A tragédia que está a assolar o Estado do Rio Grande do Sul, no Brasil, depois das cheias provocadas pelas fortes chuvas nas últimas semanas, soma já mais de uma centena de mortes, num contexto em que se verificam cidades inteiras destruídas e num momento em que mesmo a logística local foi alterada, sobretudo, na região serrana e na capital, Porto Alegre.
Em poucas horas, entre o final de abril e o início de maio, choveu o equivalente a três meses no Rio Grande do Sul. Os rios chegaram a níveis históricos. Segundo dados do governo do Rio Grande do Sul, em constante atualização, o número de mortes provocadas pelas enchentes chega a 157. Já o número de municípios atingidos pela tragédia chegou a 464. O número de pessoas afetadas pelos temporais também subiu: são mais de dois milhões de moradores do Estado atingidos. Mais de 76 mil pessoas estão em abrigos desde o início das chuvas no final de abril. Foram também resgatados mais de 12 mil animais.
No campo estrutural, barragens estão sob pressão, o sistema de contenção de cheias está sob stresse, diversos hospitais foram atingidos, os serviços essenciais foram interrompidos, aeroportos estão paralisados, estradas, cortadas e várias pontes desabaram. Esta é considerada a maior catástrofe climática do Estado, o que levou o governo do Rio Grande do Sul a iniciar o Plano “Marshall” de reconstrução do Estado, juntamente com a Autoridade Estadual para Emergência Climática, com foco, segundo apurámos, em promover “Assistência, Restabelecimento e Reconstrução”, além de “Prevenção e Resiliência Climática”.
Desde o início da tragédia, existe também uma importante movimentação de portugueses e lusodescendentes para tentar salvar vidas na região. A nossa reportagem conversou com António Davide, conselheiro das comunidades portuguesas eleito no Brasil por Curitiba e Porto Alegre. Vive na cidade de Bento Gonçalves, na zona serrana, a 120 km de Porto Alegre. Segundo ele, praticamente 52% do Estado está com “destruição total”.
“Cidades ribeirinhas estão praticamente destruídas, assim como cidades pequenas que tinham as suas populações, as suas empresas”, disse este responsável, que conta que a cidade de São Leopoldo, por exemplo, que fica a cerca de 30 km de Porto Alegre, está “totalmente debaixo de água” e que “em todas as localidades há casas que sumiram, que foram por água abaixo. Devido a força das águas, há morros que desapareceram”.
Este responsável revela que, onde vive, não há relatos de membros da comunidade portuguesa em perigo. Já com relação aos negócios geridos por empresários da comunidade portuguesa, o comércio terá sido o ponto mais afetado pelas cheias. As zonas do centro de Porto Alegre, onde esses empresários têm as suas lojas e empresas, conta com grandes prejuízos, segundo António Davide, como é o caso no tradicional mercado público de Porto Alegre, onde as pessoas estão à espera de ver o nível da água baixar para calcularem os estragos.
Existe ainda o problema dos assaltos e saques que estão a acontecer um pouco por todo o Estado. Há inclusive assaltos com recurso a barcos ou em jet-skis a mercados locais abandonados durante a enchente. E, nas estradas, o cenário é de assaltos aos condutores quando estão no trânsito a tentar deixar a região metropolitana de Porto Alegre.
Antonio David recebeu uma mensagem de José Cesário, secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, a dar apoio para a comunidade e para toda a população do Estado do Rio Grande Sul.
Entrevistamos também o lusodescente Marcos Neto, guia de turismo, sommelier e vice-presidente do Rotary Club de Canoas Industrial. Ele vive na cidade de Canoas, um dos locais mais atingidos pelas chuvas.
Marcos conta que o grande volume de água na região acabou por destruir muitas cidades também no vale do rio Taquari, na Serra Gaúcha, onde houve o rompimento parcial de uma barragem. Além disso, esse volume de água desceu em direção à capital do Estado, Porto Alegre, o que fez com que o nível da água na cidade subisse, em muitos lugares, mais de 30 metros.
Somente em Canoas, cerca de dois terços da cidade estão debaixo de água. Mais de 150 mil pessoas tiveram que deixar as suas casas e, quem não conseguiu sair rapidamente, teve de ser resgatados por helicópteros desde os telhados das casas.
“Algumas pessoas chegaram a ficar mais de três dias nos telhados de casa sob frio, chuva, a espera do resgate, que está a ser feito pelas forças armadas brasileiras”, contou Marcos, que atesta que existe hoje uma autêntica “operação de guerra”, pois “todos os serviços essenciais foram literalmente destruídos, a maior parte da cidade está sem energia elétrica e a produção de água potável foi suspensa, uma vez que as bombas ficaram debaixo d’água. As estradas foram totalmente destruídas”.
Segundo Marcos, há muitos voluntários no terreno, o que faz com que o cenário não piore em virtude dos esforços desses grupos. Os trabalhos concentram-se em tentar dar comida, medicamentos e albergar as pessoas em abrigos e escolas. Existem peditórios públicos dos rotarianos locais que destacam que tudo o que puder ser enviado para a região será “bem-vindo”, como medicamentos, alimentos, água, roupas e colchões.
Dezenas de famílias residentes na cidade de Rio Grande, no Estado do Rio Grande do Sul, estão a receber o apoio de diversos voluntários após ficarem desabrigadas. Uma dessas entidades que está a prestar um apoio fundamental à população é a Cruz Vermelha de Rio Grande, que, de forma voluntária e gratuita, acolhe mais de 200 pessoas num galpão que conta com diversos serviços sociais e de saúde, mas também com estrutura para as pessoas realizarem a sua higiene, se alimentarem e dormirem em segurança. Na liderança dessa iniciativa, está o português Júlio César Pereira da Silva, presidente da unidade local da Cruz Vermelha de Rio Grande. Além de advogado, este responsável é vereador nessa cidade brasileira há 25 anos, estando já no quinto mandato, o que lhe permite melhor conhecer os desafios da região e a sua população. É também neto de portugueses, preside ao Conselho Deliberativo do Centro Português do Rio Grande, e integra ainda, como voluntário, outros movimentos associativos e da organização civil na região, um trabalho que ganha agora novos contornos em virtude da catástrofe climática que atingiu o Estado. Segundo apurámos, o objetivo das ações dos voluntários é salvar vidas.
Um dos restaurantes portugueses mais tradicionais do Brasil, “Gambrinus”, é um dos estabelecimentos fortemente atingidos pelas enchentes em Porto Alegre. O restaurante está localizado no mercado público na capital gaúcha e é considerado o mais antigo do Rio Grande do Sul e um dos mais antigos do país, sendo conhecido pela aposta na gastronomia portuguesa e internacional. Fruto de herança familiar, João Alberto Cruz de Melo, de 45 anos, é hoje proprietário do local, que conta com cerca de 20 funcionários. Este empresário nasceu em Porto Alegre, mas é filho de portugueses. O seu pai, natural de Pedaçães, no norte de Portugal, próximo à Águeda, no distrito de Aveiro, deixou Portugal em 1951, trazendo a família, os irmãos, para esse país sul-americano. Chegaram primeiro ao Rio de Janeiro e, depois, foram para o Rio Grande do Sul. Este empresário pretende “iniciar uma limpeza, avaliar os prejuízos e reprogramar a abertura, contratar todo mundo e tentar voltar a vida”.
Outro exemplo desse movimento para tentar diminuir o caos e a dor das famílias é o trabalho que está a ser feito pela Casa de Portugal de Porto Alegre, que abriu as suas portas para que a população tenha abrigo e acesso à água potável, uma vez que o local conta com uma fonte de água mineral fruto de um poço artesiano. No local, as pessoas podem tomar banho e utilizar casas de banho.
“Os diretores da Casa de Portugal estão envolvidos nas suas comunidades e todos estão a ajudar da maneira que podem”, é o que garante Fernando Lopes, presidente da Casa de Portugal de Porto Alegre, que adicionou que, desde domingo, “a Casa de Portugal viu que tinha um recurso (água potável) que estava a faltar para diversas cozinhas de voluntários que fazem marmitas e comida para os desabrigados”.
E as pessoas têm procurado cada vez mais o clube, conhecido na região por valorizar as tradições portuguesas. Fernando conta que chegam pessoas que foram resgatadas há dias e que ainda não haviam tomado banho. Para evitar doenças, elas podem fazer a higiene no local. Muitas outras levam recipientes para levar água para casa. Há filas na porta.
Este responsável garante que há muitos portugueses utilizando recursos da Casa neste momento, como pegar água potável e etc., e que este público conta com um horário extra para as suas necessidades, além do público em geral.
A nossa reportagem conversou também com Filipa Mendonça, vice-cônsul de Portugal em Porto Alegre, que explicou que, “infelizmente, nesta situação de calamidade pública decretada no Estado, temos que aguardar com muita calma o desenrolar dos acontecimentos”.
“Até ao momento ainda não conseguimos reabrir as nossas atividades normais, o que me preocupa. As previsões climatéricas para os próximos dias também não ajudam a que se consiga retomar de imediato. No seio da comunidade portuguesa vamos nos mantendo em contacto e, até ao momento, apenas a lamentar a perda de bens materiais”, afirmou esta responsável, que sublinhou que “o espírito de solidariedade do povo gaúcho é louvável e ímpar, no entanto, há a registar que existem regras e condutas próprias a seguir, e há que se respeitar a integridade das instituições”.
A situação preocupou também o Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, que emitiu uma nota a dizer que o governo de Portugal “está solidário com o povo brasileiro”, e mostrou apoio às iniciativas do presidente do Brasil, Luis Inácio Lula da Silva, e do governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite.
Através das redes sociais, a embaixada de Portugal no Brasil disse estar a acompanhar “com preocupação” a tragédia no Rio Grande do Sul.
José Cesário, secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, confirmou à nossa reportagem que, “até ao momento, não há informação sobre vítimas portuguesas”.
A Casa dos Açores em Lisboa realizou, no dia 19 de maio, o tradicional “Almoço da Festa do Divino Espírito Santo”, um evento importante do ponto de vista cultural e religioso na agenda açoriana. Mas, este ano, esta entidade resolveu dar uma demonstração ainda maior da força e da solidariedade açoriana, ao divulgar os cartazes “SOS Rio Grande do Sul” que apelam a “doações internacionais” para a auxiliar a população residente nesse estado brasileiro.
A Casa dos Açores em Lisboa justifica esta incitava solidária e afetiva com o facto de que “os primeiros açorianos chegaram ao Estado do Rio Grande do Sul em 1752; que vive hoje neste Estado uma grande comunidade de açordescendentes; que há dois anos foram celebrados os 250 anos da fundação açoriana da cidade de Porto Alegre; que Gravataí é cidade irmã de Horta (ilha do Faial) e Porto Alegre, cidade irmã de diversas outras cidades, entre elas, Ribeira Grande (ilha de São Miguel) e Horta”.
Outros movimentos pelo Brasil, incluindo entidades luso-brasileiras, como a Obra Portuguesa de Assistência no Rio de Janeiro, e instituições em São Paulo, como a Associação Portuguesa de Desportos, e a comunidade brasileira em Portugal estão a reunir doações que visam auxiliar as famílias neste momento.
O que sabemos é que as enchentes causaram um grande impacto na indústria e na produção de alimentos e produtos na região. O presidente do Brasil garantiu que não faltarão recursos para recomeçar a reconstruir as cidades e que está a enviar dinheiro e integrantes das forças armadas para auxiliar nos resgates. A reconstrução de rodovias federais custará mais de um bilhão de reais, cerca de 200 milhões de euros, segundo cálculo inicial do ministro dos Transportes do Brasil.
Uma triste realidade num Estado brasileiro que faz fronteira com a Argentina e o Uruguai, que conta com a imponente Serra Gaúcha, onde está a região vinícola do Vale dos Vinhedos e inclui cidades turísticas de estilo alemão como Gramado e Canela, famosas pelas paisagens naturais. Porto Alegre, a capital, é um grande porto com estruturas clássicas como o Mercado Público e a Catedral Metropolitana, no centro histórico.
Agora, o grande volume de água e as alterações climáticas podem alterar esse percurso e essa história.