados a casa do imperador, as coroas são colocadas num trono armado em madeira revestida de papel branco e de flores, ficando em exposição toda a semana. Todas as noites, os vizinhos e convidados reúnem-se para um pequeno convívio, que incluindo danças, recitação do terço e orações relativas ao Divino Espírito Santo. No domingo seguinte, as coroas partem novamente em cortejo para a igreja, sendo recebidas à porta pelo pároco, que entoa o Magnificat. O processo repete-se até ao Domingo do Bodo (o sétimo após a Páscoa).

A coração é feita no final da missa e consiste na colocação, pelo padre, da coroa na cabeça do imperador ou das pessoas que ele designar, e na imposição do ceptro, que depois de beijada a pomba que o conclui, é empunhado pelos coroados. Os fiéis assistem de pé à coroação, sendo por vezes cantado o Hino. Depois da coroação, inicia-se o cortejo, sendo o imperador seguido até à porta pelo sacerdote, que canta o Magnificat.

El bodo realiza-se no 7.º domingo após a Páscoa. Nesse dia, o cortejo depois de sair da igreja dirige-se ao império, sendo as coroas e bandeiras aí colocadas em exposição. Frente ao império, em longos bancos corridos são colocadas as esmolas (carne de vaca, pão e vinho de cheiro) depois de abençoadas são distribuídas. Os irmãos recebem-nas e todas as pessoas que passam podem livremente servir-se de pão e vinho. No entretanto são arrematadas as oferendas, normalmente gado, alfenim e massa sovada. O bodo é organizado e gerido pelo mordomo e por quem ele designe. Terminado o bodo as coroas recolhem em cortejo a casa do mordomo. A segunda-feira imediata é o Dia dos Açores, ou dia da pombinha.

função é uma refeição ritual servida a um numeroso grupo de convidados por um dos irmãos, normalmente em resultado de um voto ou promessa. A refeição consiste de “sopa do Espírito Santo” (pão seco que depois é recoberto com água de cozer carne, temperada com hortelã e outros condimentos), o cozido de carne, pão de água, a massa sovada (um pão de massa doce e rico em ovos) e arroz doce polvilhado com canela.

Os jantares organizados em honra dos lavradores que contribuíram com gado ou das pessoas que deram ofertas relevantes à irmandade são chamados de ceia dos criadores.

Os foliões são pequenos grupos de até 5 pessoas, os Foliões do Divino, que, com as suas cantigas, participam da preparação das Festas do Divino, visitando as casas dos irmãos, cantando os feitos e os poderes do Divino Espírito Santo, recolhendo donativos e marcando os rituais da distribuição do bodo ou da função. Na ilha de Santa Maria e no lugar da Beirailha de São Jorge, sobrevivem rituais que já desapareceram nas outras ilhas.

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Comentários

  1. avatar Tomaz Colaço 12-06-2023 08:33:05

    Obrigado por esta explicação. Assisti ao ritual aqui em São Roque ( são Miguel) e fiquei sem.preceber nada. Assim já fiquei mais elucidado. Admirável ancestralidade.

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