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Cartas de Antero de Quental: ainda surge correspondência inédita

Entre maio e abril, foram leiloadas na internet várias cartas que Antero de Quental trocou com familiares e amigos. Entre estas cartas, constará uma inédita, nunca antes publicada, dirigida a Matilde, irmã do poeta açoriano

Carta de Antero à irmã © BESTNET LEILÕES

Em julho, dávamos conta do leilão de seis cartas escritas pelo escritor açoriano Antero de Quental e duas destinadas a ele, no sítio online BestNet Leilões, entre os meses de maio e abril.

Os preços de licitação final variaram entre 120 e 2.500 euros e entre as cartas consta, por exemplo, correspondência com uma irmã e com José Bensaúde, amigo do poeta e ensaísta açoriano.

Foram muitas as cartas que Antero de Quental trocou com as suas amizades e família. No entanto, tinha o hábito de destruir as que tivesse em sua posse. Conforme escreveu a anteriana, Ana Maria Martins, “Antero de Quental nunca se preocupou com o lugar que a posteridade lhe reservaria ou não. Tinha mesmo o mau costume de destruir quando os papeis lhe fossem parar às mãos”. No entanto, várias cartas sobreviveram até hoje. Algumas fazem parte de espólios públicos. Outras, leiloadas, estão em coleções privadas.

A investigadora Ana Maria Martins já reuniu e publicou, em vários volumes, numerosas cartas de Antero, que foram surgindo ao longo do tempo. O Diário da Lagoa (DL) foi tentar saber junto da estudiosa anteriana mais sobre estas cartas.

Ana Martins explica ao nosso jornal que segundo fonte sua, que teve acesso àquelas cartas leiloadas, quase todas já terão sido publicadas, isto é, não serão inéditas. Estas terão menos valor monetário. No entanto, entre as cartas leiloadas, uma será totalmente inédita e rara: uma carta de Antero à irmã Matilde. Já esta será de maior valor monetário. “Até onde eu sei, dessas cartas que foram agora a leilão, creio que só a carta de Antero à irmã Matilde é que é inédita”, clarifica a anteriana.

Entre os lotes leiloados no Bestnet Leilões, um lote inclui duas cartas dirigidas “a uma das suas irmãs”, e a cópia de uma carta ao “irmão André”, segundo descrição naquele site, tendo sido leiloado por 2.500 euros. Outro lote atingiu o valor total de 1.702 euros, com apenas uma carta, também dirigida “a uma das suas irmãs”. O lote em que constam duas cartas de Antero a José Bensaúde foi comprado por 1.100 euros. Outro lote incluía uma carta, também a José Bensaúde, que foi leiloado por 1.100 euros.

Como explica a professora catedrática, “grande parte das cartas de Antero para os irmãos era destinada à irmã Ana. Ela guardava-as porque percebeu a importância de Antero. O resto da família não tinha muita noção de quem ele era e da sua relevância. A maior parte da família não guardou. Antero escreveu a sobrinhos, irmãos. Recebiam as cartas e deitavam fora”, conta.

Sobre as cartas leiloadas, de acordo com Ana Martins, “elas atingiram preços incríveis, mesmo não sendo inéditas” porque “o manuscrito vale muito”. “Grande parte das cartas têm valor porque são manuscritos de Antero, mas muitas já foram publicadas” realça.

Que importância podemos atribuir às cartas escritas por Antero, questionamos a investigadora. “A maior importância. Eça de Queirós dizia que num grande autor, tudo interessa, até as contas do alfaiate. Portanto, tudo o que seja de Antero, é evidente que tem imenso interesse. O papel, a letra, onde ele escreveu. É um papel dele. Valem muito mais, em termos monetários, as inéditas, obviamente”, ressalva.
Conforme avalia a estudiosa anteriana, “tudo o que é manuscrito tem imenso interesse, seja do Antero ou de outros. É aquilo que fica como testemunho da passagem da pessoa por este mundo”.

Por sua vez, Urbano Bettencourt, autor açoriano e ex-professor universitário, explica ao DL que “a importância da correspondência de Antero varia muito” também “em função de conteúdos e propósitos” dando um exemplo de uma carta enviada a Wilhelm Storck, “porque aí se apresentam dados de natureza histórica e biográfica mas também porque Antero procede a uma análise da sua formação intelectual”.
Já as cartas enviadas a familiares e amigos permitem “acompanhar o Antero prático, mais próximo do quotidiano, mais exposto e íntimo, sem o filtro do fingimento literário”. Por sua vez, as cartas para Oliveira Martins, no verão de 1891, “dão-nos conta de um homem já muito próximo do naufrágio”.

Para Urbano Bettencourt, “enquanto poeta e pensador, que soube inventar os seus caminhos e questioná-los também, oscilando entre a afirmação assertiva e a inquietação, mas defendendo sempre o campo da sua liberdade individual, Antero está aí como uma figura que nos desafia a descobrir uma obra rigorosa e exigente com ela mesma”. Noutra perspectiva, para o escritor açoriano, “Antero é mais um daqueles açorianos que deixaram o arquipélago e moldaram, em boa parte, o século XIX português, em termos políticos e culturais”.

“Aquilo que um grande autor escreve pertence à nação” e deve ser conservado

Questionada sobre que destino deveriam ter estes documentos, Ana Martins defende “que um autor destes merece estar em museus e em bibliotecas públicas e, portanto, pertence ao património nacional e a todos nós. Aquilo que um grande autor escreve pertence à nação. Antero é dos nomes mais importantes da cultura portuguesa “, salienta.

A investigadora alerta que estes manuscritos antigos devem ser preservados “porque, ao longo dos anos, acabam por se perder e por se estragar aqueles que ficam nos particulares”. Como consta a professora, as bibliotecas possuem técnicas de conversação para vários tipos de documentos antigos, sendo este o lugar mais idóneo para manter, neste caso, as cartas de Antero.

A professora Ana Martins entende que as cartas de Antero de Quental não devem permanecer em coleções privadas, mas devem ser divulgadas, pois “muitas vezes, uma carta tem informação preciosa que pode alterar completamente aquilo que já se sabia. Às vezes uma frase altera completamente um conceito”, conclui.

Antero de Quental e o Instituto Superior Técnico

Nuno Costa Santos
Escritor e argumentista

Tive afortunado acesso ao original, recém-adquirido por um coleccionador micaelense, de uma carta de Antero de Quental para José Bensaúde, destacado industrial açoriano com importante inclinação para as artes e para a cultura, de quem era muito amigo desde cedo. Tão amigo que foi em sua casa que viveu entre finais de Agosto de 1891 e 11 de Setembro de 1891, o dia da sua dramática morte com esperança ao fundo.

A carta revela o conhecimento que Antero manifestava por aquilo em que de melhor se destacavam povos que não os peninsulares. Aí, o poeta e intelectual português, a propósito de uma questão colocada por Bensaúde sobre a educação dos filhos – foi pai de Alfredo, Joaquim, Ester e Raúl -, discorre sobre as virtudes do ensino na Alemanha, que, a seu ver, suplantavam, de modo inequívoco, as do ensino francês, inglês e americano. A sofisticação alemã quer em ciência quer em moralidade são destacadas – tal como a combinação, sempre fundamental mas muitas vezes descurada, entre a instrucção teórica e a prática. A dado passo, escreve, no seu modo assertivo e absoluto de ser: “Os métodos alemães têm outra profundidade, e é por excelência a Alemanha o país da pedagogia”. (Noutra carta, que encontrei no volume primeiro das cartas, editado pela Universidade dos Açores, dirá que a Suíça, pedagogicamente, oferece iguais garantias de qualidade). Promete que em breve esclarecerá José sobre quais eram, na altura, os melhores colégios e que, para o edifício da compilação, contaria com o conselho dos alemães mais instruídos a residir em Lisboa. Um trabalho de casa feito com a generosidade que se dedica aos melhores amigos.

Para aferir sobre a forma como o fundador da Fábrica de Tabaco Micaelense, figura reconhecidamente crente e empenhada numa ideia de desenvolvimento cultural e social das comunidades, acolheu os conselhos de Quental em relação ao destino escolar da descendência, basta referir que Alfredo, o seu filho mais velho, viajou, com 16 anos, para a Alemanha com o objectivo de prosseguir os estudos. Primeiro, estudou em escolas particulares e, depois, entrou para a Escola Técnica Superior de Hanover, onde veio a terminar, em 1879, o curso de engenharia. Mais algumas notas curriculares que ajudam a desvendar um percurso académico notável. Em 1881, concluiu o doutoramento em Mineralogia na Universidade de Gottingen e, após uma passagem por Espanha, foi trabalhar para Lisboa, cidade na qual, em 1884, se tornou docente de Mineralogia no Instituto Industrial e Comercial de Lisboa.

Depois de, em 1892, ter publicado uma muito crítica – e, por isso mesmo, refutada e ignorada – proposta de reforma do ensino tecnológico em Portugal, em 1911, Alfredo Bensaúde concretizou um projecto ambicioso e determinante para o futuro do país, imaginado e realizado tendo como referência as escolas alemãs onde se formou: o da criação do Instituto Superior Técnico. Foi ele que, já em plena República, fundou o Técnico, como é conhecido, e foi ele o seu primeiro director.

Ao passar os olhos por esta carta, em privilegiada versão original, fiquei, então, a saber que o “génio que era um santo”, referência central da sua geração, magnífico inspirador do pensamento português, agitador bem preparado e utópico de ideais e consciências, também contribuiu à sua maneira, com um conselho dado a um amigo que o requereu, para o crescimento concreto, prático, da educação em Portugal. O nome deste homem-mito, intransigentemente pelo progresso, irredutivelmente sonhador de um país outro, mais exigente e ambicioso, está nas primeiras linhas da História da fundação e do desenvolvimento do nosso ensino técnico e tecnológico. Sem a sua pista, José não teria enviado Alfredo para as instituições que, assumidamente, o inspiraram a criar aquela que, hoje, é a maior escola portuguesa de Engenharia, Arquitectura, Ciência e Tecnologia e uma das mais prestigiadas instituições de Engenharia na Europa. Mais um motivo de gratidão para com Antero.