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A roda do Senhor Santo Cristo dos Milagres: círculo de devoção e doação

É ponto de passagem e paragem obrigatória para milhares de crentes, há décadas. Como funciona? Quem recorre a ela e porque existe a roda? Fomos à procura das respostas num dos maiores locais de culto dos Açores 

Sidónia Melo (à esquerda) segura o que recebeu na sua ida à roda © SARA SOUSA OLIVEIRA/ DL

Manhã de chuva forte. O dia começa açoriano, fechado e cinzento. Guardado dentro dos portões do Convento da Esperança, em Ponta Delgada, ilha de São Miguel, está um dos locais mais procurados do arquipélago.

Maria Sousa mora nas Capelas mas é aqui que vem quando precisa. “Venho todos os meses buscar aguinha benta, que gosto de ter sempre em casa e círios. Hoje já acendi um círio em casa porque estava este temporal. A minha avó ensinou-me, nas tempestades, a rezar a oração Magnificat. Quando vi este escuro, disse ‘ah que escuro do fim do mundo’. Acendi o círio bento, rezei a Magnificat, o Credo, com esta fé, como a minha avó nos ensinou”. Maria Sousa é de conversa fácil e fé inabalável. Conversamos com ela na antecâmara da roda do Senhor Santo Cristo dos Milagres, tão procurada e acarinhada pelos milhares de crentes que a procuram, a qualquer hora do dia, praticamente todos os dias do ano. Fica à esquerda da porta regral, a entrada nobre do convento, de onde sai a imagem do Senhor Santo Cristo dos Milagres para percorrer as ruas de Ponta Delgada, em procissão. Tem um banco de pedra, ali mesmo, abrigado da chuva. A janela de pedra, que abraça a roda, tem por cima uma cruz também em pedra. No interior, o mecanismo é composto por uma estrutura de madeira tripartida, pintada de bordeaux, que leva as doações de quem ali deposita a sua fé e volta com “lembranças”, de todas as formas e tamanhos, do Senhor Santo Cristo.

Doações chegam de todas as latitudes

Roda funciona no interior do Convento da Esperança das 8h30 às 17h © SARA SOUSA OLIVEIRA/ DL

Sidónia Melo também vem das Capelas. “Venho à roda porque tenho fé no Senhor Santo Cristo que já me ajudou muito na minha vida. Agradeço em promessa, num miminho para Ele e sinto-me bem quando venho à igreja O ver, é uma paz e uma tranquilidade que se sente no coração. E quando ele sai à rua dá para arrepiar – como me estou a arrepiar agora. É a fé que a gente tem cá dentro que nos salva”, conta ao Diário da Lagoa (DL), emocionada. Quem vai à roda, dá o que quer e pode. Uns não pedem nada em troca, a quem está do outro lado da roda, outros solicitam o que precisam. “Hoje eu pedi uma bolsinha de proteção do Senhor Santo Cristo. Ela serve para usarmos na nossa carteira, na nossa roupa, na algibeira, é sagrada. É uma benção que tem água benta e tem um material dentro que só o santuário é que sabe. As pessoas sentem que estão passando por uma má fase, com más energias e recorrem a esta bolsinha, usam consigo e têm esta proteção do Senhor Santo Cristo dos Milagres”, conta Sidónia Melo, enquanto mostra o pequeno quadrado vermelho junto da imagem em quem tanto acredita.

Desde manhã até à tarde, junto à roda, há sempre dezenas de crentes e as histórias, de vida e fé, multiplicam-se. 

Gualter Pavão chega com a irmã e vem dos Mosteiros. “Não venho frequentemente, venho de vez em quando quando sinto necessidade”, conta ao DL e este é um desses dias. “Fui operado ao coração e ofereci um anel de ouro que eu tinha. Deram-me esta oferta: a imagem [de grande dimensões] do Senhor Santo Cristo. Aliviei a consciência e saio feliz”, assegura, sem dizer mais nada.

As doações chegam de todas as latitudes, do estrangeiro, e de todas as ilhas dos Açores. Fátima Silva vem das Angústias, ilha do Faial. “Já estive aqui mas foi há muitos anos quando o meu marido foi operado à cabeça. Vou fazer um exame amanhã e então vim. Recebi um terço, uma medalha, uma carteira e uma pagela”, conta ao DL. Da ilha vizinha, o Pico, encontramos Maria Simas, residente em Santo Amaro. “Tenho fé Nele e gosto de ajudar, temos de dar uma coisinha, é bom dar, gosto mais de dar do que receber e nunca me faltou nada. Desta vez recebi um terço e uma medalhinha do Senhor Santo Cristo, tenho muita fé”, diz. 

A voz que se ouve do outro lado da roda, em tempos pertencia às freiras do Convento da Esperança. “Do outro lado temos sempre alguém, uma pessoa, não necessariamente irmã. Quando tivemos várias freiras eram irmãs a fazê-lo, a partir da altura em que elas foram embora, depois ficaram outras pessoas que ajudam e ficam a assegurar o serviço que está aberto das 8h30 às 17h”, explica o reitor do Santuário da Esperança. Atualmente são residentes do Convento da Esperança três religiosas da Congregação das Irmãs do Bom Pastor. 

“As pessoas chegam, dizem qualquer coisa ou batem na madeira e a pessoa responde do outro lado. Entrega a sua oferenda e eles dão uma lembrança às pessoas. Aqueles que querem manter o anonimato é assim que o fazem. Podem dirigir-se diretamente ou entregam os seus donativos ali na grade do Santuário, há muita gente que o faz, quando vão visitar a imagem do Senhor Santo Cristo dos Milagres”, conta o reitor Manuel Carlos Alves, natural de São Vicente Ferreira, que assumiu a liderança do Santuário da Esperança há sete meses.

Como surgem as rodas nos conventos?

Pároco e investigador Hélio Soares (à esquerda) e o reitor do Santuário da Esperança Manuel Carlos Alves (à direita) © SARA SOUSA OLIVEIRA/ DL

“A roda não foi criada pelo Santo Cristo, entenda-se. Este mecanismo foi usado para várias coisas. Às vezes fala-se que era usada para entregar crianças. Mas isso é um modelo do século XIX para os orfanatos, para preservar a privacidade da mãe que entregava a criança. Isso não aconteceria aqui, este mecanismo dos conventos é que foi usado pelos orfanatos. Não quer dizer que não tenha acontecido com alguma”. A convicção é de Hélio Soares, investigador e pároco nas Capelas, licenciado em História e mestre em Património e Museologia. Fala de forma entusiasmada da longa história dos conventos de clarissas, como era o caso do Convento da Esperança. 

“As rodas [criadas há vários séculos] serviam para passar objetos. Na sociedade micaelense era normal ir-se tomar chá com as freiras em determinado dia da semana. O chá tinha de passar na roda, chá para lá, chá para cá, bolinhos para cá, bolinhos para lá. Havia a ‘irmã rodeira’, que estava na roda, e na porta era a ‘irmã porteira’. E nos parlatórios havia as irmãs escutas que iam escutar as conversas dos outros para ver se não havia conversas inapropriadas, era tudo muito controlado”, explica o investigador e autor da obra “O mosteiro de Nossa Senhora da Esperança de Ponta Delgada”.

De acordo com o padre Hélio Soares, “a roda foi adaptada à lógica das esmolas e só existia nos conventos femininos”. O Convento da Esperança era um convento de clausura de clarissas [Ordem de Santa Clara]. “A freira de clausura, depois de ingressar no convento, e fazer os votos, nunca mais saia, inclusivamente era sepultada cá dentro. Era a família que as vinham visitar, os médicos é que entravam quando havia problemas de saúde. A clausura era o ideal de santidade, o separar-se do mundo porque o mundo era visto como o local do pecado, sair do mundo era local de santidade”, explica o padre.

Com a aproximação das Festas do Senhor Santo Cristo dos Milagres, que arrancam nesta primeira semana de maio, e têm o seu ponto alto nos dias 4 e 5 deste mês, a afluência à roda aumenta. De acordo com informação recolhida pelo DL, junto do Santuário da Esperança, as filas chegam a ter vários metros e há quem demore horas até conseguir entregar a sua doação na roda. 

A fé move multidões, atravessa freguesias, ilhas e continentes. E todas as pessoas que entrevistámos para esta reportagem disseram o mesmo: “não venho ao campo de São Francisco, em Ponta Delgada, sem ver o Santo Cristo” e antes ou depois desse encontro, muitas vão à roda, dar e receber.  

Para Sidónia Melo, o que sente é claro como a água: “Quem tem a fé, sente-a e quando estamos a fazer uma coisa ao Santo Cristo a gente recebe, estou toda arrepiada, estou a sentir, o Santo Cristo dentro de mim”.

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