Vinha o burro carregado nas ilhargas com dois seirões atacadinhos de marrões pretos, e o grito cumpria o seu dever de ir enchendo as pacatas ruas e canadas, becos e travessas, da minha antiga vila de Água de Pau dos anos 50/60s.
Rebentava pelas costuras o seu urbanismo de casario encavalitado, paredes meias, com numerosas famílias, com o rapazio a encher as ruas e as valetas com suas brincadeiras e convívio ensurdecedor. A emigração para os EUA e Canadá ainda não levara o grosso da população.
Mas era e sempre fora uma terra cheia de história, de bom vinho de cheiro da Caloura, abundante desde a praça velha, num estiraço até às muitas tabernas onde a bazófia e a cachaça também imperavam entre os feitos e brasões dos homens bons e grandes da terra.
“Sítio corisco e ruim, doí-me os ombros se o tempo sopra de certo lado” ia resmungando Mané da Ribeira, nome que deram ao burriqueiro da Rebê-grande, a pé aguilhando o burro na alçada dele, subindo o Valverde de Baixo, à boca do caminho do mato.
Na sua vagareza, ia arrastando os pés dentro das alboca-tas feitas de borracha. De beiçana caída e sem cotovelos, de pressa ia abrindo e rasgando caminho com pachorra, entre o rapazio entretido à volta de montinhos de terra, nas valetas, a brincar ao “pirolito”.
E, quando já se preparava para mais uma aguilhada esfregulhada no pobre do burro, eis que se abre uma porta e uma mulher atira-lhe para a frente da animara um alguidar d’água. O burriqueiro em vez de se enfurecer, relevou a ação ao ver que na cozinha da casa as prateleiras estavam forradas a papel fantasia franjado de triângulos e outras figuras geométricas, tudo recortado com tesouras e mãos de paciência duma dona de casa prezada.
Por isso, parou e antes que a mulher se desculpasse, coisa que o burriqueiro não sabia se iria acontecer, levantou a tampa de um dos seirões e perguntou-lhe se não queria comprar-lhe uma parelha de “marrãos” para no próximo inverno encher sua casa de boa e farta “carninha”?
A mulher, dona de seu nariz, emproada, não deu ares de interessada e meteu-se para dentro, batendo-lhe com a porta na cara.
E lá ia o burriqueiro, agora a descer o Valverde de Cima com o seu grito, chiando as orelhas do rapazio apenas, pois das casas ninguém se incomodara em aparecer á porta.
O burro, no seu vagaroso passo ia sonhando com uma gavela ou a maquia de milho amarelo que sabia estar também dentro de um dos seirões de vime e que o dono lhe ia dar, mas só depois de vender algum dos marrões, o que o deixava afogueado, coitado.
– Óh Mané-da-rebêra a Ti Izelina “cagada” tá-te chamando, o home-déla qué-te comprá dous marrãs!
E lá foi o burriqueiro, valverde abaixo até à travessa do Paul, donde lhe vinha a oportunidade de uma venda, finalmente! Mas ia pensando consigo:
– “Que terra é essa para botar nomes ás pessoas! Eu sou da Ribeira Grande e nem me chamo Manuel e muito menos Mané. Meu nome é Emanuel Carlos, eh mas vamos a ver se é agora que eu vou vender uma parelha de “bócrinhos” (= porquinhos)?”
Pois é, nessa terra, o apelido vem sempre apegado ao corpo e ao nome. Fica-se sem saber deslindar se os nomes foram nascidos para as pessoas daqui ou se elas vieram ao mundo para encher certos nomes e apelidos?
Segue-se entance que o homem que queria comprar a parelha de marrãs, o António Soleta “marrecos-pá-água”, estava á porta de casa, podre de bêbedo, mas felizmente não bebeu o tino e por isso depois de escolher dois bons e gordos “marrãozinhos”, pagou trezentas patacas por eles e ainda convidou o burriqueiro para beber com ele, abrindo-lhe a porta da sua casa.
Estava eufórico e feliz, pois a sua Isolina parira um rebento e avantajado filho-macho com mais de cinco quilos de peso. Por isso gabava-se de ficar a sua casa, “cheia de graça e o Senhor é convosco, benditas as uvas do António Soleta e o seu vinho de cheiro, amém”!
António preocupava-se agora com quem seria o padrinho da criança. Quem bom padrinho não arranja, bem batizado não poderá ficar, pensava. Até isso ele partilhou com o burriqueiro, que já estava cego para desandar dali e voltar à sua venda, pelas ruas da vila.
E lá foi ele com o seu burrinho de seirões pendurados nas ilhargas, pois ele sabia que há sempre um caminho onde outro se acaba e naquele ele já fizera negócio. Ele viera ali parar por atalhos que encurtaram a lonjura da viagem, por canadas e carreiros, atravessando a Mediana que liga os concelhos da Ribeira Grande e da Lagoa. Dali até onde estava tomara o antigo caminho que liga os Remédios à vila de Água de Pau, passando pela Grota das Pedras Brancas, Castelo Branco e Grota do Carvalho, Caminho Velho e pelas Escaninhas, hoje conhecida por rua do Foral Novo. Não tinha passado pela ponte do Caminho Novo, porque ainda estava em construção.
António Soleta bebeu então mais um quartilho de vinho de cheiro como quem fecha o negócio, vendo o burriqueiro partir. Corria o mês de novembro em passo vagaroso em direção aos seus finais, tempo de pouco haver que fazer nas suas terras, mas também das laranjas e laranjeiras da sua quinta do Paul, murada e protegida de árvores-abrigos aparadas com seu grande traçado (facão) com mestria, para o vento nordeste não queimar a fruta ou derrubá-la para o chão.
Feliz por ser pai e pela compra da parelha de animaras que ia encher a sua casa no próximo inverno, quando fosse à faca. Insinuava-se no seu pensamento inviolado pelo álcool o burriqueiro e o seu burrinho com os seirões nas ilhargas percorrendo a ilha, dias e noites pelos tempos adiante. “Conheço muito bem a cantilena dele” diz consigo e repete-a em voz alta:
— Eh marrãzada grada, eh marrãzada grada da boa, patroa, diz ao tê home!
E, com essa o António Soleta fechou a porta da sua casa e foi sentar-se ao pé da sua mulher que segurando o seu filhinho, enrolado num cobertor feito no tear, isolando-o da bafarela resultante da vinhaceira que o pai se encharcara, embora entendesse ser pela alegria de ser pai do seu nono filho, quatro machos e cinco fêmeas. Que fartura e riqueza ia naquela casa, com a graça de Deus, assumia o António Soleta.
Agora tinha de arranjar um bom padrinho para o seu Azevedo. O Ti Luís Valongo “pequínino”, era o padrinho dos seus outros filhos e a Ti Ricarda da Terra das Fraldinhas era a madrinha das filhas. Então, para o ressól, pensou no senhor Pacheco da Preta, um homem sério e de posses, que lhe havia de socorrer nalguma necessidade, caso isso viesse a acontecer. Nanja qu’isso fosse problema pois era homem de terras e o trabalho nunca lhe metera medo ninum. Os seus compadres eram todos de prol e de proa, mexendo por isso, com os seus vizinhos, verdadeiros “alfinetes ferrugentos” de ciúme e inveja.
Crónica publicada na edição impressa de fevereiro de 2023
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