A 10.3.1474 o madeirense Rui Gonçalves da Câmara adquire a João Soares de Albergaria a capitania de São Miguel por vinte mil cruzados e quatro mil arrobas de açúcar. De seguida instala-se na zona da atual Vila Franca, que se torna a capital da ilha. Não há certezas sobre a data em que aquele aglomerado urbano foi elevado a Vila, mas parece tê-lo sido nessa década, fazendo com que os limites do seu concelho coincidissem com os da própria ilha. Assim, todos os concelhos criados posteriormente subtraíram território à área administrada pela primeira capital, tendo a sua localização condicionado os limites das novas circunscrições, em particular daquelas mais próximas, como foi o caso da de Água de Pau.
No período do Antigo Regime são elevadas a sede de concelho cinco localidades, quatro delas no reinado de D. Manuel I, Ponta Delgada, em 1499, Ribeira Grande, em 1507, Nordeste, em 1514 e Água de Pau, em 1515, e uma logo no início do reinado de D. João III, Lagoa, em 1522. Rui Gonçalves da Câmara, falecido em 1497, já não assistiu à fundação destes concelhos, mas a partição administrativa da ilha reflecte o grande esforço que empreendeu para incrementar a sua população, trazendo da Madeira, das Canárias e de outros lugares muitos dos novos povoadores. De facto, embora se documente o início da fixação humana em São Miguel no segundo quartel do século XV, essa ocupação era incipiente em 1474, facto a que não serão alheias a conjunção das duas capitanias, Santa Maria e São Miguel, numa única administração, sedeada na primeira daquelas ilhas, e na maior inquietude, em termos geológicos, da segunda, circunstâncias que terão atrasado aquele processo.
A condição que se afigura como essencial para todos os novos povoados é a proximidade de cursos de água potável, e a existência de baías abrigadas e susceptíveis de acolher actividade portuária. Numa fase preliminar a confinidade do lugar da Povoação Velha, à ilha de Santa Maria, favorece a fixação do primeiro povoado micaelense nessa localidade, mas, posteriormente, as condições de abrigo proporcionadas a Vila Franca pelo seu ilhéu acabam por impor a sua primazia. Na costa sul da ilha também Água de Pau e Lagoa oferecem boas condições para a fixação humana. No primeiro caso a enseada que deu origem ao porto de Vale de Cabaços, o reservatório natural alimentado pela ribeira do Paul e as ribeiras da parte ocidental (Frutuoso, L. IV, cap. XLI, pág. 174-176), e no segundo a laguna que determinou a designação do concelho, fornecem razoáveis condições de suporte de vida que, no segundo caso, são ainda adjuvadas pela baía que recebeu a designação de porto dos Carneiros. Essas circunstâncias do suporte físico, e a própria centralidade de Água de Pau e Lagoa no contexto da ilha, favorecem o seu rápido crescimento, e parecem ter constituído a principal razão para a elevação a sedes de concelho. De facto, se o argumento da distância a Vila Franca se podia aplicar a Ponta Delgada, Ribeira Grande e Nordeste, justificando a sua autonomização, tal não podia ser invocado em relação àquelas duas novas vilas, o que viria a condicionar a dimensão da área que lhes foi atribuída, bem como a sua futura expansão. Para ambas, a proximidade geográfica à capital parece ter determinado o estabelecimento de limites de meia légua, “ao redor de todallas bandas” (transcrição de um Treslado da Carta Régia, realizado no século XVII. Tavares, pág. 11), no caso de Água de Pau, e de acomodação com as circunscrições vizinhas já definidas, Ponta Delgada, Ribeira Grande e Água de Pau, no caso de Lagoa, para onde a meia légua volta a ser referida para a demarcação com a primeira daquelas Vilas (Tavares, pág. 6). Assim, para as três Vilas mais distantes, Ponta Delgada, Ribeira Grande e Nordeste, cujos primeiros limites parecem também ter coincidido com as imediações da sua “mancha urbanizada”, ficou disponível uma grande expansão territorial, que se consagrou ao longo dos séculos, e que é patente na divisão administrativa que hoje conhecemos.
No caso da Lagoa a ocupação humana desenvolveu-se ao longo da orla marítima sobretudo em torno de dois pontos, a laguna de Santa Cruz e o Porto dos Carneiros, embriões das duas futuras freguesias de Santa Cruz e de Nossa Senhora do Rosário, mas, inicialmente, foi junto à baía da primeira, provavelmente porque as cotas mais elevadas do terreno garantiam melhores condições de defesa contra um ataque vindo do mar, que o centro do novo aglomerado se fixou. Em Água de Pau a proteção conferida pelo Pico da Figueira e o reservatório natural do Paul também parecem ter favorecido um assentamento urbano em cota mais elevada.
Em ambos os casos, a elevação a Vila fez recair sobre os povoados uma série de obrigações, de entre as quais se destaca a condição imposta pelo monarca da construção da “casa da câmara e da cadea a sua propria custa” (Tavares, pág. 7).
Sabemos que estas primeiras “casas da câmara” foram construídas no extremo nascente das respectivas Praças Velhas, em Água de Pau e em Santa Cruz – de acordo com a tradição documentada desde a Antiguidade Clássica, de localizar os edifícios mais prestigiados das urbes nos seus centros urbanos – e na proximidade das igrejas que se tornaram “Matriz” em consonância com a elevação do estatuto do aglomerado. Assim, a “Praça Velha” constituía o coração da nova urbe, e o ponto a partir do qual eram definidos no território os limites impostos por determinação do monarca. Contudo, à semelhança do que ocorria com a demarcação das dadas de sesmaria, que transpunham os limites abstractos, definidos por número de passadas, para o território, também neste caso a existência de acidentes físicos materializava esses limites interconcelhios. Tal é muito evidente quando Frutuoso se refere à linha divisória entre os concelhos de Água de Pau e Lagoa, como a “Grota do Limite”, fronteira que a expressão “Termo da Lagoa” ainda hoje evoca, assinalando a imposição dos marcos divisórios no território, a mandado do monarca. Já os limites da Lagoa com a Ribeira Grande e Ponta Delgada foram cordialmente definidos, respectivamente, “da banda do norte (…) com o termo da vila da Ribeira Grande” e “partindo pelos biscoutos, meia légua e não mais” (Frutuoso, L.IV, cap. XLII, pág. 178), à semelhança do que havia acontecido para Água de Pau em “boa vizinhança e logradoiro com a villa de Villafranca” (Tavares, pág. 11).
No século XIX três acontecimentos vieram alterar o satus quo que, durante séculos, definira as delimitações entre Lagoa e Água de Pau. A 19 de Outubro de 1853 o concelho de Água de Pau é extinto e integrado no de Lagoa. Entre 1861 e 1863 os limites do novo concelho de Lagoa são demarcados com o de Ponta Delgada e Ribeira Grande, sendo redefinidos os das três freguesias que então o compõem, Santa Cruz, Nossa Senhora do Rosário e Água de Pau. Parece ser desta altura que se gera o desvio, face à Grota do Limite, que hoje se documenta na fronteira entre Santa Cruz e Água de Pau. Aliás essa linha de delimitação poente da segunda daquelas freguesias, com a primeira, é referenciada pelo padre João José Tavares como “duvidosa”, apoiado precisamente no articulado do acordo que foi assinado à revelia da tradição histórica alicerçada na demarcação ao longo da Grota cujo nome fala por si. Finalmente, entre 10.12.1867 e 14.1.1868, o concelho de Lagoa é extinto, sendo a freguesia de Água de Pau integrada no de Vila Franca, e as freguesias da sua metade poente no concelho de Ponta Delgada.
Outros acontecimentos relevantes continuaram a assinalar administrativamente este território, cuja humanização recua até aos primórdios do povoamento. No século XX foram criadas duas novas freguesias, Ribeira Chã e Cabouco, respectivamente subtraídas a Água de Pau e a Nossa Senhora do Rosário, e já nesta centúria Água de Pau recuperou o estatuto de Vila, e a Lagoa foi elevada a cidade.
Crónica publicada na edição impressa de julho de 2022
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