Rui Tavares de Faria
Professor e Investigador
O Enredador é o tipo ético que ocupa o oitavo lugar na lista dos caracteres humanos de Teofrasto. Não se trata de uma palavra com a qual o leitor do século XXI não esteja familiarizado, em particular o micaelense, que verá, na descrição do autor grego, a imagem do conhecido “enredeadeiro”. Este último termo não existe nos dicionários da língua portuguesa; aceita-se a forma “enredadeiro”, talvez por a outra (o “enredeadeiro”) ser nossa, de São Miguel, e, pelo que pudemos apurar, das outras ilhas açorianas também. Da sua morfologia gramatical consta o nome “enredo”, que significa trama, narrativa ou ação, no âmbito dos estudos literários, e historieta, imbricada e digna de mexerico, no âmbito da cultura popular, muito particularmente da açoriana.
De acordo com Teofrasto, “a enredação é uma invenção de palavras e factos falsos, que o enredador pretende…” (Char. 8.1). Nada mais atual, portanto. Analisando a definição do autor helenístico, ao enredador cabe o papel de lançar rumores, florear boatos, fazer mexericos, sempre na base do que não corresponde à verdade. Nos Caracteres, esta figura é caracterizada como sendo alguém que busca obter dos outros novidades para, em seguida, as divulgar de modo deturpado, mas, assinala Teofrasto, “a fonte das suas histórias é sempre um tipo que ninguém poderá contestar” (Char. 8.5). O mesmo é dizer que o enredador falseia a informação que ouve ou recebe e não deixa de identificar a proveniência do enredo falso, numa clara tentativa de se ilibar da gravidade do que lhe sai pela boca fora.
Na atualidade, contamos com um número assaz avultado de enredadores. Abordam-nos com a novidade, que normalmente nos surpreende através de um “então sabias que…”, e rematam com um “foi fulano quem me disse.” Somos confrontados com indivíduos e situações dessas N vezes, seja no local de trabalho, seja num dado espaço social, seja até em casa. A atuar em qualquer um desses domínios há os enredadores convictos do seu mau carácter (há-os, de facto!) e os que se deixam levar, ingénuos, pelas falsidades que lhes dizem ou transmitem e, procurando fazer conversa, nem que seja de circunstância, acabam envolvidos involuntariamente na rede do disse-que-me-disse.
Além de se ocupar da dissimulação das histórias que lhe contam, o enredador também tem por hábito divulgar, segundo Teofrasto, a novidade a toda a gente. Apesar de lhe dizerem “Guarda só para ti o que sabes”, ele “vai, numa correria, contar a mesma história à cidade inteira.” (Char. 8.10). Ora este comportamento é também característico do mexeriqueiro, aquele que, por não ter vida própria ou por a sua própria vida ser desinteressante, vazia ou valer pouco, passa o tempo todo a “levar e trazer”, ou seja, ouve dum lado e logo o transmite a terceiros e por aí fora. O enredador cria, promove e torna complexa a rede de enredos que, num instante, se converte num jogo de enganos, numa panóplia de intrigas falsas de que sai amiúde ileso, porque não esquece de identificar ou nomear, ainda que sem certezas, a fonte do mexerico, que é alguém incontestável.
Incrível é apercebermo-nos de que, nos dias de hoje, quando todos se queixam de falta de tempo, sobretudo por razões de ordem profissional, ainda há quem tenha disponibilidade para vestir a pele de enredador. Ironias da contemporaneidade que refletem um hábito tão antigo quanto o próprio homem: a mexeriquice, a enredação. Do conjunto de atitudes que podemos tomar perante a abordagem de um enredador está a sugestão educada do “Mete-te na tua vida!” ou a pergunta brusca “Que tens tu que ver com isso?”. Nem sempre desarma a intenção curiosa do enredador, mas, ao menos, estamos em crer que reduz a energia de enredar a todo o tempo e com toda a gente.
Se, para alguns, este tipo humano revela a falta de sensatez do indivíduo, para outros, é uma fonte de informação que desmerece o rigor dos meios de comunicação social. Neste sentido, instala-se uma espécie de rede paralela, a dos enredadores-mexeriqueiros, caracterizada por uma série de conexões que se querem necessárias a certos indivíduos para que tomem certas medidas ou cheguem a determinadas conclusões. Pensemos no cenário do nosso espaço profissional. Quantas vezes não nos questionam, com falinhas mansas, sobre o que pensamos acerca de um dado assunto ou sobre que ideia temos formada acerca de um tal colega? Quantas vezes não nos perguntam coisas das nossas vidas pessoais por detrás de um simpático, mas falso, “estás bem”? Quantas vezes um colega nos aborda para dar conta dos seus queixumes para de nós obter uma anuência comprometedora acerca de outros? É o enredador a encher o seu poço de enredos para logo o esvaziar nos primeiros ouvidos de quem estiver por perto, à sua espera.
Trata-se, na verdade, de um tipo humano francamente comum o enredador. Quando menos esperamos, temo-lo à nossa beira para contar o que ouviu de não sei quem para pôr em causa o que disse outro não sei quem. Nós, ouvindo-o e acenando-lhe com a cabeça, mostrando o interesse e a atenção de um interlocutor comum e educado, acabamos por nos ver enredados nas suas malhas e, sem contar com o desfecho dos mexericos, ainda terminamos na cadeira do réu, do mau da fita, porque, dada a ausência de escrúpulos e de carácter do enredador, até podemos ser nós os identificados como a fonte da história que, falsa e floreada, é divulgada pelo enredador a toda a gente.
Rui Tavares de Faria
Professor e Investigador
Depois de, por razões várias, termos dado férias aos Caracteres, de Teofrasto, eis que, em consonância cronológica com o regresso às aulas, voltamos a dedicar este espaço à recriação modernizada – e bem-disposta – dos tipos humanos que compõem o tratado ético do discípulo de Aristóteles. E, após dois meses de silêncio, nada como abordar o “Parlapatão”, o sétimo retrato da obra de Teofrasto. É designação do conhecimento geral o termo “Parlapatão” que nomeia esta figura humana e que a tradutora escolheu como sendo ilustrativo, em língua portuguesa, do nome grego “Λαλιά” (laliá), onomatopeia sugestiva “do efeito de um desarrazoado verbal que soa a um ininterrupto e ininteligível la-la-la”, segundo as palavras de Maria de Fátima Silva.
De facto, também em português a palavra “Parlapatão” tem na sua base morfológica a terceira pessoa do singular, no presente do indicativo, do verbo “palrar”, que se aplica ao ato de articular sons imperfeitos ou difíceis de perceber, o mesmo é dizer incompreensíveis à audição, e o nome “patão”, que tanto pode designar um tipo de calçado rústico aberto no calcanhar, como pode ser o aumentativo da espécie aquática pertencente à família anatidae a que chamamos “pato”. A considerar esta última aceção, o “Parlapatão” é aquele indivíduo que, à semelhança de um grande pato, grasna “a torto e a direito”, tornando-se, por isso, incomodativo e distinto do tagarela, outro dos caracteres de Teofrasto sobre o qual já aqui escrevemos.
Ora, o autor grego diz que “a parlapatice, se se lhe quiser encontrar uma definição, é uma espécie de incontinência do discurso” (Char. 7.1.), ou seja, é a verbalização descontrolada por parte de alguém que, conforme o caracteriza Teofrasto, interrompe tudo e todos para fazer valer a sua voz, tenha ela ou não enquadramento no conversa em que se intromete sem escrúpulos: “seja o que for que lhe diga alguém que o encontra por acaso, ele salta logo a reclamar que não é nada disso, que ele é quem está bem por dentro do assunto, e que, se se lhe quiser prestar atenção, se ficará ao corrente do que aconteceu.” (Char. 7.2.). Seguramente o meu caro leitor já recuperou da sua memória os parlapatões com quem se cruzou ao longo dos tempos. Oh! Quantos há! São uma espécie de mexeriqueiros especializados, detentores do conhecimento (quase) total acerca de qualquer assunto ou pessoa. Por vezes, são-nos úteis, diga-se a verdade, mas, na maior parte das situações, tornam-se incomodativos, impertinentes e cansativos. Teofrasto refere que o “Parlapatão” recorre amiúde ao argumento “É-me difícil estar calado!” (Char. 7.9.); e a nós? Não é igualmente ou tão mais difícil estar de ouvidos abertos à verborreia que sai da boca de um incontinente discursivo?
Por outro lado, nos dias que correm, usa também a máscara de “Parlapatão” o indivíduo mais solitário. Como passa grande parte do seu tempo sozinho e isolado (opção ou imposição?), sem falar com ninguém, mal se abeira de quem quer que seja solta a língua e não se cala; “se alguém lhe diz que são horas de ir andando, ele vai atrás e acompanha o sujeito até à porta de casa.” (Char. 7.6.) E o pior é quando se convida a entrar, não só para continuar a palrar e a palrar, mas também para se sentar à mesa daquele que o foi ouvindo (ou não) o caminho todo até ao seu domicílio. Notamos que há cada vez mais parlapatões desta espécie. E quando não nos abordam frente a frente, tentam impô-lo por telefone. O objetivo, que é fazer-se ouvir a todo o custo, cumpre-se também nesta modalidade intercomunicativa. O efeito é o mesmo: a conversa resulta em cansaço e a sugestão, da nossa parte, o importunado, de uma despedida leva o “Parlapatão” a insistir num dado assunto ou a avançar para um novo tema para nos manter em linha.
Se nos propuséssemos fazer uma analogia entre o “Parlapatão” e outros tipos éticos, encontraríamos uma multiplicidade de opções, porque ele é a personificação do aborrecimento, da imodéstia, da falta de noção, enfim. Das sugestões que nos poderiam ocorrer, em matéria de prevenção do contacto com este carácter, o uso frequente de auriculares parece-nos a mais acertada – e engraçada. O meu caro leitor já se apercebeu de que, nas mais variadas ocasiões (estar no local de trabalho procurando concentração, andar de avião de forma relaxada, estar a caminhar ou até aguardar por uma consulta na sala de espera), o uso de phones, mesmo que não se esteja a ouvir música, revela ser o melhor repelente dos parlapatões? É verdade. Esteja ele, o “Parlapatão”, em qualquer uma situações antes apresentadas entre parênteses, sentado ao nosso lado, se nos vir de ouvidos tapados, tem ao menos o discernimento de não nos dirigir a palavra. É certo que pode tocar-nos no ombro ou no braço ou procurar um encontro de olhar para abrir, sem hesitar, a boca, mas temos sempre a opção de fingir que não é connosco.
Além desta hipótese e tendo em conta o grau de familiaridade que tenhamos com o “Parlapatão” que se aproxima de nós e nos interrompe como se fosse mal-educado (que também pode ser, mas estamos em crer que a parlapatice será, igualmente, uma certa patologia psíquica por identificar), podemos sempre proceder do mesmo modo como ele se nos dirige, isto é, não o deixamos falar, cortamos-lhe a palavra, elevamos a voz, usamos da mesma incontinência discursiva de que ele padece para lhe fecharmos a boca. Este cenário, que pode converter-se num episódio hilariante, pretende demonstrar que a solução de um dado problema, como é o de lidar com um “Parlapatão”, passa muitas vezes por um mecanismo de reflexo, o passar o feitiço para o feiticeiro. Aí reside, pensamos nós, um antídoto eficaz para afastar do nosso sossego não só os parlapatões, mas também todas as espécies humanas que se nos afiguram nocivas, voluntária ou involuntariamente.
Maria João Ruivo
Professora e escritora
Por que razão se comemora Camões e a sua obra tantos séculos depois, numa época de tanto desinteresse pela leitura, de tanto desencanto e falta de entusiasmo, ainda para mais tratando-se de um poeta de leitura difícil e exigente?
Não é fácil encontrar resposta para isto. Sem dúvida, um dos segredos dos grandes artistas é a sua intemporalidade, mas não se trata apenas do que se diz. É o modo como se diz que enforma a Arte. Camões, enquanto poeta, reúne em si tudo isto, pois retrata a alma humana, o sentir dos Homens e as suas angústias e reflexões, numa linguagem única que de algum modo se ergue na sua superioridade, fazendo-nos sentir uma enorme admiração.
Camões é um verdadeiro Humanista, homem de múltiplos saberes, que representa bem o espírito do Renascimento, movimento de viragem que trouxe uma série de transformações que influenciaram profundamente a forma como o homem europeu passou a encarar o universo, fruto, em parte, do acesso a novos mundos, realidades e culturas. Essa época apresenta-se como uma importante experiência, que traz à luz novas mundividências e o reconhecimento do Homem como centro do Universo, por oposição ao Teocentrismo medieval, ao mesmo tempo que traz desacertos e desequilíbrios, como é próprio da mudança.
Na sua obra, Camões, como muitos outros poetas e prosadores da época, aborda não poucas vezes este tema, associando-o Ao Desconcerto do Mundo, e mostrando que Tem o tempo sua ordem já sabida;/ O mundo não, mas anda tão confuso,/ Que parece que dele Deus se esquece.*1 Estes versos podiam ter sido escritos hoje.
Na sua conhecida Esparsa (ao desconcerto do mundo), o Poeta apresenta uma reflexão bastante incisiva sobre a inversão dos valores fundamentais, já que, diz ele, os maus são premiados e nadam num “mar de contentamentos” e os bons são punidos, sofrendo “graves tormentos”. Ao refletirmos sobre este nosso mundo, não podemos negar que isto é de uma atualidade indiscutível e coloca a olho nu a injustiça e a desarmonia a que os homens estão sujeitos, sabendo nós que o mundo está longe de ser o que devia, pois nele imperam a corrupção e a falta de escrúpulos, o que gera inúmeras assimetrias e consequentes revoltas, sendo grande a nossa impotência perante aquilo a que assistimos. Aqui recordamos, desse breve poema, que o eu lírico, depois de ter decidido ser mau, buscando ser recompensado, confronta-se com um inesperado castigo, concluindo, ironicamente: (…) Assim que, só pera mim,/Anda o Mundo concertado. Calharia bem, aqui, recordar o soneto “Cá, nesta Babilónia, donde mana”, sendo que a Babilónia representa o mal presente, o caos, a existência terrena – onde o mal se afina, e o bem se dana,/e pode mais que a honra a tirania.- e Sião o passado, o Paraíso, na terminologia cristã, o bem por que todos suspiramos.
No seu bem conhecido soneto “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, Camões aborda o tema da mudança constante e inevitável, mostrando que tudo se altera, até mesmo a confiança, já que as novidades contrariam as esperanças. Numa atitude melancólica, ele expressa o seu desencanto, recordando as mágoas e questionando se teve algum bem na vida.
Expressa, ainda, a ideia de que na Natureza, a mudança tem um caráter positivo, cíclico, de renovação, mas que nele próprio surge sempre para pior, como nos revela o verso: E em mim, converte em choro o doce canto. Esta constatação conduz o poeta a uma atitude de ceticismo, porque sabe que não pode alterar a ordem das coisas, sentindo, então, o desencanto e a angústia.
Este tema, aqui brevemente aflorado, deveria ser, para nós, assunto de reflexão, já que o mundo está numa drástica mudança, de tal modo, que os homens se sentem perdidos, porque o que era válido ontem parece que hoje o deixou de o ser e isso conduzirá rapidamente a um abismo de que não será fácil sairmos.
Muito fica por dizer sobre um assunto tão vasto como este. A Mudança tornou-se tema privilegiado de muitos escritores que, atentos ao mundo que os rodeava, aproveitaram para denunciar os podres, os desacertos, a corrupção dos homens e a forma como as mudanças afetam tudo aquilo que antes era tido como garantia, ao mesmo tempo que a reconhecem como fator fundamental de progresso e de evolução intelectual. Todo o mundo composto de mudanças, e estas atingem inexoravelmente todos os seres, acabando por ser irreversíveis no Homem, revelando a fragilidade e a vulnerabilidade desse bicho da terra tão pequeno. *2
Quando leio Camões, confirmo sempre a sua universalidade e intemporalidade, já que aquilo que ele escreveu é tão válido hoje como o foi na sua época. E estas são, sem dúvida, marcas fundamentais de um grande artista, pois resultam da sua capacidade de reflexão, da argúcia com que observou o mundo e o seu tempo, de forma a aperceber-se daquilo que define o Homem na sua essência.
No fundo, em Camões, a alegria rapidamente se transforma em mágoa, quando confrontada com o mal presente, mas este sentir do Poeta facilmente se universaliza comprovando a ideia de que, para todos nós, o bem é passageiro e o mal depressa lhe toma o lugar:
Um gosto que hoje se alcança
amanhã já o não vejo;
assim nos traz a mudança,
de esperança em esperança,
e de desejo em desejo. *3
*1 Soneto “Correm turvas as águas deste rio”
*2 Os Lusiadas – Canto I – Estãncia 106
*3 Canção “Sôbolos rios que vão”
Os que iam chegando foram abrindo primeiro, atalhos, veredas e até ruas. Seguiram-se as determinações do reino e com os primeiros colonos vieram um padre e alguém que riscaria ou distribuiria as ruas para que se fosse erguendo os casebres, da futura vila.
Passado o Jubileu subiram a encosta, abrindo caminho paralelo a uns «barrancos» onde passava uma ribeira de forte caudal, fixaram-se uns «ferreiros» vindos na caravela, nesse caminho que vai até uma praça onde se juntavam duas ribeiras.
Subiram desde a praça, o padre e o representante do reino pela margem direita da ribeira e num plano mais elevado decidiram construir a indispensável igreja consagrada posteriormente ao culto de Nª Sª dos Anjos.
Dali do plano alto da igreja, o povo iria ouvir o seu sino e ver sempre a sua igreja de onde estivesse localizado. A rua que ia da igreja à Praça viria a chamar-se de rua da Trindade, por ter nela sido erigido uma ermida desta devoção, anexa à casa de um dos seus moradores.
Segundo as regras de construção da vila, seria da Praça que nasceriam as outras ruas que iriam compor, primeiro o Povoado desde o século XV, depois a Freguesia em 1505 e a elevação da vila de Água de Pau em 1515.
Todavia, em 1488 já Água de Pau tinha igreja erigida pois há um documento que dá conta da existência de um capelão que dizia lá missa.
Foi cedido à igreja um Paul, nome atribuído aos terrenos que normalmente ficam por trás da igreja que permitiam sustentar a mesma com os seus padres. Passou a chamar-se Ribeira do Paul. Esta, vinha desde uma grota onde se instalaria um homem que se rodeara de muitos cães. Daí ainda hoje se chamar “Grota dos Cães”. Aquela linha de água originava-se numa nascente que se despenhava num lance alto da rocha, ficando a conhecer-se até hoje como a nascente da Ribeira do Lance.
Outros colonos seguiram, desde a Praça, pela margem da outra ribeira, ladeada por campos. Daí a terem inicialmente chamado de Ribeira dos Campos, depois Ribeira de Santiago. Seguiram-na sempre até se depararem com o salto de um bode. Salto do Bode ainda hoje tem este nome um dos acessos à Serra de Água de Pau.
Derivaram para a esquerda, caminhando ao lado do curso da Ribeira dos Campos entraram pelo Caminho da Vila (nome adotado posteriormente) até onde se despenhava do alto a ribeira em grosso caudal dando azo a que alguns moleiros erguessem ali moinhos.
A terra cresceu e o povo também com os recursos que a mesma lhes proporcionava, desde terras férteis e ricos recursos hídricos. Foi crescendo o povoado, compondo-se de umas dezenas de casebres, cobertos de colmo, negros uns, branqueados outros a cal, trepando todos por encostas que iam dando lugar a ruas, a um boqueirão, a um outeiro. A rua dos Coelhos e a rua das Limeiras dizem bem do que ali encontraram os primeiros que ali se fixaram e erigiram casa: – coelhos em debandada, e arvores de limas! Outros preferiram ficar mais próximos da sua igreja começando uma rua erguendo suas casas num Vale Verde que subia a poente da mesma. Como todas as terras no torrão natal daqueles que para ali vieram, tinham uma rua da Carreira abriram-na e dividiram-na inicialmente em quintinhas com suas casas na frente, dum lado e do outro da rua. A rua da Vila Nova dava seguimento para o Pisão, onde se tinham estabelecido alguns artífices com seus «pisões» conhecedores da arte de moer a planta do pastel para extrair uma tinta azul que era exportada para a Flandres. Antes da rua da Vila Nova subir um «pedregal» que ali existia junto a um barreiro, abriu-se uma Portela de acesso ao Porto do Vale de Cabaços (Caloura). Era uma canada íngreme que praticamente se serviam os pescadores que possuíam alguns barcos pequenos de pesca num varadouro construído a seguir à pedreira de Nª Sª dos Anjos, que começava na Portela e ia até ao porto.
A par das casas que iam aparecendo ao lado das ribeiras, entre as mesmas foram-se construindo mais moinhos de água, tal era a força do caudal. Os moinhos transformaram os moleiros nos primeiros comerciantes da terra. A sua moenda era moeda de troca com outros bens que iam aumentando o stock e variedade de produtos a negociar com o povo. Baía dos Moinhos foi o nome que viria a chamar-se depois o antigo porto de Manuel Afonso Pavão, pois era ali que iam parar as águas que tinham passado por todos os moinhos da vila.
Quando Água de Pau foi elevada a vila por alvará régio de D. Manuel I, concedido a 28 de julho de 1515 a maior propriedade que o município herdou foi o Pico do Concelho. Há volta dele e da sua saia se ergueram casas e nasceram ruas, como as ruas da boa Vista que depois mudaram-lhes para ruas do Pico de Baixo e de Cima. Na saia do Pico cresceram as ruas da Trindade, do Beco da Igreja, dos Ferreiros e a Praça Velha.
A atividade comercial dos moleiros manteve o município da Vila de Água de Pau com alguma prosperidade até ao último quartel do século XIX até a cidade de Ponta Delgada recorrer à compra dos principais moinhos, assim como das suas «penas d’água» [* medida de quantidade de água usada por cada moleiro] que permitiam a funcionalidade do moinho. O Marquês da Praia e Monforte que tinha responsabilidades governativas e depois de presidente da Câmara de Ponta Delgada, tomou esta medida porque apercebeu-se que a sua cidade não poderia crescer nem se desenvolver sem outra fonte de abastecimento d’água, porquanto a que lhes chegava das Sete Cidades não resolvia o problema.
Um inquérito industrial realizado em 1845 revela que a vila e concelho de Água de Pau tinha conhecido um período de industrialização pujante na segunda metade do século XVIII e na primeira metade do século XIX, pois, tinha 30 moinhos de água, onde ainda trabalhavam 40 operários, e tinha ainda 12 fábricas de pelames que ocupavam 30 operários, sendo que apenas 4 moinhos e 1 fábrica tinham construção datada dos anos vinte do século XIX, residindo eventualmente aqui a maior razão para que Água de Pau, apesar da sua pequenez geodemografia, se ter mantido como concelho até finais de 1853, portanto sem nunca ter sido integrada no concelho de Lagoa [Cf. Fátima Sequeira Dias, ob. cit., p. 93]. Naturalmente que se podem aventar várias razões porque tinha Água de Pau todos aqueles moinhos e fábricas de peles, razões que julgamos devem contemplar três aspetos: 1º – A grande riqueza das terras agrícolas situadas entre aquela vila e o termo da vila da Lagoa, que ainda hoje são consideradas das mais férteis da ilha e aptas ao cultivo de cereais; 2º – O pastoreio de gados nas extensas encostas da Serra de Água de Pau como fornecedora de peles; 3º – O caudal permanente e controlado por comportas do grande paul de Água de Pau, que se situava acima da igreja paroquial, e que era drenado a céu aberto por várias ruas da vila, onde, eventualmente era canalizado para os moinhos e fábricas de curtume das peles. Inédito, existem nesta vila quatro fontenários públicos a correr, há mais de cem anos, vinte e quatro horas por dia.
Rui Tavares de Faria
Professor e Investigador
Prosseguindo com a nossa leitura moderna – ou modernizada – dos perfis éticos registados por Teofrasto nos seus Caracteres, eis que se nos oferece, como sexto tipo humano, o impudente. Não é termo muito comum do vocabulário do falante do século XXI, muito provavelmente por desconhecer o respetivo significado. Embora se identifique na raiz da palavra o morfema “pud-”, do qual derivam termos já mais conhecidos, como “pudor”, “púdico” ou “impúdico”, a verdade é que, segundo o autor grego, a “impudência” é um conceito mais amplo – e complexo, acrescentamos nós. Conforme se lê em Caracteres, “a impudência é a tolerância para com atos ou palavras condenáveis.” (Char. 6.1.) Por outras palavras e à primeira leitura, são impudentes, por exemplo, os indivíduos que apoiam genocídios, os que repudiam as minorias étnicas e sociais, os que apelidam de preguiçosos são migrantes, os que, numa escala mais restrita, secundam tudo quanto vai contra os Direitos Humanos.
Mas Teofrasto, querendo imprimir um tom de paródia às caricaturas que desenha no seu tratado ético, apresenta-nos feições, comportamentos e atitudes do impudente que tocam a comicidade e nos roubam umas gargalhadas. “Eis o perfil do impudente. Faz juramentos a torto e a direito; reputação, da pior; da difamação de gente importante, sempre pronto.” (Char. 6.2.) Ou seja, trata-se de um indivíduo mau reputado e difamador, de quem se deve sempre desconfiar, uma vez que da sua boca sai (de) tudo. Tanto se lhe dá enxovalhar A, porque A é cumpridor daquilo que lhe é devidamente instruído, como se lhe faz dizer mal também de quem instrui A. O impudente encontra, por mero acaso, a mulher do vizinho a conversar com um fulano que não o marido e, certamente no mesmo dia, já boa parte do prédio saberá pelas suas palavras – as do impudente, claro – que o tipo de terceiro esquerdo tem um bom par de galhos na testa!
Outro traço de carácter que Teofrasto elenca diz respeito à capacidade que o impudente tem para aceitar trabalhos duvidosos, alguns dos quais hoje tidos por crimes puníveis por lei. Ele “vira-se bem como estalajadeiro, chulo e cobrador de impostos; não há atividade, por mais indecorosa que seja, que ele recuse; ei-lo pregoeiro, magarefe ou jogador de dados.” (Char. 6.5.). Transpondo para o nosso quotidiano pelo menos os três primeiros atributos apontados por Teofrasto ao impudente do seu tempo, que indivíduos ou instituições lhes correspondem atualmente em matéria de impudência? Pois bem: os estalajadeiros são os senhorios que inflacionam a rendas dos imóveis que têm alugados e não declaram um centavo às finanças; os chulos são, por exemplo, os trabalhadores da construção civil que, perante uma clientela ignorante em matéria de obras e tarefas afins, cobram balúrdios pelos seus serviços, algumas vez mal feitos, outras tantas feitos à pressão, porque já têm à sua espera outro cliente, o qual será, obviamente, chulado; o cobrador de impostos é a nossa Autoridade Tributária, um bom exemplo de impudência, se tivermos em conta as questões da fiscalidade praticada pelo governo português. E muitos outros casos temos ao alcance do nosso olhar, mas, se nos centrássemos apenas neles, retiraríamos o tom jocoso que aos nossos textos costumamos ou tentamos imprimir.
Enquanto “fulanos que atraem e juntam à sua volta multidões; e que, com voz de trovão, começam a disparatar e a interpelá-las” (Char. 6.7.), os impudentes também vestem a pele do “palhaço demagógico” e, nesta função, é inevitável não nos passarem pela cabeça episódios das campanhas políticas que vão tendo lugar no nosso país, e na nossa região. Há de facto quem consiga, mais do que atrair, seduzir multidões e submetê-las, pela demagogia, às mais diversas ideologias partidárias. Nesses casos, o impudente toma-se ora por um Jesus da Galileia do antigamente, que incita, agora guloso, o “deixai vir a mim as criancinhas”, tendo em mente os mais variados intuitos, ora por uma sereia dos mares de outros tempos, os de Ulisses, que enfeitiça, pelo canto, os marinheiros mais fragilizados, desviando-os do rumo determinado da viagem, ora pela cantora brasileira Daniela Mercury e entoa, a grandes brados, o famoso “Dona Canô chamou! Eu vou!”. Qual o resultado desses ajuntamentos, mobilizados pela voz tonitruante do líder impudente? Disparates!
Quando deixam de ser novidade ou quando cessa o interesse de os seguir ou de lhes dar ouvidos, os impudentes tornam-se, no dizer de Teofrasto, “enfadonhos”, porque previsíveis nos seus atos e porque a sua finalidade é inevitavelmente a mesma: “de língua sempre pronta para a maledicência.” (Char. 6.10.) O que tem sucedido, pois, nas bancadas das nossas assembleias de deputados eleitos? O que é habitual acontecer nos debates políticos que os canais televisivos transmitem em direto, aquando das campanhas eleitorais? Ataques e contra-ataques, invetivas, insultos, injúrias, “lavar roupa suja”, como se diz popularmente. É isso o exercício político?! Não é necessário recuarmos ao século V a.C. para recordarmos como nasceu a democracia em Atenas, daí tirando bons paradigmas de cidadania; perante aquilo que nos tem sido dado a ver e a ouvir, no quadro do exercício político português, é legítimo considerar-se que vivemos num estado, não de direito, mas de uma impudência atroz.
O que fazem os candidatos aos altos cargos políticos? O que dizem os cabeças de lista dos partidos portugueses? Fazem “juramentos a torto e a direito”. Que perfil ético apresentam e que estilo de vida têm certas figuras que passam a integrar a Assembleia ou outros poisos de relevância no quadro da cidadania portuguesa? Um perfil e um modus uiuendi bastante duvidosos, isso porque a sua “reputação” é “da pior”. De que meios se serve a maior parte desta corja política? Em primeiro lugar, “da difamação de gente importante”; em segundo, da demagogia e, em terceiro, da promoção do mau carácter. Em face do cenário exposto, é caso para se concluir que somos (des)governados por impudentes, indivíduos que toleram (e promovem) atos e palavras condenáveis e, perante isso, torna-se-nos deveras difícil elencar medidas de combate para esse tipo humano, que se tem enrijecido na nossa sociedade. É este o retrato vergonhoso do Portugal da segunda década do século XXI, meu/minha caro/a leitor/a.
Sinto orgulho ao ver nas redes sociais a “minha” Escola Básica Integrada de Água de Pau associada a atividades escolares, culturais, desportivas e pedagógicas com sucesso.
Há diversos lugares panorâmicos na nossa Vila onde podemos ver completamente todos os edifícios que constituem as diversas valências, com a sua moderna arquitetura, localizada entre a ribeira dos Moinhos e a rua do Foral Novo com ligação à Caloura.
A sua integração na urbe pauense valoriza e eleva a Vila para um patamar superior no espaço e na qualidade de ensino.
De quando em vez recordo os meandros da construção daquela escola e dou por mim a recordar-me que quando o engenheiro Luís Martins Mota me convidou para formar equipa com ele para nos candidatarmos à Câmara Municipal de Lagoa, em eleições autárquicas a 17 de dezembro de 1989, entre os motivos que aceitei o desafio estava a minha proposta de se construir uma Escola Básica Integrada na Vila de Água de Pau. Ele aceitou, e, eu tinha um terreno apontado e acordo firmado da venda pelo proprietário.
Eleitos nas listas do Partido Socialista, o presidente Luís Martins Mota e eu (vice-presidente), deslocamo-nos a uma Secretaria Regional para reunir com o Secretário das Obras Públicas, Américo Natalino Viveiros. Com ele deixamos um pedido elaborado, com planta de localização do terreno e memória descritiva da necessidade que a Vila de Água de Pau tinha de uma nova escola. O Secretário disse que ia mandar fazer um levantamento topográfico do terreno e um parecer técnico sobre a viabilidade de construção no mesmo.
Três meses depois, por ausência do presidente da Câmara, estava eu como presidente em exercício, quando recebi uma carta do senhor Secretário das Obras Públicas, inviabilizando a escola por o terreno não ter as condições exigidas para a construção duma escola. Não esperei pela vinda do presidente e eu próprio respondi-lhe que não aceitava o argumento que inviabilizava a construção e que acreditava eu que quando mudasse o Secretário das Obras Públicas, a escola iria se construir.
Decorria o nosso segundo mandato na Câmara de Lagoa, quando o presidente do Governo Regional, Dr. João Bosco Mota Amaral, do PSD, se demite. Nas eleições legislativas seguintes, Carlos César, pelo PS, sucede-lhe e muda o Secretário das Obras Públicas.
A partir daí volto a insistir com outro pedido de viabilidade de construção para a Escola de Água de Pau. Martins Mota e eu insistimos com Carlos César que coloca o assunto numa lista de prioridades. Entretanto, fui mantendo o compromisso de venda do terreno para a escola com o proprietário, senhor José Amaral (Trajana). José Contente, o novo Secretário Regional responde afirmativamente e a construção da escola começa a ser uma possibilidade, porque nos enviou um anteprojeto. Realizaram-se reuniões entre técnicos das Obras Públicas, conselho diretivo, professores, técnicos da CML, contando com a minha presença incondicional em todas as reuniões.
O projeto moldou-se conforme as solicitações e exigências do ensino até que parou a dada altura.
Soubemos, eu e o meu presidente Martins Mota, que se o Governo comprasse o terreno, o investimento na escola só ocorreria cinco anos depois. Levei algum tempo a insistir com Martins Mota para ser a Câmara a adquirir o terreno para que o governo pudesse então calendarizar a construção da escola num próximo orçamento da Região. Martins Mota anuiu, mas tivemos que esperar mais um ano e quando tivemos dinheiro, chamamos a viúva e os filhos do proprietário, já que o marido havia falecido. E fizemos a escritura de compra do terreno, numa cerimónia que decorreu na Junta de Freguesia da Vila de Água de Pau.
Passados 15 anos, já em 2004, o presidente Luís Martins Mota deixa a Câmara Municipal de Lagoa. João Ponte assume a presidência em sua substituição e comigo vence um próximo mandato. Continuam a verificar-se reuniões para atualização do projeto da escola, até que em determinada altura, depois de tanta insistência minha, em 2007, o Secretário Álamo de Meneses leva o projeto a reunião de Governo e o mesmo é contemplado com orçamento e inicia-se a obra.
Ainda acompanhei a obra na sua fase de construção, sempre tirando fotografias. No entanto, no fim de 2009, já 20 anos depois [1990-2009], deixei a Câmara Municipal de Lagoa e o presidente João Ponte é que assiste à conclusão e preside com Carlos César à inauguração da nova escola.
Para a inauguração da escola não fui convidado, mas não me coibi de aparecer. Decorria a cerimónia, com os habituais discursos de circunstância, no pátio de entrada cheio de entidades, autarcas municipais e de Junta, professores, pais, alunos e eu entrei a meio dos discursos, abri corredor entre os presentes arrastando atrás de mim uma fila de pais e alunos meus convidados. Entrei pela escola dentro, sala por sala. Sentei os alunos com os pais e tirei fotografias. Depois quando estavamos a sair, confrontamo-nos com a comitiva do Governo, da Câmara, da Escola e convidados visitando a escola. Carlos César perguntou-me: – “de onde vens? – Vim inaugurar a minha escola!”, respondi-lhe.
Felicito-me, sinto-me feliz pelo sucesso da “minha” Escola. Realizei uma viagem de intercâmbio cultural aos Estados Unidos com uma delegação de estudantes e professores, organizei um programa cultural com o apoio de patrocinadores americanos, foi uma experiência inesquecível para os docentes e alunos.
Lancei em 2019, no auditório repleto da minha escola, o meu primeiro livro “Antes Que A Memória Se Apague I – Crónicas de Água de Pau” e fui convidado para dar duas aulas na “minha” Escola sobre a História da Vila de Água de Pau.
Sinto-me realizado sempre que me cruzo com alunos nas ruas da minha vila a caminho da “nossa” Escola.
Rui Tavares de Faria
Professor e Investigador
Sobre o complacente, o quinto carácter acerca do qual discorre Teofrasto, há uma série de considerações que aproximam este tipo ético da figura do bajulador, situação à qual fizemos referência no texto anteriormente publicado neste jornal, no passado dia 1 de março. Procuremos, então, não cair num discurso repetitivo, porque, se o autor grego retratou dois caracteres tão semelhantes em separado, quer isto dizer-nos que nos é, também, possível distingui-los ou, pelo menos, evidenciar alguns dos traços que os afastam, no âmbito da contemporaneidade.
A relação entre o bajulador e o complacente tem sido alvo de estudo por parte de uns quantos filólogos classicistas. Maria de Fátima Silva, em nota à sua tradução portuguesa do tratado do autor helenístico, esclarece-nos: contrariamente ao bajulador, há “um objetivo egoísta que, em Teofrasto, move o complacente: o desejo de ser agradável para obter popularidade ou influência. Logo, sem propriamente desejar vantagens materiais imediatas, o complacente pretende manter um relacionamento afável, e talvez proveitoso, com um círculo o mais agradável possível.” Por outras palavras, o complacente é o indivíduo que está sempre muito simpático e sorridente, que é solícito a toda a hora, e há de colher frutos doces dessa sua atitude. O seu comportamento torna-se, por vezes, de tal modo previsível que o tomamos, num segundo ou terceiro reencontro, como uma autêntica personagem plana, designação técnica para classificar, no âmbito dos estudos literários, a personagem cujo ethos não regista quaisquer alterações ao longo da ação da narrativa ou do drama.
No nosso entender, o complacente é aquele simpático irritante com o qual se deve ter certo cuidado. Chegamos mesmo a questionar a naturalidade e a veracidade da sua simpatia sorridente. E nessa nossa dúvida percebemos que, no fundo, se trata de uma figura pouco escrupulosa. Vejamos, mais ao pormenor, o que acerca dele escreve Teofrasto, para verificarmos a (segura) correspondência com a versão atual(izada) do perfil ético sobre o qual incide o nosso texto. Segundo o autor antigo, o complacente “vê um tipo ao longe e vá de cumprimentá-lo por ‘vossa excelência’; com reverências e mais reverências, dá-lhe um grande abraço e, sem o largar, acompanha-o por algum tempo, pergunta-lhe quando o voltará a ver, e só então, depois de mais alguns piropos, se vai embora.” (Char. 5.2.)
Estou certo de que o meu/a minha leitor(a) já se terá relembrado de uns quantos complacentes com quem se tenha cruzado – e ainda se cruzará. É o «ó su dotôr(a)» para cima, é o «ó su dotôr(a)» para baixo, uma autêntica roda dos ventos de «ó su dotôres» e «ó su dotôras», a Norte, a Sul, a Este e a Oeste. Portugal é, como alguém disse no passado, um país que não precisa de «su dotôres», porque já era, na altura, abundante em «su dotôres». Talvez seja também por isso que assume um desgoverno há umas boas décadas. O complacente, se não é «su dotôr», sabe como agradar o interlocutor que é (apenas) licenciado(a) e se toma por «su dotôr». Que júbilo! É o que faz usar, erradamente, a abreviatura ‘dr. (a)’, amiúde empregue para designar quem tem concluída uma licenciatura e enverga o título no cartão bancário ou na placa que o(a) identifica no local de trabalho. Doutores são os que efetivamente se doutoraram; também não são aqueles que, por importação linguística anglo-saxónica, vestem as batas brancas e nos cobram quase uma centena de euros para exercer, em 15 minutos, o mistério da medicina. Além das formas de tratamento, potentes armas discursivas na boca de um complacente, há também os cumprimentos enlaçados a sorrisinhos que, no rosto desse carácter humano, tocam a caricatura. Lá vem ele ao nosso encontro só para nos desejar ‘bom dia’ e saber se estamos bem de saúde. Quando isso sucede às segundas-feiras, não haverá quem não lhe queira “ir às ventas”! O complacente é o tipo que, no dizer de Teofrasto, não é simpático, ele “esforça-se por ser simpático” (Char. 5.3.), o que não é bem a mesma coisa, como sabemos. Sentimos que algo está mal, pois o olhar do complacente não condiz com o seu sorriso ou, então, a forma como cerra os dentes, enquanto sorri, denuncia a falsa simpatia que faz por esconder.
Se, num contexto agonístico de debate ou conversa acesa entre amigos/colegas, o complacente diz sim “não só à parte que apoia, mas também à contrária, para dar um ar de imparcialidade” (Char. 5.3.), o que sucederá quando tiver de tomar ele próprio uma decisão relativamente a si ou aos seus? Será através de um sorriso ou de uma anuência submissa que o complacente resolverá a situação de conflito ou confronto de ideias/opiniões contrárias? Pode, na verdade, vestir a pele de um “Maria vai com todas…” ou alistar-se como político “vira-casacas”. Voltando-nos, com efeito, para esta última alternativa, assinalaríamos (eu, pelo menos, assinalo), no cenário político do nosso país e das suas regiões autónomas, os complacentes que se sentam à direita, à esquerda e ao centro, assim como os que, antes, se sentaram à esquerda e, agora, se sentam à direita, ou vice-versa. Seria um jogo do loto com muitos números a descoberto, fácil e rapidamente cruzados, enquanto se assistia a outro jogo, o de quem se senta na cadeira, para ver quem apanha qual, à medida que a música vai sendo interrompida. Há, infelizmente, quem fique sempre de fora, isto é, nunca se senta. Para esses casos, há sempre remédio: funda-se outro partido político!
Não tenhamos dúvidas de que a complacência será sempre um traço de carácter intrínseco ao fulaninho e à fulaninha que chegaram onde chegaram, sendo ou não «sus dotôres», e, se o forem, serão abreviados, com certeza. Quando se diz e não se escreve – refiro-me ao «su dotôr(a)» – tomam-se todos por igual. Mas não são, não são todos iguais, complacentes, caros(as) leitores(as). Como sugestão de trato a ter com os praticantes dessa tendência ética, porque não abordá-los do mesmo modo e nos mesmos termos com que se nos dirigem? Acredito que o complacente, tendo a perfeita consciência do seu teatro diário, se dará conta de que algo está a correr mal. É um pouco como ‘virar o feitiço contra o feiticeiro’. Fica, ao menos, a ideia engraçada. Creio que se pode brincar com a complacência.
Dou por mim a recordar a minha avó Julinha, as suas histórias e o tempo alegre da minha infância nas vindimas da casa da Galera, na Caloura da Vila de Água de Pau. Vou abrir uma janela no seu passado, para recordar a história que sua irmã mais nova, a Maria José, me contou sobre ela.
A minha mãe um dia avisou-me que preparasse o carro para ela, eu e meus irmãos irmos à Água D’Alto, sua terra natal, visitar sua tia Maria José, chegada da Califórnia. Tia Maria José emigrara para a Califórnia e de lá fizera carta de chamada aos irmãos Francisco, Manuel, Victorino e à irmã Rosário. Permaneceram em Água D’Alto as duas irmãs Júlia e a Maria de Jesus. Foi só em setembro de 1973 que a irmã Maria José regressou, pela primeira vez, à ilha de S. Miguel, desde que a deixara. Ela prometera regressar à Água D’Alto para abraçar Maria de Jesus, a sua única irmã ainda viva.
Naquele ano de 1973, eu tirara a carta de condução e dirigi o nosso Volkswagen até à porta da casa da tia Maria de Jesus, irmã da avó Júlia, falecida alguns anos antes. A sensação com que fiquei na altura foi que titia Maria José mostrou seu afeto por sua sobrinha Maria Lia, mas minha mãe demonstrou ainda maior alegria por a ver e abraçar. Desde criança, ouvíamos minha mãe falar com saudade, de seus tios e tias. Sempre gostei de ouvir histórias antigas da nossa família, e por isso, aproximei-me da tia Maria José da Califórnia, pedindo-lhe que me contasse a sua história de emigrante, pois fora a primeira dos irmãos a chegar à Califórnia. O seu semblante mudou, o sorriso desapareceu e em seu lugar a sua face enrijeceu e desagradada com o meu interesse, afastou-se. Envergonhado e sem perceber o que dissera que a deixara zangada, livrei-me do ambiente e fui para o balcão no exterior da casa esperar que terminasse a visita. Na hora de regressarmos a casa, nem me aproximei da tia Maria José para me despedir. Ela não gosta de mim, pensei. Mas ela veio ter comigo, puxou-me e disse-me, baixinho: “- Vou partir daqui a cinco dias, na terça-feira à tarde. Vem amanhã pelas nove horas e conto-te a história que querias saber.” E, nisso, agarrou-me e deu-me um beijo na face. No outro dia, sentados no balcão, em frente à porta do quintal, a tia Maria José avisou-me que me contaria a sua história, mas que não a poderia contar antes dela partir para a América. Prometi e só, anos mais tarde, pude contar o segredo que me confiou.
Na primeira metade do século XX, minha avó Júlia, e os seus seis irmãos viviam com os pais, Flora de Jesus Rego Quintanilha e Francisco Furtado Simas, numa casa da rua da Cruz, em Água D’Alto. Júlia namorava um rapaz da terra chamado José que ambicionava emigrar para a América, nem que fosse num barco baleeiro. De tronco robusto e mãos calejadas do rude trabalho nas terras da freguesia, meteu-se num desses barcos baleeiros que na torna viagem da faina nas ilhas do ocidente, passou em São Miguel. Júlia ficou vendo passar os dias, esperando notícias. Se tivesse sucesso, conseguisse trabalho e casa na Califórnia, José viria casar à ilha e levá-la para a América. O tempo foi passando e Júlia não tinha notícias de José. Na verdade, só escreveu a Júlia quase um ano depois, mas esta nunca receberia nem a primeira nem as cartas seguintes. Embora tardias, as que iam chegando, a irmã Maria José, a responsável da casa por ir aos correios levantar a correspondência, não as entregou à Júlia. A demora de José em escrever explica-se dado a América estar a recuperar da “depressão económica” e ele, nesses tempos difíceis, não ter encontrado trabalho. Um dia, sem forças e com fome, desfaleceu e caiu à entrada dum “farm” de. O proprietário recolheu-o, e deu-lhe trabalho. Alguns meses depois, já com trabalho e casa onde ficar, tratou de escrever a Júlia várias cartas que nunca tiveram resposta. Passaram-se alguns anos e, entretanto, Júlia sem notícias, pensara que José, ou tinha morrido ou casado na Califórnia. Apareceu então Mariano de Lima, emigrante nas Bermudas, de regresso a Água D’Alto que lhe pediu namoro, e, depois, casamento. Júlia aceitou. Maria José escreve a José para a Califórnia dando conta de que Júlia, sua irmã, se tinha casado, mas que ele não ficasse triste, porque na verdade quem sempre mais gostara dele fora ela – a Maria José. José fica desiludido, mas, atribui ao destino o facto de não poder casar com Júlia. Por isso, depois de pensar algum tempo, decidiu mandar buscar Maria José para a Califórnia. Com ela se casou e teve cinco filhas.
Júlia acreditou em Maria José quando esta lhe disse que José desistira dela, até porque agora já pensava apenas no seu Mariano de Lima. Júlia Furtado Simas e Mariano de Lima, meus avós, tiveram dois filhos, Victorino Furtado Lima e Maria Lia Lima, minha mãe. No início de 1950, meus avós mudaram-se de Água D’Alto para uma propriedade com casa na Galera, em Água de Pau. Foi aí que meu pai conheceu minha mãe, e se casaram a 30 de novembro desse ano.
No início de 1990, Mabel e Adelina, duas das filhas de tia Maria José vêm de Kerman (Fresno), Califórnia, à ilha para conhecerem os primos em São Miguel. Por coincidência, o táxi que as trazia do aeroporto, parou na frente do nosso supermercado A Cova da Onça. Depararam com minha mãe e perguntaram-lhe se sabia onde vivia sua prima Maria Lia, porque traziam indicação para perguntar por ela, em Água de Pau. Adivinhem a alegria deste reencontro!
Todos, primos e primas, recordamos a história, que lhes contei apenas, depois da tia avó Maria José Furtado Simas ter falecido. Todos estamos felizes porque, se assim não tivesse acontecido, não estaríamos cá para a contar.
“A morte e a vida travaram um admirável combate: depois de morto, vive e reina o Autor da vida.” Assim canta um hino litúrgico da Páscoa, a festa maior do calendário cristão e aquela que mais vai ao âmago da nossa fé. De uma vez só tratamos da paixão, da morte e da ressurreição de Jesus.
Albert Camus, em o Homem Revoltado, afirmava que Cristo resolveu dois problemas principais: o mal e a morte, dois problemas tão evidentes no nosso pequeno grande mundo. Por isso, a Páscoa que nos preparamos para celebrar, não é uma coisa de 20 séculos mas algo muito presente no nosso quotidiano.
A entrada de Jesus em Jerusalém, vindo de Betânia, assinala o ínicio do caminho de Jesus até à Cruz, momento alto do tempo que vamos viver até domingo.
Jesus chega a Jerusalém sentado num jumento, um burro, que nem cavalo é, aclamado como um rei e de, repente todos aqueles que faziam parte do grupo dos mais importantes começaram a ficar incomodados com este rei que dizia coisas que os punha em causa, a eles e às estruturas e costumes que representavam. Arranjar pretexto para o mandarem prender era tudo o que mais queriam e não seria difícil porque tinham poder, poder que nunca ou raramente transformaram em serviço. E na cidade, as vozes corriam tão velozes quanto naqueles tempos as redes funcionavam: de um lado estavam todos os que se entusiasmavam com Jesus, que fazia o bem por onde passava, como nos lembra o evangelista. Do outro, os que lhe queriam mal por inveja e ciúme do amor que dele e dos seus gestos transbordavam.
A história é sempre a mesma. Ou quase sempre. Esta, apenas é diferente no essencial: a confiança e o amor.
Enquanto os rumores circulavam, Jesus reuniu os seus e antecipando um último gesto, que queria que se perpetuasse para sempre, juntou-os à mesa lugar de toda a intimidade de uma família ou de gente que se quer bem; mas antes lavou-lhes os pés, num ato de humildade que ainda hoje é motivo de escândalo. O rei, viajava num jumento e lavava os pés aos discípulos, para que eles, tal como Ele lhes fez, o fizessem também a outros. É por demais evidente que os senhores do tempo não gostaram da inversão de valores e arranjaram maneira de o prender e de o silenciar, embora nem sequer os que pugnavam pela justiça dos homens encontrassem nele culpa. Diante das injúrias e das calúnias nunca levantou a voz nem foi sobranceiro. Aceitou tudo porque sabia que o seu reino não era deste mundo. E quando foi condenado, carregou a cruz diante daqueles que o tinham aclamado e agora o apedrejavam com palavras e impropérios. No caminho, até ao calvário, cruzou-se com várias pessoas, algumas delas que se compadeceram; outras ficaram indiferentes e outras houve que o ajudaram a levantar-se. A força maior que o acompanhava era a confiança no Pai, mesmo quando lhe pediu para afastar de si o cálice amargo de uma espécie de derrota, que Ele que se fez humano por amor aos homens experimentou ou quando deitou gritou aquele pensamento lancinante de abandono dirigido certeiramente ao Pai: “porque me abandonaste?”.
Foram apenas momentos, como a nossa fé é feita de momentos que juntos fazem um todo, um caminho de dúvidas e de contradições; de zangas e de amuos; de infidelidades e traições, mas sabendo que o amor Dele é sempre maior.
É esta confiança que alimenta a vida cristã; é ela que nos devolve a esperança porque nos sentimos muito amados por Deus. E, esta sexta-feira, a mais santa de todas, quando olharmos para a cruz e descobrimos nela este amor maior que é muito mais do que um aconchego ou um consolo, perceberemos que também nós temos a suprema graça de poder servir, de poder amar e de poder partilhar a nossa e as cruzes dos que nos são próximos levando-lhes esta esperança.
A Páscoa é isto. Hoje e sempre. A vitória da cruz, não como sofrimento mas como lugar de amor.
Não nos cansemos de chorar, de rir e de amar.
Santa Páscoa para todos.
Rui Tavares de Faria
Professor e Investigador
O bajulador é o segundo tipo humano sobre o qual Teofrasto discorre nos Caracteres. À semelhança do que sucede com os demais, o autor começa por definir o conceito ético, neste caso concreto a bajulação, para, depois, elencar cerca de uma dezena de aspetos e/ou situações em que atuam os indivíduos tidos no rol dos bajuladores. Citando Teofrasto (Char. 2.1.), “a bajulice define-se como uma colagem degradante, mas lucrativa para o adulador,” carácter que deve ser distinguido da complacência. Segundo Maria de Fátima Silva em nota à tradução portuguesa, Aristóteles estabelece um contraste entre o bajulador e o complacente na Ética a Nicómaco (1108a 26-29), onde se lê: “dos que se esforçam por ser amáveis (…) aquele que exagera sem nenhum objetivo é o complacente; aquele que o faz na mira de obter qualquer vantagem é o bajulador.”
Nos dias que correm, o termo “bajulador” não é desconhecido das pessoas. Confrontados com frases ou exclamações do tipo “Aquele fulano assume-se, agora, o melhor amigo do Sr. Diretor… é um grandessíssimo bajulador!”, até os indivíduos menos familiarizados com a palavra em causa chegam facilmente ao seu significado: “Ah! É um graxista! Um lambe-cus!” Na verdade, “dar graxa” ou “lamber o cu” (em sentido metafórico, claro) é um comportamento humano tão antigo quanto a própria espécie. Para tirar proveito de uma certa condição, de um certo favor, sempre o homem se predispôs ao ato de “engraxar”, “bajular”. Trata-se, portanto, de uma atuação ética que, embora por vezes ensaiada, conforme os objetivos ou lucros que pretende atingir o bajulador, flui como que naturalmente na nossa sociedade atual.
Tal como o dissimulado, que se comporta na maior das espontaneidades, também o bajulador se manifesta como se fosse perfeitamente normal elogiar tudo e todos; contudo, permanecem (ainda) escondidos os verdadeiros intuitos por que se norteiam tamanhos panegíricos. Teofrasto diz que o bajulador está permanentemente ao lado ou muito perto do alvo do qual tenciona aproveitar-se, “arranca-lhe um borboto do casaco, ou tira-lhe dos cabelos qualquer palhita que o vento lá tenha deixado. E a sorrir, vai dizendo: ‘Estás a ver? Há só dois dias que te não vejo, e a quantidade de brancas que te apareceram na barba. Se bem que se diga que, para a tua idade, tens uma barba bem preta’.” (Char. 2.3.) O episódio apresentado pelo autor dos Caracteres não é de todo original e encontra correspondências no nosso quotidiano. Quantas e quantas vezes não começa o bajulador por adular-nos, referindo-se à nossa aparência física, negando (com a falsidade que lhe esconde os fins lucrativos da adulação) aquilo que os nossos próprios olhos veem diante do espelho todos os dias? “Estás mais magro!”, diz-nos o bajulador, quando a balança bem no-lo contraria. “Tu estás cada vez mais novo, caramba!”, enaltece-nos o bajulador, quando o cartão de cidadão não mente e as dores nas articulações nos denunciam, em dias mais húmidos, que estamos precisamente é mais velhos! Serão inócuos esses elogios?
Mas a atuação do bajulador não se fica por considerações elogiosas ao físico das suas vítimas, os tais piropos intencionais que levantam amiúde a autoestima de que não a tem bem nivelada, a adulação com fins lucrativos estende-se igualmente – ou sobretudo – à manifestação de comportamentos que chegam a ser abusivos. Teofrasto dá-nos conta, com bastante graça, da multiplicidade de modi operandi desse tipo humano: “se o parceiro abre a boca para falar, o bajulador manda calar toda a gente; e, entretanto, vai-lhe fazendo elogios, de modo que ele os ouça.” (Char. 2.4); “a quem quer que se lhes apresente pela frente, manda parar, para dar passagem a Sua Excelência.” (Char. 2.5); “se o sujeito vai de visita a um amigo, o bajulador corre à frente a anunciar” (Char. 2.8). Enfim, na incessante necessidade de se mostrar prestável, quando, no fundo, o que quer é “plantar verde para colher maduro”, o bajulador está ao inteiro dispor daquele que mais não é do que uma vítima, o bajulado.
De que modo nos é possível, hoje, em pleno século XXI, – num país como o nosso, onde a corrupção e o favorecimento dependem do “engraxanço” e do “culambismo”, termos que intitulam uma crónica de Miguel Esteves Cardoso, primeiramente publicada no Público, em julho de 1995, e agora integrada no seu livro Último Volume, cuja leitura recomendo vivamente – conviver com pessoas que, ao invés de nos reconhecerem (com ou sem elogios) por aquilo que somos, numa clara valorização da meritocracia, nos bajulam a toda a hora? É este o estado em que se encontra a sociedade – a de ontem, a de hoje e a de amanhã. A evolução da espécie humana, em termos de carácter, e não só, caminha para um descalabro que se caracteriza pela (quase) total ausência de valores e princípios éticos edificados sobre a verdade e sobre a consciencialização de que o convívio entre os homens não tem de se pautar pela falsidade, pelo oportunismo ou pela bajulação. Dos bajuladores – os estranhos simpáticos, sempre prestáveis e com um sorriso esboçado – livrai-nos, [Senhor!]
Como evitar que caiamos no discurso das falinhas mansas dos bajuladores? Em primeiro lugar, creio que aceitar um elogio, seja de quem for, de maneira efusiva como se estivéssemos a ouvir a mais bela declaração de amor não é um procedimento adequado; acho até que é mais de meio caminho andado para nos precipitarmos nas malhas da bajulice. Por isso, reconheçamos a simpatia do elogio do bajulador com um simples obrigado. Em segundo lugar, acredito que os indivíduos que sofrem de baixa autoestima apreciem com bons olhos as considerações lisonjeiras de quem os adula. Nestes casos, o recurso a terapias devidamente certificadas pode ser o melhor remédio a ter de cair na rede da adulação. Em terceiro e último lugar, sou da opinião de que devemos ter a perfeita consciência do que somos e do que valemos, tornando-se-nos, assim, possível detetar, em tempo útil, as investidas do bajulador. Se nos diz, por exemplo, que estamos muito bem fisicamente, anuímos, dizendo que os nossos espelhos em casa não nos são mentirosos; se nos diz que estamos bem para a idade que temos de facto, acrescentamos que a lei da vida nos favorece; se nos gaba a viva-voz para que possamos ouvi-lo, mesmo não estando ao nosso lado, atuamos como se os prazenteios não nos fossem dirigidos. Nada como não reagir.