Log in

O Parolo

Na sua crónica mensal o professor e investigador, Rui Tavares de Faria, escreve este mês sobre

Rui Tavares de Faria
Professor e Investigador

O “parolo”, termo que entrou, com bastante força, na moda em língua portuguesa, há sensivelmente umas três décadas, é o tipo humano que Teofrasto retrata em quarto lugar na lista dos seus Caracteres. Não se trata, portanto, de um traço psicológico que cause estranheza ao leitor do século XXI, habituado que está, feliz ou infelizmente, a conviver com a parolice, desde o amanhecer até ao sol se pôr. O parolo que nos descreve o autor grego coincide, mais coisa menos coisa, com o parolo da atualidade. Ele é o despropositado e desenquadrado por excelência, sem ter qualquer ideia do ridículo a que se expõe, aos olhos da maioria das pessoas. Um problema coloca-se, por ironia, que é quando são os parolos a dominar a cena, uma espécie generalizada nos nossos dias, independentemente do contexto em que se encontram e manifestam. Diria que o parolo até está a tornar-se num tipo de fungo social.

Teofrasto define a parolice como “uma espécie de desconhecimento das conveniências” (Char. 4.1.) e não as explicita, talvez por já no seu tempo serem por de mais abrangentes as esferas em que se movimentam os parolos. Se, na Antiguidade, precisamente na Grécia helenística, altura em que foram escritos os Caracteres, o parolo desconhece os modi operandi das convenções sociais, nos nossos dias esta figura tende a representar tudo o que é inconveniente, com naturalidade. As abordagens que dirige a quem quer que por si passe – num convívio pessoal, profissional, familiar, etc. – são sempre inadequadas. Vejamos alguns exemplos. O parolo cumprimenta o amigo infortunado com sorrisos e efusões, como se, ao invés de lamentar a falência que aquele sofreu nos negócios, fosse essa a melhor forma de confortar o “triste com a vida” que perdeu praticamente todos os seus haveres. O parolo apresenta-se à/ao companheira/o e aos filhos da sua antiga cara-metade e diz-lhes que terminaram o relacionamento porque ele (o parolo) tinha percebido – passados uns bons anos – as incompatibilidades afetivas entre os dois. Mas não deixa de cumprimentar e saudar a nova família do/da “ex”, dizendo que tudo há de correr muito bem.

Nos convívios familiares, o parolo é aquele que, esquecendo eventuais quezílias entre primos e irmãos, genros ou cunhados, alude a assuntos tidos por “proibidos”, como, por exemplo, fala dos ex-namorados da irmã encalhada e/ou recorda ao primo recentemente casado (e aos restantes) a noite de esbórnia da despedida de solteiro, nomeando – não para que todos saibam, mas para mostrar que as conhece – as strippers que executaram, na perfeição, uma série de Lap Dances no colo do que ia dar o nó nas próximas horas. Nada disso o faz por mal, fá-lo por parolice pura. Noutros casos e ainda em contexto de festas de família, o parolo bebe vinho no copo destinado à água, porque é maior, logo, também a quantidade com que o enche; o parolo usa o prato raso da refeição principal para se servir das sobremesas, o que não o impede, porém, de as repetir, tantas vezes quanto as necessárias para se sentir regalado. Afinal de contas, está em família e não há por que fazer cerimónia.

Em situações sociais mais protocolares, refastela-se na cadeira ou poltrona de pernas abertas ou traça a perna de modo a exibir, não a meia fina ou a turca branca, se estiver de “téni”, mas os pelos abundantes (ou a sua depilação) que estão acima da própria peúga. Teofrasto refere que o parolo, “ao sentar-se, puxa o manto acima dos joelhos, de modo que fica com as pernas à mostra.” (Char. 4.4.). Sabe-se lá o que mais deixa o parolo vislumbrar, por debaixo do manto ou acima dos joelhos. Sentar-se deste modo, “à macho”, como entenderão muitos parolos, é que impõe respeito! Isso, sim, é que é de valor. E se, entre tanta virilidade, de traçar e destraçar a perna, mostrar a perna cabeluda ou depilada, se conseguir dar a entender que há uma certa protuberância entre as ditas, aí ganhou o dia o parolo, porque todos lhe viram o quão homem é. Resta-nos saber que uso lhe dará, ou daria.

Noutros âmbitos, a parolice manifesta-se de modo bem engraçado. Teofrasto assinala que “na rua não há nada que surpreenda [o parolo] ou o espante, mas se vê um boi, um burro, um bode, fica pasmado a olhar.” (Char. 4.5.). Imaginemos o que não seria em S. Miguel, onde vacas, bois, asnos e mulas se passeiam e caminham, diariamente, pelas nossas estradas! Teríamos engarrafamentos humanos e de veículos se, por cá, todos os parolos pasmassem a contemplar o gado, que ainda é abundante. Adulterando o provérbio nosso conhecido, não seriam “burros a olhar para um palácio”, mas parolos a olhar para os burros e o séquito de gado bovino. Estaríamos em processo (natural) de autorretrato? Quase o mesmo é o que se passa com as situações em que, ainda num universo heterossexual, o parolo fica especado a olhar a moça bem arranjada que passa à sua frente. O instinto animal, no seu estado mais puro – e de macho sempre em época de cio –, dá-lhe sinal. Tal qual o cão que olha para a cadela com quem pretende acasalar, assim é o parolo que, de boca meia aberta e olhar parado, contempla (e cobiça) a fêmea que, no fundo, ele sabe que nunca terá nos seus braços. “Ei-la, como vai esplêndida”, já escrevia Cesário Verde, sem hipóteses possíveis de enlaçamento (ou acasalamento). É caso para se pensar se a poesia deste autor português do final do século XIX não teria o seu quê de parolice, no que toca à relação que o sujeito lírico estabelecia com as mulheres citadinas de Lisboa, em termos de ficção poética.

De qualquer forma, do parolo não nos livramos, caro leitor; é figura em visível ascensão no nosso meio. Ele não é sinónimo integral do inadequado ou do despropositado, tenhamos isso em atenção. Enquanto este, o inadequado ou despropositado, age com perfeita noção das suas inconveniências, mormente por maldade de carácter, na maior parte dos casos, o parolo é inconveniente naturalmente – ou por natureza ética – e atua, inconsciente, sem ter sequer a ideia do malefício que tem sobre os outros. É a configuração de Joane, o Parvo, personagem do Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente. Deste todos se lembrarão, com certeza, até os leitores mais novos. E parvos, atoleimados e parolos – estes, sim, todos vocábulos sinónimos com correspondência na ordem dos 95%-100% – é o que muito há por aí. Façamos-lhes a vénia, de quando em vez.

Os leitores são a força do nosso jornal

Subscreva, apoie o Diário da Lagoa. Ao valorizar o nosso trabalho está a ajudar-nos a marcar a diferença, através do jornalismo de proximidade. Assim levamos até si as notícias que contam.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *

CAPTCHA ImageChange Image