Rui Tavares de Faria
Professor e investigador
O décimo segundo carácter sobre o qual recai a atenção e o interesse de Teofrasto é o inoportuno. É mais um termo conhecido do leitor contemporâneo e o retrato que dele faz o autor grego em pouco ou nada difere da imagem e do conceito que se tem, atualmente, de quem não mede a oportunidade, antes de agir ou falar. Na verdade, é sobre a καιρός (kairós) – vocábulo igualmente familiar do leitor micaelense –, isto é, a “oportunidade”, “qualidade que a retórica aplicou ao discurso, como a propriedade de usar da palavra ou do argumento na hora certa” (Maria de Fátima Silva), que incide a atuação do inoportuno. Embora curto, o retrato deste tipo ético faz-se em catorze pontos e todos eles dão a (re)conhecer o quão inconveniente e despropositado é aquele que tem “falta do sentido da oportunidade” (Char. 12.1.). Mas centremo-nos nos aspetos mais engraçados.
Segundo Teofrasto, o inoportuno “vê um tipo atarefado, vai ter com ele e põe-se com confidências” (Char. 12.2.), cenário com o qual já nos deparamos uma série de vezes. Desinteressado e completamente alienado do mundo que o rodeia, o inoportuno atribui importância tal àquilo que pode ter de ir dizer a A ou a B, mesmo podendo perceber que A ou B não dispõem de tempo para o ouvir ou até mesmo porque a A ou a B pode nem sequer importar o teor das confidências de última hora que vêm em momento…inoportuno. Do mesmo modo, “faz uma serenata à namorada no dia em que a moça está com febre.” (Char. 12.3.), o que, nos nossos dias, equivaleria, por exemplo, a convidar um(a) amigo(a) para sair à noite debaixo de chuva torrencial ou trovoada imensa. Convite feito no próprio dia, que é como quem pensa: “está sempre a dizer que não o/a convido para nada e eis que, quando convido, não aceita!” Pudera, quem sai à noite de casa, em dia de temporal?!
Outro aspeto gracioso que Teofrasto destaca na figura do inoportuno é o seguinte: “convidam-no para uma festa de casamento, e aí o têm a dizer mal das mulheres” (Char. 12.6). Se fosse num casamento gay masculino até se compreenderia (ou não!), mas, tratando-se de um cerimónia que é, sobretudo para a noiva, desde tempos remotos, uma das ocasiões mais felizes da sua vida, quem “sentido de oportunidade” há em dizer-se mal – ou o que quer que seja de negativo – acerca das mulheres? Ou, noutra situação, “quando já toda a gente ouviu e percebeu, ele, [o inoportuno], levanta-se e retoma a questão do princípio” (Char. 12.9.), como se dele dependesse exclusivamente o que já era do entendimento de todos os presentes…
Atualmente, o inoportuno também repete as mesmas cenas a que se refere Teofrasto e que no-las reporta de modo engraçado, mas há outros comportamentos que, nas últimas décadas, têm redesenhado este carácter humano. São inoportunos os que nos interrompem sem pedir licença, quando estamos nós a deter a palavras (Oh! Quantas vezes!); são inoportunos os que fazem intervenções pouco felizes acerca do foro íntimo de quem, estando ausente, não tem a oportunidade de se defender ou justificar; são inoportunos os que nos abordam com problemas e mais problemas, não no sentido de nos pedirem auxílio, mas com o objetivo de se de tomarem por vítimas, incessantemente. São, ainda, manifestações de falta do sentido de oportunidade procurar achincalhar o outro diante de seja quem for ou divulgar um assunto que se quer reservado ou que venha ser surpresa, só pela simples satisfação de estragar ou antecipar o momento.
Por isso, caro leitor, façamos por entender e compreender a oportunidade. Manter o silêncio, evitar aquela frase que nos dá comichão na língua ou fazer “ouvidos moucos” são algumas das formas que inviabilizam que sejam ou nos tornemos inoportunos. É como se diz: a ocasião faz o ladrão, o mesmo é dizer que o oportunidade cria o inoportuno. Às vezes, é mais forte do que nós, mas o decoro e a cortesia devem imperar e ter a voz mais elevada!
Rui Tavares de Faria
Professor e investigador
O décimo primeiro carácter a que Teofrasto dedica nove pontos muito breves é o disparatado, termo com que o leitor da atualidade está inteiramente familiarizado. O retrato que dele faz o autor grego é, na verdade, curto, sugerindo talvez nesta extensão a brevidade do “disparate” que é, nas suas palavras, “uma atitude espalhafatosa e chocante” (Char. 11.1). A julgar pela definição enunciada, estamos em crer que vivemos atualmente num “disparate” constante, pois são tantas as situações ilustrativas de espalhafato e os episódios que nos chocam diariamente que só podemos concluir o seguinte: estamos a conviver com um mundo “disparatado”!
Quanto ao perfil deste tipo ético, Teofrasto enumera circunstâncias hilariantes que nos permitem encontrar facilmente correspondências, nos dias de hoje, daquele que, “diante de senhoras, arregaça as fraldas e mostra o sexo” (Char. 11. 2) ou, “no teatro, bate palmas quando os outros deixam de bater; assobia aos atores que os outros admiram; e, no meio do silêncio geral, estica o pescoço e arrota, de modo a fazer o anfiteatro inteiro voltar-se para ele” (Char. 11.3). É uma figura caricata de facto, mas bastante comum na nossa contemporaneidade. Pelo menos na de Ponta Delgada ou, em sentido lato, na nossa ilha de S. Miguel.
Ainda há um ou dois anos a comunicação social impressa noticiava casos de exibição dos genitais por indivíduos sem-abrigo aos turistas que se passeavam pelas artérias centrais da capital micaelense. Os estrangeiros, pensando aqui encontrar o “paraíso perdido” – não o de Milton, mas o de uma revista turística qualquer –, deparavam-se com uma imagem pervertida do jardim do Éden, onde homens despiam as calças e abanavam o “mangalho”, no canto de uma das várias ruelas que compõem o centro histórico de Ponta Delgada. Acredito que tenha havido quem tivesse gostado de apreciar o estado masculino autóctone na sua mais nua representação, mas, por outro lado, não deixa de ser um grande “disparate” ter de lidar com situações como essas. De há algum tempo para cá deixou de se ouvir falar sobre os disparatados que baixavam as calças ou os calções para exibir a potencialidade (caída) do abono de família! Terão encontrado abrigo ou terão sido acolhidos por algum(a) turista que neles reconheceu potencial naquela sua arte exibicionista? Nunca se sabe…
Outros disparates, porém, mantêm-se e tendem a constituir traços caracterizadores intrínsecos de um certo tipo de gente apalermada. O que “bate palmas quando os outros deixam de bater” é um indivíduo que persiste. Não no teatro, que aqui, na nossa terrinha, não há espetáculos dessa arte com a frequência e a fartura com que existem noutras cidades. O disparatado local aplaude comícios, perante a verborreia dominante de discursos políticos vazios e mal estruturados; louva, com aplausos, as figuras públicas da praça, sobretudo aquelas que chegaram onde chegaram por uma série de disparates; bate palmas a si próprio, porque não tem qualquer noção do quão disparatado é. Não “assobia aos atores”, mas grita “buhhh”, quando alguém com dois dedos de testa anuncia um bom plano estratégico para a resolução de um dado problema, ou “arrota” diante de alguém respeitado, simplesmente porque se quer fazer notar. Vistos os cenários nesses prismas, temos mesmo de considerar a hipótese de o nosso mundo se ter convertido num autêntico e enorme disparate.
Por outro lado, há episódios espalhafatosos e chocantes que convidam à presença o disparatado. E estes episódios são, aliás, bem corriqueiros. Quantas vezes não “passa um sujeito com quem [o disparatado] não tem intimidade nenhuma e ele põe-se a chamá-lo pelo nome” (Char. 11.5) como se fossem grandes amigos? Quantas vezes “um fulano vem a sair do tribunal, depois de ter perdido um processo importante e o nosso homem [i.e. o disparatado] salta-lhe em cima para lhe dar os parabéns” (Char. 11.6)? É claro que, nestes casos, o disparatado se confunde com o despropositado, aquele indivíduo que, não tendo ideia do ridículo a que se expõe, atua com a maior das naturalidades nas circunstâncias mais caricatas ou adversas.
Em tempos ouvia-se amiúde da boca dos adultos – dos nossos pais e avós, por exemplo – a expressão “não digas disparates”, como forma de negar um dado pedido aos mais novos. À primeira vista até nos pareceria desadequado usar o termo “disparate” para dizer “não” a um “posso sair logo à noite com os meus amigos?”, mas, se pensarmos um pouco, veremos que o propósito da pergunta prevê uma situação espalhafatosa ou até chocante. Basta para isso atentarmos no estado em que os jovens adolescentes regressam a casa às cinco da manhã, completamente alcoolizados e drogados. Foi um disparate! Ou, então, quando se anunciava alguma coisa sem sentido, descabida aos olhos dos mais velhos, era também vulgar escutar-se o “não digas disparates”. Muitas vezes estes “disparates” coincidiam com rumores, maledicências que se tinha ouvido a fulano ou beltrano e que desonravam sicrano ou sicrana.
Por isso é que se vive da forma como se vive, dando atenção a disparates e sendo conivente com disparatados. Há que ter a noção de que chocar os outros não é – nunca foi – uma atitude eticamente louvável. Opõe-se ao ato de disparatar a consciência da discrição, propriedade de carácter em vias de extinção. Porque se antes os disparatados atuavam numa esfera social paralela, a mais provinciana, hoje lideram empresas e governam países e tomam decisões em nome do disparate em que se metamorfoseou o seu cérebro. Quer isto dizer que se tornaram numa espécie ética em autêntica proliferação. É lamentável, portanto, mas é a realidade.
Rui Tavares de Faria
Professor e Investigador
Iniciar o ano a falar sobre mesquinhice pode não parecer um bom augúrio. Tranquilize-se, porém, o caro leitor, porque o décimo tipo ético a que se dedica Teofrasto nos seus Caracteres bem pode ser ilustrativo de um comportamento ou modus uiuendi a considerar no dia a dia, não apenas no período cronológico que agora se inaugura, mas também a médio e a longo prazo. A mesquinhice, afirma o autor grego, “é uma economia levada para além das marcas.” (Char. 10.1). O que mais se deseja “para além das marcas” em véspera de Ano Novo? Prosperidade! E se estes votos traduzissem a mesquinhice teofrástica, não seria de facto próspero – financeiramente – o Ano Novo? Na ótica do “mesquinho”, não há esbanjamentos, não há manhãs e tardes passadas no shopping a encher sacos com prendas para o Natal ou para o Reis, não se coloca sequer a hipótese de beirar o supérfluo… De acordo com os traços deste carácter humano, a quadra que ainda se vive e celebra restringir-se-ia ao extremamente necessário e básico, o mesmo é dizer a um amealhar de “prosperidades” para os 365 dias que se seguem, evitando dispensar o que quer que seja ou fosse com o(s) outro(s). Esperto, pois claro.
O termo grego a que corresponde a palavra “mesquinho” em português, opção mais que acertada pela tradutora de Teofrasto, é μικρολόγος (mikrológos). Procedendo à decomposição morfológica do vocábulo chega-se, quase por intuição, a μικρός (pequeno, pouco) e λόγος (palavra, conhecimento, …), estrutura que sugere, à letra, qualquer coisa como “o de pequenas/poucas palavras ou ações”.
Etimologicamente, o μικρολόγος (mikrológos) é, assinala Maria de Fátima Silva, “o miudinho, aquele que presta atenção e faz contas a coisas pequenas; tem, portanto, um lado de avareza na sua personalidade”; e a classicista acrescenta que “sobre a falta de maleabilidade no que respeita ao dinheiro, Aristóteles (Ética a Nicómaco 1121a, 10-15) divide os comportamentos humanos em dois estilos: “os que exageram no receber e os que se excedem no não dar.” […] É sobretudo nesta dicotomia que o mesquinho e o avarento divergem, o primeiro muito apertado no dar e o segundo sobretudo preocupado em receber e acumular. Logo o mesquinho ensaia, de certa forma, um comportamento regular para com os outros, apenas se excede no grau das restrições que impõe.” Por outras palavras, embora próximo do sovina ou do forreta, o mesquinho tem a particularidade de se “autorrestringir”, apertando-se no dar. Não há neste perfil um ideal de busca da prosperidade?! No poupar está o ganho, dita o adágio popular, e nesta perspetiva não se sabe se o português (nós!) não deveria assumir um carácter de mesquinhice de vez em quando, com o objetivo de se impor certos limites e aproximar-se dos que são efetivamente prósperos (como os nórdicos, por exemplo). É caso para se refletir sobre o assunto…
Na verdade, o mesquinho de Teofrasto é aquele que, “a meio do mês, vai a casa de um devedor cobrar uns míseros cinco tostões” (Char. 10.2.), logo, os empréstimos ficam devidamente saldados, não há aqui o “pagas (muito) depois” ou o “nunca chega a pagar”. O mesquinho é aquele que, “num banquete, deixa contas a quantos copos cada um bebe e, entre todos os convivas, não há quem como ele rateie as oferendas a Ártemis.” (Char. 10.3), ou seja, é o indivíduo que, num jantar entre colegas e/ou amigos, não aceita dividir equitativamente a conta, uma vez que não bebeu vinho ou não comeu sobremesa.
Chamemos-lhe de tolo! O mesquinho é aquele a quem trazem “a comida por uma pechincha e, quando se lhe apresenta a conta, ele queixa-se de que é muito caro” (Char. 10.4); trata-se, pois, não de um insatisfeito, mas de alguém excessivamente crítico que, procurando apertar-se no dar, exige uma correspondência entre a qualidade do produto que adquire e o valor que por ele tem de pagar. Os exemplos continuam, mas os que antes se enumerou são suficientes para se justificar a intenção inicial de que o “mesquinho” pode ser um bom augúrio para se ter ou alcançar a tão desejada prosperidade que se recebe nos votos de um feliz Ano Novo.
Poupado e atento – e não sovina ou forreta –, ser-se mesquinho é, afinal, sinal de se possuir alguns dotes de inteligência (prática, com certeza) ou, pelo menos, de um certo sentido de oportunidade e estratégia de atuação social. Veja-se como nos rodeamos de adeptos da mesquinhice. Quantas vezes não se acompanha um colega de trabalho ao café e se avança, dois ou três dias seguidos, com os “míseros cinco tostões” para pagar os dois cafés? Nunca aconteceu o aparecimento de um outro colega, à hora do almoço, que, não fazendo planos para nossa companhia, se junta, almoça e se esqueceu da carteira? Noutros casos, quando se organiza um convívio, há sempre um elemento – o mesquinho – que se recusa a participar no evento porque o valor lhe foge, diz ele, do orçamento semanal, mas conduz um carro de topo de gama e tem piscina aquecida em casa. Ou, ainda, em comemorações que implicam dar uma prenda a um colega ou a um aniversariante, há também aquele envolvido que considera de mais proceder desse modo, pois a sua presença e o valor que pagará pelo almoço/jantar já são oferta mais que satisfatória…
Talvez por tudo isso não seja de todo despropositado ser-se mesquinho, porque é o mesquinho quem sai sempre a ganhar, é ele quem sabe, na realidade, o que é a prosperidade. Esquivando-se àquilo que considera supérfluo, impondo-se limites nos gastos, sobretudo naqueles que não lhe dizem diretamente respeito, que é isso senão saber poupar e, ato contínuo, prosperar? Fica, pois, a ideia de que nem todos os perfis éticos desenhados por Teofrasto nos Caracteres são exclusivamente negativos. Desejados votos de um próspero 2025, com a devida e necessária mesquinhice!
Ser-se mesquinho é, afinal, sinal de se possuir alguns dotes de inteligência (prática, com certeza) ou, pelo menos, de um certo sentido de oportunidade e estratégia de atuação social.
Rui Tavares de Faria
Professor e Investigador
Dos retratos éticos dos Caracteres de Teofrasto que aqui temos vindo a analisar, a comentar e a recriar à luz da modernidade, o Descarado é talvez aquele que menos correspondências estabelece com a noção ou o conceito que hoje se tem do indivíduo que tomamos por um “descarado”. Em nota à tradução portuguesa, Maria de Fátima Silva refere que, comparativamente ao tipo humano do Descarado descrito por Aristóteles na Ética a Nicómaco, “o quadro traçado em Caracteres não acentua, no entanto, aspetos morais, mas regras de convivência.” Na verdade, antes de apresentar o perfil do Descarado, Teofrasto define o descaramento como “o desprezo pela opinião pública, com vista a benefícios mesquinhos” (Char. 9.1.), ou seja, segundo o autor grego, quem pratica o descaramento tem objetivos definidos, é como se houvesse recurso a uma máscara – a do Descarado – para camuflar o carácter de interesseiro e/ou oportunista que caracteriza o tipo teofrástico.
Ora, falar de descaramento nos dias de hoje significa falar de “caras de pau” (na variante do português do Brasil, já adotada por Portugal), “gente sem um pingo de vergonha na cara”, “tipos despropositados” que procuram integrar-se nos mais variados meios e nas mais diversas situações, sem que com eles mantenha qualquer tipo de relação ou afinidade. Se, para Teofrasto, o Descarado é aquele que, sabendo do caso de alguém que sofreu um calote, pede precisamente à vítima dinheiro emprestado (Cf. Char. 9.2), para nós, cidadãos da modernidade, o Descarado é quem se dirige ao autor do calote e lhe chama de caloteiro. Se, para Teofrasto, o Descarado é aquele que, “no dia em que fez sacrifícios aos deuses, arranja maneira de ir jantar a casa de alguém” (Char. 9.3), para nós, o Descarado apresenta-se em casa de alguém à hora de jantar, pergunta se vai jantar e, mesmo dizendo que tem jantar feito à sua espera em casa, acaba sentando-se à mesa de quem lhe abriu a porta e come com ele. Que levante a mão quem ainda não experienciou tamanho descaramento!
O “nosso” Descarado, i.e., aquele que não tem vergonha na cara, acaba por ser um tipo humano até bastante comum na sociedade hodierna. Pensemos em alguns exemplos. No âmbito político, quando sabemos que certos cargos ou postos de comando são ocupados pelos filhos, pelos afilhados, pelos sobrinhos de quem está no poder num dado momento, o que dizemos? É cá um descaramento! No campo religioso, quando ouvimos da boca dos curas que é preciso viver o desprendimento e a pobreza, que é necessário exercer a caridade e ajudar o próximo, mas logo a seguir à cerimónia eucarística põe-se a milhas o vigário num carro de topo de gama, o que dizemos? É cá um descaramento. E quando, no domínio da educação, se apregoa a desburocratização e se promove o sucesso escolar, mas a insatisfação dos docentes e os maus resultados dos alunos persistem, o que não hesitamos em dizer? É cá um descaramento.
Noutras circunstâncias – e também bastante corriqueiras –, o Descarado é o indivíduo que não se preocupa minimamente com o propósito, a elegância ou a cortesia das suas falas ou dos seus atos. Aborda os colegas no sentido de lhes dizer algo menos positivo ou apropriado, mesmo sabendo que essa sua abordagem constitui, por exemplo, uma apreciação pejorativa ou rude. Não se diz a uma colega recentemente divorciada, vítima que foi de sucessivos enganos por parte do ex-cônjuge, que se viu o dito marido a passear com a nova conquista! Também não se refere a bom som à secretária do chefe que ela está mais jeitosa do que o habitual porque pretende seduzir o patrão a troco de um aumento ou de um par de dias de férias a mais do que os restantes colaboradores! Sem “papas na língua” e com a perfeita noção do desadequado, o Descarado deixa mal qualquer um. E é talvez por isso que é o tipo ético paradigmático do destemido.
Na realidade e ao contrário do retrato desenhado por Teofrasto, que nos apresenta o Descarado como alguém cuja conduta tem em vista “benefícios mesquinhos”, a versão moderna desse tipo humano concebe um indivíduo que age propositadamente de forma natural. E se há alguma intenção que resulte do descaramento stricto sensu, não nos parece que tenha como objetivo “benefícios mesquinhos”. O Descarado nosso contemporâneo limita-se a dizer, sem rodeios ou subterfúgios, aquilo que pensa, seja ou não verdade, envergonhe ou não o alvo a quem se dirige. A sua natureza descarada torna-o numa figura de quem se gosta de estar afastado, porque da sua boca pode sair – e sai de facto – qualquer coisa. Por isso, não vale a pena correr riscos e optar por ter os descarados nos círculos íntimos de convívio. É de crer que se tornem mais comedidos com quem os trate bem. Tomam-se por sinceros, quando efetivamente o que dizem pode bem pôr em causa a integridade de uma dada pessoa, expondo-a ao olhar e aos ouvidos de toda a gente. Contrariamente à sugestões por mim deixadas nos textos antes publicados, acho que é prudente termos o Descarado por “amigo”. Ganhamos ambos com isso.
Rui Tavares de Faria
Professor e Investigador
O Enredador é o tipo ético que ocupa o oitavo lugar na lista dos caracteres humanos de Teofrasto. Não se trata de uma palavra com a qual o leitor do século XXI não esteja familiarizado, em particular o micaelense, que verá, na descrição do autor grego, a imagem do conhecido “enredeadeiro”. Este último termo não existe nos dicionários da língua portuguesa; aceita-se a forma “enredadeiro”, talvez por a outra (o “enredeadeiro”) ser nossa, de São Miguel, e, pelo que pudemos apurar, das outras ilhas açorianas também. Da sua morfologia gramatical consta o nome “enredo”, que significa trama, narrativa ou ação, no âmbito dos estudos literários, e historieta, imbricada e digna de mexerico, no âmbito da cultura popular, muito particularmente da açoriana.
De acordo com Teofrasto, “a enredação é uma invenção de palavras e factos falsos, que o enredador pretende…” (Char. 8.1). Nada mais atual, portanto. Analisando a definição do autor helenístico, ao enredador cabe o papel de lançar rumores, florear boatos, fazer mexericos, sempre na base do que não corresponde à verdade. Nos Caracteres, esta figura é caracterizada como sendo alguém que busca obter dos outros novidades para, em seguida, as divulgar de modo deturpado, mas, assinala Teofrasto, “a fonte das suas histórias é sempre um tipo que ninguém poderá contestar” (Char. 8.5). O mesmo é dizer que o enredador falseia a informação que ouve ou recebe e não deixa de identificar a proveniência do enredo falso, numa clara tentativa de se ilibar da gravidade do que lhe sai pela boca fora.
Na atualidade, contamos com um número assaz avultado de enredadores. Abordam-nos com a novidade, que normalmente nos surpreende através de um “então sabias que…”, e rematam com um “foi fulano quem me disse.” Somos confrontados com indivíduos e situações dessas N vezes, seja no local de trabalho, seja num dado espaço social, seja até em casa. A atuar em qualquer um desses domínios há os enredadores convictos do seu mau carácter (há-os, de facto!) e os que se deixam levar, ingénuos, pelas falsidades que lhes dizem ou transmitem e, procurando fazer conversa, nem que seja de circunstância, acabam envolvidos involuntariamente na rede do disse-que-me-disse.
Além de se ocupar da dissimulação das histórias que lhe contam, o enredador também tem por hábito divulgar, segundo Teofrasto, a novidade a toda a gente. Apesar de lhe dizerem “Guarda só para ti o que sabes”, ele “vai, numa correria, contar a mesma história à cidade inteira.” (Char. 8.10). Ora este comportamento é também característico do mexeriqueiro, aquele que, por não ter vida própria ou por a sua própria vida ser desinteressante, vazia ou valer pouco, passa o tempo todo a “levar e trazer”, ou seja, ouve dum lado e logo o transmite a terceiros e por aí fora. O enredador cria, promove e torna complexa a rede de enredos que, num instante, se converte num jogo de enganos, numa panóplia de intrigas falsas de que sai amiúde ileso, porque não esquece de identificar ou nomear, ainda que sem certezas, a fonte do mexerico, que é alguém incontestável.
Incrível é apercebermo-nos de que, nos dias de hoje, quando todos se queixam de falta de tempo, sobretudo por razões de ordem profissional, ainda há quem tenha disponibilidade para vestir a pele de enredador. Ironias da contemporaneidade que refletem um hábito tão antigo quanto o próprio homem: a mexeriquice, a enredação. Do conjunto de atitudes que podemos tomar perante a abordagem de um enredador está a sugestão educada do “Mete-te na tua vida!” ou a pergunta brusca “Que tens tu que ver com isso?”. Nem sempre desarma a intenção curiosa do enredador, mas, ao menos, estamos em crer que reduz a energia de enredar a todo o tempo e com toda a gente.
Se, para alguns, este tipo humano revela a falta de sensatez do indivíduo, para outros, é uma fonte de informação que desmerece o rigor dos meios de comunicação social. Neste sentido, instala-se uma espécie de rede paralela, a dos enredadores-mexeriqueiros, caracterizada por uma série de conexões que se querem necessárias a certos indivíduos para que tomem certas medidas ou cheguem a determinadas conclusões. Pensemos no cenário do nosso espaço profissional. Quantas vezes não nos questionam, com falinhas mansas, sobre o que pensamos acerca de um dado assunto ou sobre que ideia temos formada acerca de um tal colega? Quantas vezes não nos perguntam coisas das nossas vidas pessoais por detrás de um simpático, mas falso, “estás bem”? Quantas vezes um colega nos aborda para dar conta dos seus queixumes para de nós obter uma anuência comprometedora acerca de outros? É o enredador a encher o seu poço de enredos para logo o esvaziar nos primeiros ouvidos de quem estiver por perto, à sua espera.
Trata-se, na verdade, de um tipo humano francamente comum o enredador. Quando menos esperamos, temo-lo à nossa beira para contar o que ouviu de não sei quem para pôr em causa o que disse outro não sei quem. Nós, ouvindo-o e acenando-lhe com a cabeça, mostrando o interesse e a atenção de um interlocutor comum e educado, acabamos por nos ver enredados nas suas malhas e, sem contar com o desfecho dos mexericos, ainda terminamos na cadeira do réu, do mau da fita, porque, dada a ausência de escrúpulos e de carácter do enredador, até podemos ser nós os identificados como a fonte da história que, falsa e floreada, é divulgada pelo enredador a toda a gente.
Rui Tavares de Faria
Professor e Investigador
Depois de, por razões várias, termos dado férias aos Caracteres, de Teofrasto, eis que, em consonância cronológica com o regresso às aulas, voltamos a dedicar este espaço à recriação modernizada – e bem-disposta – dos tipos humanos que compõem o tratado ético do discípulo de Aristóteles. E, após dois meses de silêncio, nada como abordar o “Parlapatão”, o sétimo retrato da obra de Teofrasto. É designação do conhecimento geral o termo “Parlapatão” que nomeia esta figura humana e que a tradutora escolheu como sendo ilustrativo, em língua portuguesa, do nome grego “Λαλιά” (laliá), onomatopeia sugestiva “do efeito de um desarrazoado verbal que soa a um ininterrupto e ininteligível la-la-la”, segundo as palavras de Maria de Fátima Silva.
De facto, também em português a palavra “Parlapatão” tem na sua base morfológica a terceira pessoa do singular, no presente do indicativo, do verbo “palrar”, que se aplica ao ato de articular sons imperfeitos ou difíceis de perceber, o mesmo é dizer incompreensíveis à audição, e o nome “patão”, que tanto pode designar um tipo de calçado rústico aberto no calcanhar, como pode ser o aumentativo da espécie aquática pertencente à família anatidae a que chamamos “pato”. A considerar esta última aceção, o “Parlapatão” é aquele indivíduo que, à semelhança de um grande pato, grasna “a torto e a direito”, tornando-se, por isso, incomodativo e distinto do tagarela, outro dos caracteres de Teofrasto sobre o qual já aqui escrevemos.
Ora, o autor grego diz que “a parlapatice, se se lhe quiser encontrar uma definição, é uma espécie de incontinência do discurso” (Char. 7.1.), ou seja, é a verbalização descontrolada por parte de alguém que, conforme o caracteriza Teofrasto, interrompe tudo e todos para fazer valer a sua voz, tenha ela ou não enquadramento no conversa em que se intromete sem escrúpulos: “seja o que for que lhe diga alguém que o encontra por acaso, ele salta logo a reclamar que não é nada disso, que ele é quem está bem por dentro do assunto, e que, se se lhe quiser prestar atenção, se ficará ao corrente do que aconteceu.” (Char. 7.2.). Seguramente o meu caro leitor já recuperou da sua memória os parlapatões com quem se cruzou ao longo dos tempos. Oh! Quantos há! São uma espécie de mexeriqueiros especializados, detentores do conhecimento (quase) total acerca de qualquer assunto ou pessoa. Por vezes, são-nos úteis, diga-se a verdade, mas, na maior parte das situações, tornam-se incomodativos, impertinentes e cansativos. Teofrasto refere que o “Parlapatão” recorre amiúde ao argumento “É-me difícil estar calado!” (Char. 7.9.); e a nós? Não é igualmente ou tão mais difícil estar de ouvidos abertos à verborreia que sai da boca de um incontinente discursivo?
Por outro lado, nos dias que correm, usa também a máscara de “Parlapatão” o indivíduo mais solitário. Como passa grande parte do seu tempo sozinho e isolado (opção ou imposição?), sem falar com ninguém, mal se abeira de quem quer que seja solta a língua e não se cala; “se alguém lhe diz que são horas de ir andando, ele vai atrás e acompanha o sujeito até à porta de casa.” (Char. 7.6.) E o pior é quando se convida a entrar, não só para continuar a palrar e a palrar, mas também para se sentar à mesa daquele que o foi ouvindo (ou não) o caminho todo até ao seu domicílio. Notamos que há cada vez mais parlapatões desta espécie. E quando não nos abordam frente a frente, tentam impô-lo por telefone. O objetivo, que é fazer-se ouvir a todo o custo, cumpre-se também nesta modalidade intercomunicativa. O efeito é o mesmo: a conversa resulta em cansaço e a sugestão, da nossa parte, o importunado, de uma despedida leva o “Parlapatão” a insistir num dado assunto ou a avançar para um novo tema para nos manter em linha.
Se nos propuséssemos fazer uma analogia entre o “Parlapatão” e outros tipos éticos, encontraríamos uma multiplicidade de opções, porque ele é a personificação do aborrecimento, da imodéstia, da falta de noção, enfim. Das sugestões que nos poderiam ocorrer, em matéria de prevenção do contacto com este carácter, o uso frequente de auriculares parece-nos a mais acertada – e engraçada. O meu caro leitor já se apercebeu de que, nas mais variadas ocasiões (estar no local de trabalho procurando concentração, andar de avião de forma relaxada, estar a caminhar ou até aguardar por uma consulta na sala de espera), o uso de phones, mesmo que não se esteja a ouvir música, revela ser o melhor repelente dos parlapatões? É verdade. Esteja ele, o “Parlapatão”, em qualquer uma situações antes apresentadas entre parênteses, sentado ao nosso lado, se nos vir de ouvidos tapados, tem ao menos o discernimento de não nos dirigir a palavra. É certo que pode tocar-nos no ombro ou no braço ou procurar um encontro de olhar para abrir, sem hesitar, a boca, mas temos sempre a opção de fingir que não é connosco.
Além desta hipótese e tendo em conta o grau de familiaridade que tenhamos com o “Parlapatão” que se aproxima de nós e nos interrompe como se fosse mal-educado (que também pode ser, mas estamos em crer que a parlapatice será, igualmente, uma certa patologia psíquica por identificar), podemos sempre proceder do mesmo modo como ele se nos dirige, isto é, não o deixamos falar, cortamos-lhe a palavra, elevamos a voz, usamos da mesma incontinência discursiva de que ele padece para lhe fecharmos a boca. Este cenário, que pode converter-se num episódio hilariante, pretende demonstrar que a solução de um dado problema, como é o de lidar com um “Parlapatão”, passa muitas vezes por um mecanismo de reflexo, o passar o feitiço para o feiticeiro. Aí reside, pensamos nós, um antídoto eficaz para afastar do nosso sossego não só os parlapatões, mas também todas as espécies humanas que se nos afiguram nocivas, voluntária ou involuntariamente.
Rui Tavares de Faria
Professor e Investigador
Para a comemoração do 400.º aniversário da morte de Luís Vaz de Camões, o Teatro Nacional D. Maria II – que volta a abrir portas em 1978, renovado quase na íntegra, depois de ter estado encerrado desde 1964, por causa do incêndio que praticamente o destruiu – encomenda a Natália Correia uma peça teatral que celebre a vida e a obra do nosso Poeta maior. A autora açoriana aceita o desafio e escolhe para título do drama o primeiro verso de um bastante conhecido soneto de Camões: “Erros meus, má fortuna, amor ardente”, no qual, dizem alguns hermeneutas da lírica camoniana, parece estar sintetizada, em linhas gerais, a vida do autor de Os Lusíadas.
Certo é que, embora certas questões tenham vindo a ser aclaradas relativamente aos dados biográficos de Luís Vaz de Camões, ainda persistem dúvidas quanto à cronologia daquele que cantou o amor em todos os tons e dimensões. Não há testemunhos explícitos que permitam biografar, com o rigor da atualidade, um dos nomes maiores da literatura portuguesa e, dada esta carência, vão sendo desenvolvidas extrapolações a partir da sua obra, vão sendo inventadas e reinventadas histórias acerca da sua vida e o mito sobre a figura de Camões vai ganhando forma. Tanto assim é que, ainda hoje, a ideia que se tem do Poeta apresenta feições fantasiosas, como se ele fosse um herói mítico, uma espécie de super-homem, que suporta, numa das mãos, a espada e na outra, a pena com que escreve a sua poesia.
Ora, a peça de Natália Correia, Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente, que acabou por ser levada à cena apenas em 1988, por questões orçamentais do estado no atinente à cultura (o problema de sempre!), é mais um exemplo de reescrita do(s) mito(s) que gravita(m) à volta da figura de Camões. Como afirma Armando Nascimento Rosa na introdução à recente edição da Obra dramática completa de Natália Correia, da chancela da Imprensa Nacional da Casa da Moeda, “Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente, no seu romântico recorte, parece partir de uma conceção de apoteose operática, que remete o espectador/leitor para um legado de feição wagneriana, no qual o poeta é leitmotiv mitocêntrico num espetáculo grandiloquente que o celebra” (2023, p. 129). Na verdade, conhecedora da obra do Poeta de quinhentos e do que, ao longo dos séculos, se foi escrevendo (e inventando) acerca da sua vida e da sua produção literária, Natália Correia recupera e recria o Camões pinga-amor, o Poeta de corte que canta e seduz damas e donzelas, o guerreiro que perde o olho direito no campo de batalha em defesa de Portugal, o errante que viaja pelo Oriente e regressa, velho, triste e miserável, à pátria lusitana para entregar a El-Rei Sebastião a sua obra maior.
Visto neste prisma, o retrato de Camões, tal como concebido no e pelo projeto nataliano, corresponde à imagem com que a tradição pintou o Poeta; não há novos elementos e, no universo da ficção dramática, a verdade histórica – exista ou não – pode não interessar ao artista. Assim sendo, segundo referem António Moniz e Olegário Paz, “transcendendo as intrigas palacianas (rivalidade com Pedro de Andrade Caminha) e as peripécias amorosas, a figura humana de Camões e a imortalidade do seu génio são as tónicas fundamentais desta obra dramática, difícil de classificar, na medida em que serpenteia entre a trivialidade e a jocosidade da comédia e a profundidade e a tensão humana dos grandes conflitos trágicos, tendo como base o percurso bibliográfico do próprio poeta e o contexto histórico e cultural em que viveu.” (In Ler para ser: percursos em português […], 1993, p. 135)
Mas Natália reserva-nos subtilmente outra intenção que subjaz à sua peça, porque “falar de Camões e do seu tempo significa também para ela falar, simbolicamente, do papel e do perfil humano do poeta na sociedade de hoje; isto é, falar de si mesma enquanto artista e cidadã interventiva” (Armando Nascimento Rosa, 2023, p. 125) e, neste sentido, Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente adquire outros contornos que revelam originalidade artística. Camões é, portanto, o paradigma. Tal como ele viveu infortúnios de ordem vária e acabou não sendo devidamente reconhecido em vida, assim sucede com muitos poetas de todos os tempos. Natália e os seus contemporâneos não são exceção. Através desta comparação, a dramaturga pensa conseguir transpor para a arte teatral a figura do Poeta, e não necessariamente o homem que foi Camões. Reinventando o que a tradição lhe oferece, Natália Correia presta uma homenagem à essência poética e artística da obra camoniana.
Assim, apesar de o retrato que pinta de Camões em Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente corresponder grosso modo à imagem que ainda hoje persiste da pessoa e da entidade do autor da epopeia nacional, a mensagem veiculada pela peça é a de que se deve enaltecer a figura do Poeta na sua essência artística. Tomado por paradigma, Camões merece – à semelhança de todos os discípulos de Orfeu – o reconhecimento de todos pelo seu talento e pelo que fez à pátria portuguesa, imortalizando-a por via da poesia e da epopeia Os Lusíadas. No fundo, Camões seguiu à letra a recomendação de Horácio, poeta latino do século I a.C., e “exegi[t] monumentum aere perennius” (“ergueu um monumento mais perene que o bronze”, o mesmo é dizer que edificou uma obra imortal).
Rui Tavares de Faria
Professor e Investigador
Prosseguindo com a nossa leitura moderna – ou modernizada – dos perfis éticos registados por Teofrasto nos seus Caracteres, eis que se nos oferece, como sexto tipo humano, o impudente. Não é termo muito comum do vocabulário do falante do século XXI, muito provavelmente por desconhecer o respetivo significado. Embora se identifique na raiz da palavra o morfema “pud-”, do qual derivam termos já mais conhecidos, como “pudor”, “púdico” ou “impúdico”, a verdade é que, segundo o autor grego, a “impudência” é um conceito mais amplo – e complexo, acrescentamos nós. Conforme se lê em Caracteres, “a impudência é a tolerância para com atos ou palavras condenáveis.” (Char. 6.1.) Por outras palavras e à primeira leitura, são impudentes, por exemplo, os indivíduos que apoiam genocídios, os que repudiam as minorias étnicas e sociais, os que apelidam de preguiçosos são migrantes, os que, numa escala mais restrita, secundam tudo quanto vai contra os Direitos Humanos.
Mas Teofrasto, querendo imprimir um tom de paródia às caricaturas que desenha no seu tratado ético, apresenta-nos feições, comportamentos e atitudes do impudente que tocam a comicidade e nos roubam umas gargalhadas. “Eis o perfil do impudente. Faz juramentos a torto e a direito; reputação, da pior; da difamação de gente importante, sempre pronto.” (Char. 6.2.) Ou seja, trata-se de um indivíduo mau reputado e difamador, de quem se deve sempre desconfiar, uma vez que da sua boca sai (de) tudo. Tanto se lhe dá enxovalhar A, porque A é cumpridor daquilo que lhe é devidamente instruído, como se lhe faz dizer mal também de quem instrui A. O impudente encontra, por mero acaso, a mulher do vizinho a conversar com um fulano que não o marido e, certamente no mesmo dia, já boa parte do prédio saberá pelas suas palavras – as do impudente, claro – que o tipo de terceiro esquerdo tem um bom par de galhos na testa!
Outro traço de carácter que Teofrasto elenca diz respeito à capacidade que o impudente tem para aceitar trabalhos duvidosos, alguns dos quais hoje tidos por crimes puníveis por lei. Ele “vira-se bem como estalajadeiro, chulo e cobrador de impostos; não há atividade, por mais indecorosa que seja, que ele recuse; ei-lo pregoeiro, magarefe ou jogador de dados.” (Char. 6.5.). Transpondo para o nosso quotidiano pelo menos os três primeiros atributos apontados por Teofrasto ao impudente do seu tempo, que indivíduos ou instituições lhes correspondem atualmente em matéria de impudência? Pois bem: os estalajadeiros são os senhorios que inflacionam a rendas dos imóveis que têm alugados e não declaram um centavo às finanças; os chulos são, por exemplo, os trabalhadores da construção civil que, perante uma clientela ignorante em matéria de obras e tarefas afins, cobram balúrdios pelos seus serviços, algumas vez mal feitos, outras tantas feitos à pressão, porque já têm à sua espera outro cliente, o qual será, obviamente, chulado; o cobrador de impostos é a nossa Autoridade Tributária, um bom exemplo de impudência, se tivermos em conta as questões da fiscalidade praticada pelo governo português. E muitos outros casos temos ao alcance do nosso olhar, mas, se nos centrássemos apenas neles, retiraríamos o tom jocoso que aos nossos textos costumamos ou tentamos imprimir.
Enquanto “fulanos que atraem e juntam à sua volta multidões; e que, com voz de trovão, começam a disparatar e a interpelá-las” (Char. 6.7.), os impudentes também vestem a pele do “palhaço demagógico” e, nesta função, é inevitável não nos passarem pela cabeça episódios das campanhas políticas que vão tendo lugar no nosso país, e na nossa região. Há de facto quem consiga, mais do que atrair, seduzir multidões e submetê-las, pela demagogia, às mais diversas ideologias partidárias. Nesses casos, o impudente toma-se ora por um Jesus da Galileia do antigamente, que incita, agora guloso, o “deixai vir a mim as criancinhas”, tendo em mente os mais variados intuitos, ora por uma sereia dos mares de outros tempos, os de Ulisses, que enfeitiça, pelo canto, os marinheiros mais fragilizados, desviando-os do rumo determinado da viagem, ora pela cantora brasileira Daniela Mercury e entoa, a grandes brados, o famoso “Dona Canô chamou! Eu vou!”. Qual o resultado desses ajuntamentos, mobilizados pela voz tonitruante do líder impudente? Disparates!
Quando deixam de ser novidade ou quando cessa o interesse de os seguir ou de lhes dar ouvidos, os impudentes tornam-se, no dizer de Teofrasto, “enfadonhos”, porque previsíveis nos seus atos e porque a sua finalidade é inevitavelmente a mesma: “de língua sempre pronta para a maledicência.” (Char. 6.10.) O que tem sucedido, pois, nas bancadas das nossas assembleias de deputados eleitos? O que é habitual acontecer nos debates políticos que os canais televisivos transmitem em direto, aquando das campanhas eleitorais? Ataques e contra-ataques, invetivas, insultos, injúrias, “lavar roupa suja”, como se diz popularmente. É isso o exercício político?! Não é necessário recuarmos ao século V a.C. para recordarmos como nasceu a democracia em Atenas, daí tirando bons paradigmas de cidadania; perante aquilo que nos tem sido dado a ver e a ouvir, no quadro do exercício político português, é legítimo considerar-se que vivemos num estado, não de direito, mas de uma impudência atroz.
O que fazem os candidatos aos altos cargos políticos? O que dizem os cabeças de lista dos partidos portugueses? Fazem “juramentos a torto e a direito”. Que perfil ético apresentam e que estilo de vida têm certas figuras que passam a integrar a Assembleia ou outros poisos de relevância no quadro da cidadania portuguesa? Um perfil e um modus uiuendi bastante duvidosos, isso porque a sua “reputação” é “da pior”. De que meios se serve a maior parte desta corja política? Em primeiro lugar, “da difamação de gente importante”; em segundo, da demagogia e, em terceiro, da promoção do mau carácter. Em face do cenário exposto, é caso para se concluir que somos (des)governados por impudentes, indivíduos que toleram (e promovem) atos e palavras condenáveis e, perante isso, torna-se-nos deveras difícil elencar medidas de combate para esse tipo humano, que se tem enrijecido na nossa sociedade. É este o retrato vergonhoso do Portugal da segunda década do século XXI, meu/minha caro/a leitor/a.
Nasceu em Ponta Delgada, no último mês do ano, mas foi na Ribeira Grande que cresceu. Define-se como “uma pessoa simples, de trato afável e defensor acérrimo do respeito”, considera-se “determinado, persistente e trabalhador”.
Na Universidade dos Açores licenciou-se em Português/Francês, mas ao Diário da Lagoa (DL) confessa que “queria ter ido para o continente estudar línguas clássicas”. O latim no ensino secundário permitiu-lhe descobrir a sua “paixão pela antiguidade greco-latina”, mas a “logística familiar” adiou o sonho. Começa a dar aulas de português e francês e a colaborar no departamento de ciências da educação da Universidade açoriana, tendo dado aulas em algumas escolas do maior concelho da região.
Em 2009, concluiu o doutoramento no ramo de Conhecimento em Literatura, especialidade de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto e, a partir daí, a sua vida de investigador ganhou impulso. Integrou o Instituto de Estudos de Literatura Tradicional da Universidade Nova de Lisboa, de 2010 a 2017, mas ao DL revela que havia ainda um sonho por concretizar. Voltou a estudar, aprofundar o grego antigo e o latim. “Licenciei-me em Estudos Clássicos na Universidade de Coimbra e, em seguida, por sugestão e estímulo de vários professores, iniciei um segundo doutoramento, precisamente em Estudos Clássicos, ramo de Poética e Hermenêutica, especialidades de literatura grega e história antiga”, explica.
Passou a integrar, a partir de 2018, o Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, e a partir de 2021, o Centro de Estudos Humanísticos da Universidade dos Açores, na qualidade de investigador integrado.
“Embora Coimbra tenha um lugar especial no meu coração, porque aí creio ter feito as minhas verdadeiras amizades pessoais, a ilha de São Miguel habita-me e é por isso que não saio definitivamente (por enquanto) desse paraíso verdejante e húmido”, assegura.
Rui Tavares de Faria é desde 2018 o impulsionador da iniciativa Jornadas de Estudos Clássicos que este ano soma a sexta edição. A iniciativa começou como parte do Plano Anual de Atividades da Escola Secundária Domingos Rebelo.
“Desafiei uma colega para, em conjunto, levarmos a cabo um evento que aproximaria o ensino secundário do universitário e vice-versa, envolvendo alunos e docentes dos dois níveis de ensino em torno de temas da Antiguidade Clássica”.
Mas a falta de algum apoio institucional levou a que a partir das Jornadas de Estudos Clássicos estas deixassem de fazer parte do Plano Anual de Atividades da escola Secundária e passassem a integrar o Projeto Artes Docendi do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra contando com o apoio da Direção Regional da Educação. A partir da quinta edição, o evento “libertou-se de instituições regionais, por falta de apoios e incentivos, naturalmente, e assumiu-se como um colóquio internacional exclusivamente dependente da Universidade de Coimbra”.
As VI Jornadas de Estudos Clássicos, realizaram-se na Biblioteca Patrimonial do Liceu Antero de Quental, em Ponta Delgada, escola onde também foi aluno.
“As Comissões Científica e Organizadora registam um balanço amplamente positivo, pela qualidade das intervenções, pela presença e envolvimento da comunidade educativa e pela qualidade do acolhimento com que todos foram recebidos pelo Conselho Executivo da Escola Secundária Antero de Quental”, relata o investigador.
“Este tipo de eventos constitui sempre um contributo importante para a comunidade académica. Os Açores têm uma universidade e várias escolas secundárias, tem de haver, penso, um diálogo mais aberto e constante entre as diversas instituições a quem cabe a formação escolar e académica dos nossos jovens”, realça.
Rui Tavares de Faria apresentou o seu último livro, intitulado O Escravo na Comédia Grega, inserido no Programa das VI Jornadas dos Estudos Clássicos por sugestão da Comissão Organizadora.
Trata-se de uma edição de autor, reduzida, portanto, ao número de 100 exemplares, e comparticipada, na ordem dos 50 por cento, por privados.
“Eu não tinha previsto uma apresentação pública para o volume, isso porque deveria ser feita por um especialista na área. Nos Açores, não há mais ninguém doutorado ou especializado em literatura grega antiga além de mim. Por mais imodesta que possa parecer esta consideração”, diz.
“Este é mais um trabalho da minha autoria que comprova a grande paixão que tenho pela Antiguidade Clássica, mais concretamente pela Grécia Antiga. É um mundo fascinante. É daquelas paixões que não esmorecem; uma vez ateadas, a labareda só se intensifica”, conclui.
Rui Tavares de Faria
Professor e Investigador
Sobre o complacente, o quinto carácter acerca do qual discorre Teofrasto, há uma série de considerações que aproximam este tipo ético da figura do bajulador, situação à qual fizemos referência no texto anteriormente publicado neste jornal, no passado dia 1 de março. Procuremos, então, não cair num discurso repetitivo, porque, se o autor grego retratou dois caracteres tão semelhantes em separado, quer isto dizer-nos que nos é, também, possível distingui-los ou, pelo menos, evidenciar alguns dos traços que os afastam, no âmbito da contemporaneidade.
A relação entre o bajulador e o complacente tem sido alvo de estudo por parte de uns quantos filólogos classicistas. Maria de Fátima Silva, em nota à sua tradução portuguesa do tratado do autor helenístico, esclarece-nos: contrariamente ao bajulador, há “um objetivo egoísta que, em Teofrasto, move o complacente: o desejo de ser agradável para obter popularidade ou influência. Logo, sem propriamente desejar vantagens materiais imediatas, o complacente pretende manter um relacionamento afável, e talvez proveitoso, com um círculo o mais agradável possível.” Por outras palavras, o complacente é o indivíduo que está sempre muito simpático e sorridente, que é solícito a toda a hora, e há de colher frutos doces dessa sua atitude. O seu comportamento torna-se, por vezes, de tal modo previsível que o tomamos, num segundo ou terceiro reencontro, como uma autêntica personagem plana, designação técnica para classificar, no âmbito dos estudos literários, a personagem cujo ethos não regista quaisquer alterações ao longo da ação da narrativa ou do drama.
No nosso entender, o complacente é aquele simpático irritante com o qual se deve ter certo cuidado. Chegamos mesmo a questionar a naturalidade e a veracidade da sua simpatia sorridente. E nessa nossa dúvida percebemos que, no fundo, se trata de uma figura pouco escrupulosa. Vejamos, mais ao pormenor, o que acerca dele escreve Teofrasto, para verificarmos a (segura) correspondência com a versão atual(izada) do perfil ético sobre o qual incide o nosso texto. Segundo o autor antigo, o complacente “vê um tipo ao longe e vá de cumprimentá-lo por ‘vossa excelência’; com reverências e mais reverências, dá-lhe um grande abraço e, sem o largar, acompanha-o por algum tempo, pergunta-lhe quando o voltará a ver, e só então, depois de mais alguns piropos, se vai embora.” (Char. 5.2.)
Estou certo de que o meu/a minha leitor(a) já se terá relembrado de uns quantos complacentes com quem se tenha cruzado – e ainda se cruzará. É o «ó su dotôr(a)» para cima, é o «ó su dotôr(a)» para baixo, uma autêntica roda dos ventos de «ó su dotôres» e «ó su dotôras», a Norte, a Sul, a Este e a Oeste. Portugal é, como alguém disse no passado, um país que não precisa de «su dotôres», porque já era, na altura, abundante em «su dotôres». Talvez seja também por isso que assume um desgoverno há umas boas décadas. O complacente, se não é «su dotôr», sabe como agradar o interlocutor que é (apenas) licenciado(a) e se toma por «su dotôr». Que júbilo! É o que faz usar, erradamente, a abreviatura ‘dr. (a)’, amiúde empregue para designar quem tem concluída uma licenciatura e enverga o título no cartão bancário ou na placa que o(a) identifica no local de trabalho. Doutores são os que efetivamente se doutoraram; também não são aqueles que, por importação linguística anglo-saxónica, vestem as batas brancas e nos cobram quase uma centena de euros para exercer, em 15 minutos, o mistério da medicina. Além das formas de tratamento, potentes armas discursivas na boca de um complacente, há também os cumprimentos enlaçados a sorrisinhos que, no rosto desse carácter humano, tocam a caricatura. Lá vem ele ao nosso encontro só para nos desejar ‘bom dia’ e saber se estamos bem de saúde. Quando isso sucede às segundas-feiras, não haverá quem não lhe queira “ir às ventas”! O complacente é o tipo que, no dizer de Teofrasto, não é simpático, ele “esforça-se por ser simpático” (Char. 5.3.), o que não é bem a mesma coisa, como sabemos. Sentimos que algo está mal, pois o olhar do complacente não condiz com o seu sorriso ou, então, a forma como cerra os dentes, enquanto sorri, denuncia a falsa simpatia que faz por esconder.
Se, num contexto agonístico de debate ou conversa acesa entre amigos/colegas, o complacente diz sim “não só à parte que apoia, mas também à contrária, para dar um ar de imparcialidade” (Char. 5.3.), o que sucederá quando tiver de tomar ele próprio uma decisão relativamente a si ou aos seus? Será através de um sorriso ou de uma anuência submissa que o complacente resolverá a situação de conflito ou confronto de ideias/opiniões contrárias? Pode, na verdade, vestir a pele de um “Maria vai com todas…” ou alistar-se como político “vira-casacas”. Voltando-nos, com efeito, para esta última alternativa, assinalaríamos (eu, pelo menos, assinalo), no cenário político do nosso país e das suas regiões autónomas, os complacentes que se sentam à direita, à esquerda e ao centro, assim como os que, antes, se sentaram à esquerda e, agora, se sentam à direita, ou vice-versa. Seria um jogo do loto com muitos números a descoberto, fácil e rapidamente cruzados, enquanto se assistia a outro jogo, o de quem se senta na cadeira, para ver quem apanha qual, à medida que a música vai sendo interrompida. Há, infelizmente, quem fique sempre de fora, isto é, nunca se senta. Para esses casos, há sempre remédio: funda-se outro partido político!
Não tenhamos dúvidas de que a complacência será sempre um traço de carácter intrínseco ao fulaninho e à fulaninha que chegaram onde chegaram, sendo ou não «sus dotôres», e, se o forem, serão abreviados, com certeza. Quando se diz e não se escreve – refiro-me ao «su dotôr(a)» – tomam-se todos por igual. Mas não são, não são todos iguais, complacentes, caros(as) leitores(as). Como sugestão de trato a ter com os praticantes dessa tendência ética, porque não abordá-los do mesmo modo e nos mesmos termos com que se nos dirigem? Acredito que o complacente, tendo a perfeita consciência do seu teatro diário, se dará conta de que algo está a correr mal. É um pouco como ‘virar o feitiço contra o feiticeiro’. Fica, ao menos, a ideia engraçada. Creio que se pode brincar com a complacência.