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Nuno Moniz, o investigador açoriano de Inteligência Artificial nos Estados Unidos que cresceu entre computadores

Para o investigador natural da ilha do Faial, “os Açores estão numa posição particularmente boa para explorar a IA” por exemplo nas áreas marinha, sismologia ou agricultura, diz em entrevista ao Diário da Lagoa

Nuno Moniz é professor associado de investigação na Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos da América © D.R.

Cresceu rodeado de computadores. Tirou licenciatura e mestrado em Engenharia Informática. Nuno Moniz, 37 anos, natural da ilha do Faial, começou em Portugal a sua carreira como professor e investigador e desenvolveu projetos premiados. Com a aplicação meuparlamento.pt recebeu um prémio internacional e outro nacional. Na sua tese de doutoramento, desenvolveu um método para antecipar a popularidade de conteúdo online, que lhe valeu o prémio Fraunhofer Portugal Challenge 2017.

Há cerca de dois anos, Nuno Moniz iniciou uma aventura nos Estados Unidos da América, onde investiga temas como o desenvolvimento responsável da Inteligência Artificial (IA),  automatização de previsão de casos e valores e privacidade de dados.

DL: Qual foi o seu percurso formativo?
Sempre tive um grande interesse por computadores. O meu pai tem uma informática no Faial. Durante o meu percurso inicial, acabei por ficar indeciso entre três áreas:música, história e engenharia informática. No fim acabou por ganhar engenharia informática. Era o amor mais antigo. Tirei licenciatura e mestrado em Engenharia Informática no Instituto Superior de Engenharia do Porto (ISEP).Ganhei uma bolsa da Fundação para a Ciência e Tecnologia para fazer o doutoramento e fi-lo na Universidade do Porto (UP). Acabei em 2017 e a partir daí continuei o meu trabalho enquanto investigador na INESC TEC. Comecei como professor convidado na Faculdade de Ciências da UP. Há três anos, comecei a explorar outras opções, principalmente fora do país. Aceitei uma posição na Universidade de Notre Dame, no Indiana, Estados Unidos da América (EUA). Estou lá agora como professor associado de investigação, no instituto particular Lucy Family Institute for Data & Society. Desde 2023 sou diretor de um centro conjunto com a Notre Dame-IBM Technology Ethics Lab.

DL: Que investigação realiza nos EUA?
A minha área de investigação, de forma geral, é a inteligência artificial (IA), mas olho para três coisas. A primeira é um tópico particular que se chama “aprendizagem desbalanceada”: como se pode automatizar a previsão de casos ou de valores que não são tão comuns. Olho também para problemas de privacidade de dados e para um tópico mais geral, que inclui várias questões ligadas ao desenvolvimento responsável da IA. Isso toca o aspeto prático da questão: como é que na prática se desenvolve tecnologia de IA que pauta por um guia de responsabilidade desde os seus momentos de desenho, desenvolvimento, progressão, até aos aspetos de interação.

DL: Em que outros trabalhos está envolvido?
Grande parte daquilo que tenho feito recentemente é o tipo de trabalho que realmente me entusiasma, para além do trabalho de organização e serviço à comunidade. O ano passado organizei a Conferência Portuguesa de IA na ilha do Faial. A nível de trabalho científico, estou a trabalhar com colegas da Universidade Católica da Croácia no conceito de modelação de memória, ou seja, investigar de que forma ferramentas como o ChatGPT podem modelar a nossa memória de momentos históricos.

Estou a desenvolver um projeto com o hospital oncológico infantil do México, que olha para um problema muito particular das comunidades indígenas. É difícil desenvolvermos trabalho quando não temos informação e dados sobre os problemas. Estamos a desenvolver um projeto que facilita a escolha da informação diretamente da fonte, ou seja, das comunidades indígenas do México para permitir que a comunidade médica perceba o impacto e situação das crianças que têm cancro. 

Tenho também desenvolvido alguns projetos mais académicos, com a unidade de investigação da IBM Research,  desde em transparência em IA, governança da IA, a nova geração de soluções para a IA, principalmente aquelas que tenham baixo custo energético.

DL: A IA pode ser aplicada em inúmeras situações que podemos não ter noção?
Temos uma tendência para sermos muito positivos com a tecnologia. Acabamos, muitas vezes, por nos deslumbrar com feitos tecnológicos. A IA tem um potencial imenso para ter um impacto fundamental numa série de áreas da nossa vida coletiva que são urgentes, desde a medicina, agricultura, clima, mas muitas vezes não são essas as áreas às quais somos interpelados com múltiplas notícias sobre como esse tipo de tecnologia pode nos ajudar a melhorar. Depois, há toda uma série de questões com a IA que têm de ser reconhecidas: a IA quando desenvolvida e utilizada e posta disponível ao público em geral, quando não é feita de forma ponderada, responsável e humilde, pode ter impactos societais graves e alguns deles irreversíveis. Acho que esta é a adolescência da IA: aquele encontro com a realidade e perceber que não estamos sozinhos no mundo e que aquilo que fazemos tem impacto concreto, por isso já não podemos permitir certas atitudes. Esse é um debate que assistimos hoje. Não é só discussão pública, mas também uma legislação e regulamentação não só a nível nacional como internacional. Acho que não há nenhuma organização internacional que não esteja a ponderar de que forma é que a IA poderá impactar o seu dia a dia e a operação.

DL: Acredita que a IA representa algum perigo para a humanidade?
Não acho que seja um perigo para a humanidade, por definição. Isso faz parte de uma narrativa sem qualquer base prática. Estamos a falar de algo que é incapaz de relatar histórias ou factos históricos de forma correta; que tem dificuldade, às vezes, em fazer matemática simples. Estamos muito longe de qualquer catástrofe a nível de IA, mas isso não quer dizer que não existem perigos concretos, hoje. O que muitas vezes ouvimos sobre os perigos da IA é uma distração completa. Os problemas dessa tecnologia são mais difíceis de discutir, porque existem questões concretas, por exemplo, sobre o ambiente.

DL: Poderemos vir a ter cidades geridas completamente por IA?
Coloco essa questão na categoria de distrações. No entanto, na gestão das cidades, existem imensas oportunidades de como a IA pode ser utilizada de uma forma extremamente positiva. Por exemplo, em antecipar situações de bloqueio ou problemas do dia a dia das cidades, desde focos de poluição e trânsito, até no desenho de políticas públicas. Precisamos de olhar para as questões concretas de como a IA é útil ou inútil/perigosa tendo em conta aquilo que está a ser desenvolvido hoje. Esses problemas são gravíssimos. Estamos num frenesim de construção de centro de dados e centros de computação avançada, de uma forma completamente massiva, que tem um impacto muito considerável no ambiente e que é perigoso para a sociedade.

DL: Como ainda poderemos aplicar a IA aos Açores?
Penso que os Açores estão numa posição particularmente boa para explorar a IA. Os Açores têm desde a parte da biologia marinha, sismologia, dependência da agricultura, enfim. Existe uma série de domínios muito práticos nos quais a IA pode ser explorada.  Há muitas coisas que podem ser feitas, por exemplo, ao nível de perceber melhor aquilo que é a realidade das pescas nos Açores, os ciclos das espécies que nos são muito queridas e economicamente vantajosas. Também, em termos da sua operacionalidade, a nível do governo e das suas instituições. No entanto, temos de ter sempre presentes as limitações de uma região como os Açores e Portugal num todo: a restrição de fundos para uma exploração mais ambiciosa. Já existe evidência suficiente à volta do mundo sobre os benefícios de IA em regiões como os Açores, para haver uma discussão muito guiada e particular sobre que coisa explorar. Tenho a expetativa que esse debate, se ainda não aconteceu ou está a acontecer, que venha a acontecer porque o potencial positivo é claro e é muito entusiasmante.
Acho que em relação aos Açores, seria extremamente interessante perceber até que ponto podemos formar os nossos próprios cientistas nesta área. Existe um potencial enorme de exploração concreta e eficiente de IA em problemas que encontramos nos Açores, só que nós não podemos estar reféns de “fornecedores”. Temos de ter a capacidade autónoma de investigar e desenvolver soluções para os nossos problemas e a Universidade dos Açores seria uma pedra basilar.

DL: Está a sugerir criar-se um curso na área da Inteligência Artificial nos Açores?
Seria um passo entusiasmante na direção de termos iniciativa de explorar como esta área de investigação e de aplicação pode ser benéfica para os Açores.

DL:  A IA ainda não está a ser bem explorada na região?
Tendo em conta a informação que tenho, não. Imagino que não seja, muitas vezes, por falta de vontade, mas pelas limitações orçamentais. No entanto, como tudo na vida, fazemos investimentos. No que toca à nossa posição internacional vantajosa, para áreas como a biologia marinha, existe aí uma série de interseções que podem ser exploradas e estão a ser. Espero que venhamos a ver os frutos disso e que as pessoas expandem essas capacidades dos Açores de fazer investigação e desenvolvimento a nível da IA, ao nosso ritmo e ao nosso tamanho, claro.

“Sem a leitura, é a própria linguagem que empobrece”

Urbano Bettencourt: escritor, professor, o homem das letras em entrevista ao Diário da Lagoa. Numa conversa descontraída fala-nos do seu percurso, da sua escrita, da cultura açoriana e da Língua Portuguesa, no ano em que se celebra os 500 anos de Camões

 Urbano Bettencourt nasceu em 1949 na ilha do Pico, mas vive há 40 anos em São Miguel © CLIFE BOTELHO/ DL

Convidamos Urbano Bettencourt a visitar o Diário da Lagoa e numa longa conversa descontraída, começa por contar que nasceu em 1949, “no extremo leste da ilha do Pico, do lado oposto à ilha do Faial, virado para São Jorge”, na freguesia da Piedade, Lajes do Pico, na zona do Calhau, junto ao mar.

Foi na Piedade que passou parte da sua infância, nos anos 50, em tempos que conta terem sido “de poucos bens” em que as pessoas “sobreviviam em função daquilo que iam produzindo” no cultivo das terras e do que o mar dava. O pai trabalhava na construção naval levando a família a decidir mudar-se para Santo Amaro.

Aos 11 anos, por intervenção do pároco, seguiu para o seminário em Ponta Delgada, na ilha de São Miguel, para prosseguir os estudos, onde ficou dois anos até ir para o seminário de Angra, na Terceira, onde esteve mais sete anos. Após os estudos foi para Setúbal numa “decisão pensada”. Em território continental trabalhou no escritório de um despachante alfandegário, mas em 1971 foi chamado a cumprir serviço militar em Mafra, depois em Évora com uma passagem por Tancos onde fez um curso de Minas e Armadilhas. Em julho de 1972 já “estava de malas feitas”, rumou à Guiné-Bissau onde esteve dois anos. No total, três anos de serviço militar obrigatório.

A Revolução dos Cravos ditou o fim da guerra, trouxe-o de volta ao Pico, por um par de meses, mas optou por se mudar novamente para território continental, desta vez para Lisboa, para “mudar de ares, trabalhar e estudar”, de 1974 a 81. Acaba, ainda, por regressar a Setúbal por mais três anos para exercer a docência. Em 1984, com a esposa e a primeira filha, Sara, decide regressar aos Açores, fixando-se em S. Miguel. Aqui, decorreu a parte substancial da sua atividade profissional (na Escola Secundária Antero de Quental e na Universidade dos Açores), aqui nasceu a sua segunda filha, Mariana.

Desde esse regresso, já se passaram 40 anos até esta entrevista em que nos fala do seu percurso, da sua escrita, da cultura açoriana e da Língua Portuguesa, no ano em que se celebra os 500 anos de Camões.

DL: Lançou-se na escrita por volta de 1970. Como dava a conhecer a sua escrita?
Havia alguns jornais nos Açores que tinham suplementos literários. E na Terceira houve um suplemento que ficou como referência, o “Glacial” do jornal União de Angra do Heroísmo, de 67 a 74. Publiquei também no jornal “O Dever”, do Pico. Em 1977 criamos, em Lisboa, a revista “A memória da água-viva” — eu, o meu amigo Santos Barros e um grupo de pessoas congregadas em torno do Grupo de Intervenção Cultural Açoriano; além da revista editámos livros de poesia e de ensaio, e organizámos sessões com escritores e exposições culturais. Publiquei muito na revista; depois, no início dos anos 80, o Santos Barros dirigiu o suplemento “Contexto” no jornal “Açores” e colaborei muito com ele, a partir ainda de Setúbal. A revista “Atlântida” acolheu também textos meus, a nível ensaístico.
Por tudo isso, no começo dos anos 90, o Professor José Martins Garcia sugeriu que me contratassem para substituí-lo na docência de Literatura Açoriana, que ele introduzira no plano curricular de alguns cursos do Departamento de Línguas e Literaturas Modernas, da Universidade dos Açores.

DL: Quando lançou o seu primeiro livro?
Em 1972, o “Raiz de mágoa”, e em Setúbal, por insistência de um amigo meu, Manuel Pereira de Medeiros, que era de Água Retorta e foi viver para Lisboa e depois para Setúbal onde comprou uma livraria que se transformou depois na grande livraria de Setúbal, a Culsete, que ainda existe embora com outros proprietários; ele próprio se encarregou da execução gráfica do livro.
O primeiro livro serve para marcar um espaço, à espera de outros que eventualmente venham a surgir. O segundo livro, também de poesia, foi já em Lisboa naquele Grupo, em 80, intitulava-se “Marinheiro com residência fixa”. Depois em 87 já em São Miguel publiquei o “Naufrágios Inscrições” já com outra qualidade gráfica e fui escrevendo, derivando depois para o ensaísmo. Entre livros maiores e menores, de prosa, de poesia e de ensaio, são cerca de 25. Neste momento, estou aposentado mas continuo a investigar, a escrever e a comunicar.

DL: O seu último livro publicado foi o “Até que o Mar se Retire”, em 2023. Desde então está a trabalhar em mais algum livro?
Em livro novo, não. Mas acaba de sair, em terceira edição (Companhia das Ilhas, Lajes do Pico), “Santo Amaro sobre o mar», com desenhos de Alberto Péssimo (um pintor natural da Ilha de Moçambique e residente no Porto) – uma narrativa entre a evocação e a invenção, sobre Santo Amaro, a minha freguesia adotiva no Pico.

DL: Sente que a cultura açoriana é valorizada devidamente, ou vai continuar a ser para nichos?
A cultura é um tecido composto por manifestações diversas e campos diferenciados. E, se repararmos bem, alguns desses campos (talvez por serem encarados como mais «acessíveis» e capazes de atingir um público mais abrangente – dentro de uma simples lógica da quantificação e da estatística), têm uma circulação e uma visibilidade que não assistem a outros; à sombra disso, verifica-se por vezes uma traficância de produtos de qualidade muito duvidosa que passam e não deixam qualquer mais-valia em termos de valorização coletiva e individual.
Em todo o caso, há experiências que vão tendo lugar em diversos pontos dos Açores e constituem bons exemplos da cultura como processo de criação e abertura a outros horizontes e modos de ver e pensar. Penso, no entanto, que falta ainda uma rede de suporte que favoreça a circulação dessas propostas e de outras dentro da própria ilha e entre as ilhas.

DL: No ano em que se comemora 500 anos de Camões, como olha para o estado da literatura e da língua portuguesa?
A literatura segue o seu caminho e é sempre difícil atender a tudo num momento específico (mesmo hoje, quando lemos os chamados clássicos, fazemo-lo tendo em conta uma seleção realizada pelas instituições e pelo tempo). Além disso, há aqueles autores que me são próximos e a que regresso com frequência.
Tento, na medida possível, acompanhar e ter uma informação elementar sobre nomes que vão surgindo, os rumos e preocupações da sua escrita, mas não posso ter a pretensão de os ler a todos nem tudo o que escrevem.
O ensino da Língua Portuguesa materna tem hoje meios e práticas que não tinha há muitos anos. Isso devia influenciar mais o modo de utilização da língua. Sempre houve português informal, mas usava-se em contexto informal. Hoje, o informal está por todos os lados, nas televisões, nas redes sociais, e a incorreção atinge mesmo órgãos de comunicação que, pelo seu estatuto, tinham obrigação de respeitar mais a língua que falamos; há situações em que, por ignorância ou desleixo, a língua portuguesa acaba notoriamente maltratada.
Nas redes sociais, aparecem textos interessantes e de leitura recomendável, vindos em parte de pessoas a pensar e comunicar noutros meios mais exigentes; mas ao lado disso surgem também textos em que a expressão e a comunicação sofrem tratos de polé (para não falar de outros aspetos de conteúdo e atitude cívica, que é já uma outra questão).

DL: Sente que já se realizou?
Não. Vamos sempre à procura de algo, de outro caminho, uma tentativa de consolidar alguma coisa que ficou. Vamos experimentando outras coisas e vendo como é que elas interagem connosco e como é que nos sentimos em relação a elas. Isso é um processo contínuo. De qualquer modo, uma coisa que procuro sempre é estar atento ao mundo próximo e à literatura e ver em que medida essa literatura nos serve para a nossa própria expressão e visão do mundo.

DL: Para melhorar o estado atual da “língua maltratada”, o que recomendaria a um jovem?
O que posso desejar é que cada um tenha o cuidado com o meio com o qual se apresenta e com que se constitui enquanto ser falante. Há muitas formas de passar por aí, através de leituras. O essencial é ler bastante e ler textos corretos que nos façam pensar e questionar. Acho que as coisas passam em grande parte pela leitura. Mesmo o ato de escrever precisa da leitura que se fez ou que se faz. Sem a leitura, é a própria linguagem que empobrece. Há um léxico, uma articulação discursiva que não se encontra na linguagem do quotidiano e é preciso passar por eles para enriquecer a nossa capacidade linguística e tornar mais organizada e coerente a expressão do nosso pensamento.

Da sala de família na Lagoa para rádio e televisão açoriana

É uma das vozes e caras mais conhecidas dos açorianos nascida e criada na Lagoa. Graça Moniz faz uma viagem pelo seu percurso numa conversa informal com o Diário da Lagoa

Graça Moniz está ligada à comunicação social desde 1990 © SARA SOUSA OLIVEIRA/ DL

Nasceu numa sexta-feira, em janeiro de 1970, numa casa com o número de porta que ainda recorda, o 34, na Lagoa. Estudou na Universidade dos Açores para exercer a profissão de professora do primeiro ciclo mas foi a sua colaboração na comunicação social que a trouxe à casa de muitos açorianos. Há cerca de sete anos tirou uma licença sem vencimento para se dedicar a tempo inteiro à rádio e à televisão açoriana. Vive atualmente na ilha do Faial mas sempre que vem a São Miguel fica na terra que a viu nascer, a Lagoa. É como radialista e a fazer reportagens na área do entretenimento tanto para televisão como para a rádio que tem dedicado os últimos anos.

DL: Como foi parar à comunicação social?
Desde pequenina que sempre gostei de brincar às rádios. Acho que o meu estágio foi feito na sala de família a brincar com o gira discos, a falar ao microfone, a gravar cassetes para enviar aos meus primos e tios no Canadá. Já estava a fazer rádio sem saber. Estamos a falar de quando era criança, antes de ir para a escola. Não tive jardim de infância, tive muito tempo para brincar, para falar sozinha e para olhar para o espelho. Tenho de agradecer muito à criança que fui, acho que veio com uma intuição e com uma força muito especial. Eu pegava nos LPs e cantava juntamente com os artistas, isso era um exercício incrível. 

DL: A comunicadora já estava em si?
Acredito que sim. Eu lembro-me de cantarolar o Vinho Verde e do meu avô passar para a pauta aquela melodia. Ele [António Moniz Barreto] era maestro e compositor popular. E isso já era festa, espetáculo, alegria. Lembro-me disso com muito carinho. Toda a minha família estava ligada à revista “Coisas da Lagoa” que percorreu muitos palcos em São Miguel e que foi um estrondoso sucesso na altura, em que o meu avô era quem dirigia a orquestra e fazia as melodias. O meu pai tocava, o meu irmão mais velho fazia de ponto, o meu irmão do meio ajudava nos bastidores e em tudo e mais alguma coisa. Eu acompanhei muitas subidas a palcos. E dei por mim a fazer as falas, pois sabia as letras. E cheguei a apresentar a revista aos meus avós, ao meu avô paterno e à minha avó paterna. Eles sentavam-se no sofá da sala, eu saia de trás de uma das cortinas e eles batiam palmas.

DL: Como chega à rádio?
Tirei o curso de professora do primeiro ciclo na Universidade dos Açores e foi a propósito de um trabalho que tínhamos de apresentar que fui até à rádio Atlântida, em 1990. Coloquei o pé pela primeira vez num estúdio de rádio, a partir daí como estava deliciada com tudo aquilo, disseram-me: “experimenta a dizer qualquer coisa ao microfone”. Fi-lo e perguntaram-me: “és sempre assim ou é só hoje? Se és sempre assim então volta amanhã para a gente conversar um bocadinho”. Então fui, comecei a participar num programa infantil “O mundo da fantasia” da Atlântida, mais tarde apresentei o projeto “Porto de Encontro”, em que cada programa era um cais, e nós só passávamos música de expressão portuguesa e poesia, a nossa literatura portuguesa desde a Idade Média até à Contemporânea. E foi assim, depois fiz um bocadinho de tudo na rádio Atlântida. O meu primeiro apontamento em direto foi exatamente na visita do Papa João Paulo II aos Açores, a 11 de maio de 1991. Um acontecimento inesquecível. 

DL: Há 10 anos, em outubro, apresentou a edição impressa do Diário da Lagoa. Como surgiu esse momento?
O Norberto Silveira convidou-me para fazer a apresentação da primeira edição em papel do jornal e, também, foi uma oportunidade muito gratificante de apresentar algo no meu concelho, de um órgão de comunicação social e que, tal como disse na altura: eu acho que é muito importante registarmos o nosso tempo, é uma obrigação de caráter perene que a escrita confere. Seja em que suporte for, acho que temos essa obrigação de registar feitos e histórias pessoais, homenagear figuras, dar voz. E a Lagoa tem essas referências, essas figuras e tem essas inspirações. Esse jornalismo de proximidade que o Diário da Lagoa representa, não é passado, é presente e é futuro. Nós precisamos disso, precisamos de saber do que se passa ao lado, porque estamos numa era em que às vezes sabemos do que se passa a mil e tal quilómetros e não sabemos o que se passa na rua ou no prédio. 

DL: Como é trabalhar no Faial?
Como em tudo, tem uma parte fácil e uma mais desafiante também. Por ser mais pequena é muito familiar, com todas as características e implicações que isso trará, por outro lado, como estamos mais longe e também há algumas coisas que demoram mais a chegar. Temos de esperar um bocadinho pela nossa vez. A área de animação de rádio aqui estava adormecida há mais de dez anos até eu resgatar aqui na delegação do Faial. 

DL: Há uns anos falava-se no fim da rádio por causa da televisão mas isso não aconteceu. Como encara este facto?
As pessoas apanharam um grande susto, sentiram-se sozinhas. A rádio sempre foi e sempre será uma grande companhia na solidão também. Eu lembro-me que quando fazia o programa Céu Azul, às sete da manhã, eu achava que ninguém estava a ouvir mas havia quem acordasse, ligasse o rádio e estivesse a ouvir. Ou pessoas que tinham um transistor em cada compartimento da casa porque não queriam perder nada do Céu Azul. Isso na pandemia. 

DL: Que conselho daria a quem está agora a começar na comunicação social?
Não saberia dar um conselho porque a pessoa que neste momento está a começar vai encontrar uma realidade que não foi aquela que encontrei. Eu só diria para cuidar bem de si, acreditar em si e para ter portas entreabertas, porque é muito fácil encontrar portas fechadas. 

DL: Onde se imagina daqui a dez anos?
Em 2034… Ora 34 era o número da porta da casa onde eu nasci. Se pudesse via-me a viajar pelo mundo, independemente de registar, relatar, escrever sobre isso, fazer diretos ou um podcast, de o partilhar ou não. Gostaria muito de viajar e conhecer mais cidades, países. As minhas férias preferidas são aquelas em que entro na vida de todos os dias do cidadão daquela cidade que visito e depois vou visitar os espaços culturais, vaguear pelas ruas em que sou mais uma no meio da multidão. Gosto de conhecer o mundo assim, indo aonde as coisas acontecem e de ir à vida real de outras paragens que não a minha de todos os dias.

“Ter vivido nos Estados Unidos da América e no tempo de Salazar moldou-me para ultrapassar obstáculos”

Para o músico e promotor de eventos, Luís Gil Bettencourt, falta um sentido de comunidade e união nos Açores. Ao DL, faz a retrospetiva de uma carreira dedicada à música

Luís Gil Bettencourt, 67 anos, nasceu na Terceira e está no mundo da música desde criança © ACÁCIO MATEUS

Nascido numa família de músicos que tocava para os americanos na Base das Lajes, na Terceira, Luís Gil Bettencourt desde cedo teve um instrumento nas mãos. É músico, compositor e mantém atividade na organização de eventos há já largos anos. Não acredita em dons nem em inspirações.

Numa conversa com o Diário da Lagoa, no hotel onde ficou hospedado na sua visita a São Miguel, em março, Luís Gil Bettencourt conta sobre como as suas experiências de vida o moldaram enquanto pessoa. A imigração, nos anos 70, para os Estados Unidos. O retorno à sua terra, na década de 80. Explica a sua ligação a São Miguel, uma ilha que também chama de casa. Fala sobre o passado, o presente e um pouco sobre o futuro. Prefere não avançar informações sobre o próximo Atlantis – Concert for Earth, mas faz um balanço da primeira edição do festival que aconteceu em 2022 junto à lagoa das Sete Cidades. 

DL: Como surgiu o gosto pela música na sua vida?
O gosto não acontece. São influências que vamos recebendo ao longo da vida. A minha família está ligada à música desde sempre. A minha avó era pianista, o meu pai era multi instrumentista, e depois foram contratados pelos americanos, para criar uma banda na Base das Lajes, onde nasci. Fomos ouvindo os sons. Felizmente tive a sorte de ouvir sempre boa música, fui crescendo e educando o ouvido. Não acredito em dons nem em inspiração.

DL: Desde muito cedo teve um instrumento nas mãos…
Eles estavam à minha volta. Comecei a tocar piano aos quatro anos. Pelos cinco, queria tocar violão. Uma irmã minha estava a aprender a tocar e tinha um papel com acordes. Um dia, ela deixou cair aquele papel, agarrei-o e comecei a aprender sozinho. Até hoje foi assim: sozinho, sempre a amarrar com aquilo até dizer chega. Pelos seis anos, comecei a tocar em grupos de baile.

DL: Como se define? Quem é Luís Gil Bettencourt?
Estou com quase 68 anos, e é difícil, em poucos segundos, uma pessoa fazer uma análise a si própria. Sou teimoso, no sentido de querer. Sou atrevido, no sentido de arriscar. Sou persistente, no sentido de ultrapassar. Ter vivido nos Estados Unidos da América, e no tempo de Salazar moldou-me para ultrapassar obstáculos. Nada estava à mão de semear. É claro que toda esta escola, ainda por cima a dos Estados Unidos, onde não há subsídios, moldou-me no sentido de querer ver as coisas com um palmo de distância, e ver para lá do horizonte, e, de forma equilibrada, fazer coisas que possam servir o meio onde vives. Acredito muito em trabalhar para a comunidade, daí ter criado a Maré de Agosto, ter sido mentor do auditório na Praia da Vitória, e outros festivais e projetos.

Ao fim e ao cabo, é ser um cidadão o mais completo possível e olhar para quem nos rodeia, porque não vivemos sozinhos. Cada vez mais, devíamos olhar uns para os outros dessa forma. Nos Açores, falta-nos o sentido de comunidade, na minha opinião. Demos um salto muito grande, do nada para o mundo, e não soubemos interpretar economicamente a moeda. Há uma aculturação desequilibrada e isso incomoda-me um pouco. Deram-nos muitas ferramentas e não nos ensinaram a trabalhar com elas. Vivemos no mundo das redes sociais, onde tudo temos e nada nos chega. Nos anos 70, em Boston, queríamos que o mundo nos conhecesse. Hoje, o mundo conhece-nos, mas não tem tempo para nós. Sou uma pessoa comum, como outra qualquer.

O músico emigrou com a família para os Estados Unidos da América, com apenas 15 anos © ACÁCIO MATEUS

DL: Qual é a sua ligação a São Miguel?
Aqui, mais do que nas outras ilhas, notava-se muito as classes. Havia uma divisão muito grande e acho que isso moldou a população aqui. De início, senti as pessoas um pouco fechadas, o que é natural, mas quando se abrem é para o resto da vida. É um povo que se mexe. São empreendedores, atrevidos, aventureiros. Criei amizades aqui muito cedo. É uma ilha mágica, embora sinta, com muita pena, que perdemos Ponta Delgada e já não é tão nossa como era. Quem é de cá já não pode passear e usufruir tanto da cidade como fazíamos no passado. Mas não é razão para desistir.

DL: Como foi a experiência de emigrar para os Estados Unidos, em 1971, quando tinha apenas 15 anos?
Já todos falávamos inglês, tocávamos música em inglês, tínhamos televisão e a rádio americana. A Praia da Vitória tinha uma realidade muito diferente do resto do país. Tocamos para os americanos, na Base das Lajes, numa média de duas a três noites por semana. Claro que na América houve coisas menos saudáveis. Sentíamos alguma descriminação da comunidade irlandesa, mas era um país em que sabíamos que se querias, conseguias. Foi o que fizemos, enquanto família. Trabalhávamos uns para os outros. Queríamos que um de nós chegasse algures. Os irmãos mais velhos foram “pavimentando a estrada”, e o mais novo é que dá o salto, mas ele também trabalhou muito para isso.

“Há cheiros, horizontes, mares e pessoas que não esquecemos.
Depois, quer-se também trazer um pouco dos Estados Unidos.
Queres ajudar, com as tuas ideias, e foi o que fiz, com o festival Maré de Agosto.
Não o criei pela música, mas para o desenvolvimento da ilha.”

Luís Gil Bettencourt

DL: Na década de 80 volta aos Açores.
Vim cá passar um fim de semana e fiquei. Quando se sai com 15 anos não é como não se conhecesse isto. Um miúdo com 10, 11 anos, a viver a vida que vivia aqui, não era para qualquer um. Entrava no barco, ia tocar para o Faial, para São Miguel. Isso fez-me crescer bastante. Há cheiros, horizontes, mares e pessoas que não esquecemos. Depois, quer-se também trazer um pouco dos Estados Unidos. Queres ajudar, com as tuas ideias, e foi o que fiz, com o festival Maré de Agosto. Não o criei pela música, mas para o desenvolvimento da ilha.

DL: Nos Açores tem organizado uma diversidade de eventos. Está satisfeito com o trabalho que tem desenvolvido cá?
A Maré de Agosto vai fazer 40 anos, nem é um caso de satisfação, é uma certa alegria. Costumo dizer que a Maré de Agosto e o Carnaval da Terceira são dos bons exemplos de que a cultura pode ser um motor de arranque para a economia local. A Maré de Agosto tem um problema que é acontecer só uma vez por ano. Era importante que durante o ano se fizesse outras coisas, e há essa tentativa.
Os Açores têm de ser promovidos de uma forma única, no meu ver. As outras ilhas precisam das ilhas grandes. Não se pode levar tudo para São Miguel ou para a Terceira. Tem de haver um equilíbrio. Temos de olhar uns pelos outros.

DL: Que projetos tem agora entre mãos?
Eu e a minha filha Maria Bettencourt estivemos em Los Angeles, no outro dia, para ver um novo técnico de gravação e produtor para ela. Também tenho o festival Atlantis. Há outras coisas que gostaria de fazer, em termos de documentários e um pequeno estudo sobre a nossa emigração nos Estados Unidos e no Canadá, por exemplo.

Primeira edição do Atlantis: balanço positivo e público exemplar

DL: Está a residir na Terceira. Viaja muito em trabalho?
Tem de ser. Venho a São Miguel muita vez, por causa do festival das Sete Cidades, o Atlantis.

DL: O balanço da primeira edição do festival Atlantis, que aconteceu em 2022, foi positivo?
Sim, tinha de ser. Não havia outra forma de resultar. Já temos experiência nestas coisas, eu no lado de cá e o meu irmão Nuno Bettencourt pelo mundo. Sabíamos perfeitamente o que tínhamos de fazer. Tivemos um público impressionante, exemplar. Penso que 90 por cento do festival foi público de cá.

Não queremos fazer à moda de lá, nem à moda de cá. Queremos fazer de uma forma que possa, de alguma forma, ir ao encontro da população, dos músicos e ir ao encontro da nossa intenção, que se prende com a questão ambiental. 

Na primeira edição, o público foi de forma saudável. Alguns aspetos que eram muito importantes era as pessoas poderem ir ao festival num horário saudável e praticar um preço acessível à família. Depois, naquela beleza, ouvir música à luz do dia, que é algo que devíamos fazer mais cá. Os Açores são para ser vistos de dia e não de noite.